domingo, 16 de outubro de 2016


Entre patas e beijos
Olha, como o dia tá quente hoje hein! O calor é tanto que eu tenho que beber água toda hora e mesmo assim não consigo fechar a boca por um segundo sequer. Enfim, tava aqui olhando para trás e percebi que tudo passou muito rápido né. Afinal as coisas sempre passam voando quando são marcantes, principalmente no lado positivo. Bom, você que está lendo não deve saber nada sobre mim (pelo menos eu acho), então vou lhes contar brevemente a minha história. Vou começar voltando no tempo em um determinado dia a mais ou menos sete anos, quando o conheci. Naquele dia, que me lembro como se fosse hoje, ontem ou qualquer outro recente, o famoso e tão comum 'inesperado' aconteceu. Na verdade, sendo mais específico, foi a noite daquele dia (sem nenhum tipo de trocadilho) que fica na minha memória, e de outros também, até o presente momento.
Eu estava vagando pelas ruas, inocente que era (ainda sou, mas nem tanto), procurando alguma coisa pra comer, até o momento em que fui atropelado perto da minha atual casa. Até hoje eu tenho sequelas disso. Meu pai (não o biológico, mas o adotivo) foi quem viu a cena. E o grito\choro de dor que eu dei na hora foi tão alto que alguns dos vizinhos ouviram de dentro de suas casas.
A partir de então eu fui levado pelo meu pai (adotivo) pra casa, onde resido atualmente e sou muito feliz. Sei que apronto demais às vezes, fugindo do banho e fazendo coisas onde não se deve fazer, mas sou muito grato por eles terem me adotado e sinto que todos gostam muito de mim. Sinto que sou parte deles, dessa família. Eles cuidam  de mim com muito carinho, tanto quando estou doente como quando não estou, e isso me faz sentir bem.  
Eu só queria que meus colegas tivessem a mesma sorte que eu tive. Não é qualquer um que tem a família que eu tenho. Muitos não tem nenhuma e estão sós por aí como eu estive antigamente. Quem sabe um dia eles consigam um lar, onde sejam felizes e gratos como eu sou. E também para que possam abanar o rabo para algúem pois isso faz bem pra gente, além de ser legal demais. É, quem sabe né...

Senhoralguém

Obrigado

Um dia cotidiano de trabalho, o sol nasce frio, os ventos são calmos e o clima ainda é de uma cidade que está acordando, os passarinhos ainda estão dormindo e apenas alguns cantam, não há carros na cidade, apenas os ônibus passam, cheios, mas as pessoas mesmo em situação de desconforto por alguma razão encontram-se solidárias e felizes, embora sonolentas. 
Candelária, 5:40 da manhã, centro da cidade do Rio de janeiro, na rua Buenos Aires, algumas ruas depois da igreja, o jornaleiro abre sua banca e começa a limpeza da calçada que estava repleta de sujeira, esse não era o trabalho dele, mas o lugar ainda estava vazio, não havia ninguém espiando, então ele não via problemas em fazer um pouquinho do que vai além do seu ofício, ele varreu toda a calçada que é grande, e então depois disso ele voltou a banca e começou a destacar os jornais. A padeira chega cerca de 5 minutos depois e compra um jornal, cumprimenta amistosamente o homem, abre a padaria e começa a fazer os pães, então com muito afago ela já costumeiramente pega um pão e passa a manteiga, esquenta o café e leva até o Padeiro que muito agradecido toma o seu primeiro café, isso se repete sempre.
No ônibus o motorista cumprimenta os passageiros com um sorriso muito bonito, embora faltem alguns dentes, e mesmo que inapropriado um passageiro que era advogado senta próximo ao painel do veículo, e começa a conversar amistosamente com o trabalhador. Nas ruas, o mendigo entrega suas latinhas ao ferro velho que fica próximo a Providência, e recebe seu trocado, que logo gasta justamente na Rua Buenos Aires, aonde tem o seu velho amigo o jornaleiro que lhe vende a raspadinha, após o advertir sobre o gasto excessivo do dinheiro nesse vício, e com suavidade o morador de rua agradece, e logo atrás dele um toque de uma mão cheia de calos envolve seu ombro, uma voz nordestina lhe cumprimenta com um bom dia, é o motorista, que acabará de chegar ao ponto final e fazia sua parada de descanso. 
Com um pão fresco na mão, o motorista o estende ao pobre homem, a padeira observa feliz de longe a atitude do motorista. De repente todos olham pra trás, era o Advogado desligando o telefone, e então cumprimenta todos, e compra mais um jornal, e então começa a conversar sobre futebol com o motorista e o homem de rua, era mais uma goleada do flamengo sobre o fluminense de 4 a 1, e todos brincavam com o advogado tricolor e padeira logo se aproximou para participar da rodinha. 
No dia anterior, a padeira tinha arrumado a casa inteira, ela estava muito cansada, e pensar que o jornaleiro tinha varrido o chão e adiantado o serviço dela, foi maravilhoso, um verdadeiro alívio. Obrigado... O jornaleiro sempre acorda atrasado e nunca toma café em casa, entretanto a padeira sempre lhe entrega seu pãozinho com café e mata sua fome. Obrigado... O motorista tem uma rotina estressante, mas dirigir de manhã com os passageiros mais simpáticos reduz o seu nível de stress, ele agradece. O mendigo passou fome a noite, e está agradecido pelo pão que comeu graças ao motorista. O advogado estava triste pela derrota do seu time, mas ficou feliz porque seus amigos animaram o começo do seu dia. 
Mais um dia no Rio de Janeiro, a cidade que todos se lembram pela sua violência, desigualdade, sofrimento. E que todos se esquecem da sua solidariedade, da gratidão do carioca. 

