Sempre falaram para não associar música a pessoas, mas ninguém disse nada sobre momentos. Tenho uma convicção que se baseia em, se algo te lembra coisas que te fizeram bem, não tem por que não atribuir nada para lembrar. Por exemplo, Roupa Nova me lembra da infância, Araruama e o meu lugar favorito que havia lá, apelidado de “Restaurante que venta muito”. Sinto o gosto da picanha assim que escuto a letra de Dona.
Então crescemos e as memórias que geram mais felicidade passam a ser no círculo social que nós conquistamos. E a melhor história que tenho é a música que me faz ter o gosto de outra pessoa na boca e arrepios distribuídos por todo corpo: 505 - Artic Monkeys.
Ser adolescente é ser cheio de vida. Isso se traduz para: hormônios a flor da pele e fogo no fiofó. Junte isso mais a euforia das férias e a casa do amigo rico liberada para churrasco e noitada. O resultado só pode ser uma coisa: seres humanos aloprados.
Então a noite cai, mas o ânimo não. Se antes eram 15 pessoas, agora são 10 e todas dormirão por ali. Na presença dos pais provavelmente haveria aquela divisão bem heteronormativa “Meninas em um quarto e meninos em outro”. Sem eles, dormem os dez em um quarto só. No chão mesmo, dane-se. Isso, lutinha, monta um em cima do outro. Dor nas costas? Nunca nem vi. O que importa é a zona.
Mas como em toda a festa, sempre tem alguém que passa mal.
Essa sou eu.
E não, não dei PT. A minha pressão que caiu mesmo.
Então, minha amiga, Camila, me levou para o quarto no andar de cima. Deitei na cama de solteiro e me entupi de sal e água. Tão rápido quanto veio, o mal-estar foi embora, entretanto nós duas continuamos conversando. Eu na cama, ela no sofá, do outro lado do quarto. Logo, Fernando, rolo da Mila, e Caio, se juntaram a nós. E aí soube que algo estava errado.
Sabe aquele casal de amigos que quer te juntar com alguém só porque sim?
Esses eram Mila e Nando.
Olhei no fundo do olho daquela guria. “O que você pensa que está fazendo?”. Ela não respondeu a pergunta mental, só deu um risinho, a maldita. Já estava planejando a minha estratégia de fuga. Não que o clima criado estivesse ruim, eles me deixavam bastante à vontade, com uma musiquinha do Artic Monkeys ao fundo e papos bem banais, como se estivéssemos realmente só num quarteto de amigos. Mas também não ‘tava bom, estava particularmente constrangida e sentei tão longe do menino que pareceu por um momento que ele tinha algo contagioso.
E não me leve a mal. Não é que eu não quisesse ficar com Caio. Ele era meu amigo, não era feio, nem bolsominion e me fazia rir. E vocês sabem o que falam sobre homens engraçados, né? Uma hora a gente está rindo, na outra está pelada. Só que mesmo assim, na minha cabeça, iria ter arrependimento na manhã seguinte. Com certeza.
Então eu não iria ficar com ele. Não iria.
Mas veja bem. A luz do quarto já estava apagada, a persiana entreaberta deixava o brilho da lua cheia entrar, nos tirando da penumbra completa. O momento estava tão leve a essa altura, e já estava tão mais relaxada que por um segundo achei que ficaria por aquilo mesmo. Nós quatro, dentro de um quarto, no fresquinho do ar condicionado, falando aleatoriedades no escurinho.
Mas não, o casal 20 tinha que estragar tudo ao começarem a se pegar ferozmente no sofá, fazendo os barulhos mais estranhos possíveis.
‘Tá de sacanagem, né.
O que eles estavam pensando? Que assim que começassem a se pegar, por tabela, eu e o consagrado também iríamos? Era ridículo, estúpido, idiota.
Idiota, idiota, idiota.
Tão idiota que deu certo.
Não sei bem, mas os acordes de 505 despertaram algo – e continua despertando toda vez que relembro esta memória tão vívida. Em algum momento entre ele se aconchegar perto de mim, com medo que eu fugisse, e aumentar a porra do volume da música ao máximo para não ter que escutar a transa com roupas ao lado, sentei nas coxas dele e larguei o foda-se.
O balde é meu e eu chuto e busco quantas vezes quiser.
O corpo dele estava quente em contraste com o ambiente, sua mão foi para a minha nuca. A mera lembrança dele puxando os cabelinhos ali presente me arrepia. O hálito mentolado bateu no meu rosto, inebriando meus pensamentos. Por que não queria isso minutos atrás mesmo? Então fechei os meus olhinhos e me deixei levar. Só para ele errar o alvo e beijar o meu nariz.
Isso é o que acontece quando duas pessoas que mal enxergam no claro tentam se beijar no breu. Fiquei congelada por alguns segundos e precisei conter o ímpeto de soltar um: Mano, que porra foi essa?
Decidi que iria ignorar que aquilo aconteceu. Se estava no inferno só restava aproveitar o passeio.
Tentamos de novo. Agora vai. O beijo encaixou direitinho, suas mãos percorreram meu corpo, numa carícia boa demais para a minha sanidade. A barba arranhava meu rosto de uma forma gostosa. Precisei me segurar para não mandar o meu anjinho da moralidade para a casa do caralho quando, depois de um tempo, seus beijos desceram para meu pescoço e colo. Suas mãos foram para dentro da minha camisa, tentando tirá-la e tive que lembra-lo que não éramos os únicos no quarto. Não que ele se importasse. Ou o casal. Mesmo assim preferi fazer com que aquilo não se tornasse uma suruba. Deixa para a próxima.
Tudo ia de acordo com a normalidade quando, do nada, Over the Horizon começou a tocar, interrompendo a batida indie. Em pânico, procurei meu celular, mas nada de achá-lo. Se eu não atendesse meus pais, era capaz de eles se solidificarem ali.
No desespero, quando fui desmontar do garoto, esqueci que aquilo era uma cama de solteiro e não havia mais nada do lado. Caí lindamente no chão, em cima de um violão que ali jazia, fazendo o maior estrondo possível.
Ninguém riu, todo mundo tenso. Levantei rápido, dolorida, e tateei o escuro a procura de onde vinha o som. Achei. Virei a tela para cima e lá estava: “Pai”.
- Oi, filha.
- Oi, paizinho. – Não teve sequer um som de respiração no meu lado da linha, o que era estranho pois sempre que eles me ligavam os gritos clichês como “tira o cigarro da boca” surgiam.
- Aconteceu alguma coisa? – Afastei o celular e olhei para a tela quase chorando. Como é que você sabe, cara?
- Nada.
A conversa continuou, e as pessoas ao meu redor me olhavam, sem paciência. Ciente de que estava atrapalhando o momento, tentei correr com a despedida. Finalmente desliguei o celular, um suspiro de alívio escapou dos meus lábios ao mesmo tempo que o quarto explodiu em risadas.
Ainda bem que meus amigos não perdiam o humor. Ou a disposição.
“I probably still adore you with your hands around my neck
Or I did last time I checked”
Capitu Oblíqua