Piper Chapman
NOVENTA

Hoje faço noventa anos. 
Meus cabelos brancos, minhas rugas, minhas costas curvas – tudo em mim é testemunha de cada um dos meus 32850 dias de vida. Meus olhos estão cansados, minhas mãos cobertas de manchas... ah, minhas mãos! Mãos que sentiram o tato de José pela primeira vez aos 17 e depois, por cinco vezes, seguraram também nossos filhos que chegavam ao mundo, pulsando vida. Mãos que fizeram cócegas, enrolaram brigadeiros, fizeram bala de leite todo natal. Mãos que, assim como as de José, foram envelhecendo sem que sequer pudéssemos nos dar conta. Até que um dia, sem menos esperar, sentiram o frio da despedida, tremeram de medo da solidão, se encontraram sem as digitais de José.   
Eu podia chorar por isso, mas não vou. Hoje faço noventa anos. 
E assim como meus dias foram passando, os dias de meus filhos também passaram. Entre altares e festas de formatura, tive a certeza de que o tempo não para. Vi a vida renascer 14 vezes, encontrando um pouco de mim mesma em cada uma daquelas crianças que corriam pela casa, exatamente como seus pais também fizeram. Enquanto alguns chegavam, outros partiam. Mais de uma dúzia de vezes vesti preto e senti o assombro do revés de vida. 
Eu podia chorar por isso, mas não vou. Hoje faço noventa anos. 
Junto com cada um que partiu, foi uma parte de mim. Junto de cada um que nasceu, ficou uma parte de mim. E assim eu, minhas histórias e meu segredos fomos nos diluindo. Deixei de ser moça, virei dona, acabei senhora - senhora de mim, mas também senhorinha. Daquelas de óculos e cabelo branco, que não entende muito bem essas coisas de que tanto falam hoje em dia. Mais um corpo antigo que tem que ir ao médico e tomar remédio. Virei a visita semanal que cada um dos cinco pedaços de mim e suas proles sentem-se obrigados a fazer. Tornei-me mais uma daquelas que espera A hora chegar. 
Só que a minha hora ainda não chegou. Hoje faço noventa anos. 
E mais tarde, quando a casa estiver cheia com gritinhos dos netos de meus filhos e preenchida com saudosas risadas ao falar em José, sei que vou estar completa. Ali, bem ao meu lado, estarão todos os pedaços de mim que andam pelo mundo. Por minha causa, cada um deles recebeu a vida. Agora, sem que nem percebam, me retribuem, me dando a alegria que me mantém viva.  Não haverá nenhum arrependimento, nenhuma preocupação. Só vida. 
Hoje faço noventa anos. 

Para escutar depois de ler: https://www.youtube.com/watch?v=unjfi5vN0-M 


Julinho da Adelaide 

Além de auaus: onomatopeia traduzida

Parece que foi ontem quando a fome me atormentava e me fazia querer revirar tudo. Era loucura! Muitos cheiros misturados, poucas cores. Cada viela suja e longa e cheia de sacolas me parecia um banquete. Eu adorava! Comida! Tinha cheiro de coisa gostosa e ao afogar a cabeça ali eu sentia ainda mais forte o cheiro do resto de carne do restaurante que fica na esquina. Barbecue! Aí você veio na minha direção, passos largos, postura armada, braço esticado e eu corria pensando que iria me atacar como os outros grandes da rua. Foi quando me conquistou, ao ficar na minha altura e me passar a mão, delicadamente, olhando bem no meu olho. Teu cheiro era doce e ainda é. Eu sentia o calor das suas mãos grossas passar pelo meu pescoço e chegar bem perto daquela coceirinha, na orelha. Eu acelerei, por dentro. Minha pata esquerda sempre debate quando alguém encosta nessa orelha.
Parece que toda vez que eu como escondido aquele saco barulhento cheio de coisas miúdas que tem um sabor doce e muito alegre ou quando penso que seu chinelo tem o mesmo sabor daquela comida que você deixa de comer, você vai chegar falando muito alto e bem acima da minha cabeça e eu penso que vou ter que voltar para viela. Lembro do frio, me rebaixo, retraio e deito. Mas eu sinto seu cheiro chegando eu sei que vai ser muito legal e vai ter comida e você vai me chamar para dormir nessa coisa macia e branca que você deita sempre e vai me apertar e soltar uns sons que eu não entendo mas sei que é carinhoso e eu vou querer te devolver tudo. Eu te devo, e devolvo.
Parece que você fica bravo quando me chama para dormir na sua maciez e eu não olho e nem vou. Às vezes eu queria te cercar e ficar bem aquecido ouvindo seu rosnar engasgado e grosso que você faz ao dormir e virar um pouco pra não sentir o ar quente da sua boca meio azedo. Mas hoje eu não posso, porque tem um barulho lá fora e quem cuida disso sou eu, porque de mim cuida você e amanhã quando você acordar eu vou saber que você está bem e vou até sua cama. Aí eu começo a te falar tudo o que aconteceu e fico feliz e balanço o rabo e corro pela casa e pulo em você. Porque eu adoro muito você. E por amor, eu te devo. E quando eu não puder mais, lembre-se disso.



Oliver Fagundes

NHAMANDU JOGWERU

O sol nasce. Desperto e meus irmãos já estão a postos para iniciar o ritual de pintura. Hoje é dia de celebrar à mãe Terra, agradecer ao pai Sol por toda diversidade e ao sucesso da colheita. Desde de curumim aprendi que o bicho homem veio do verde e o verde dissolverá sua carcaça quando seu universo singular vier a findar-se. Aprendi também que a prática de duas palavras é fundamental para a nossa permanência nesse espaço físico: respeito e equilíbrio.
A cerimonia sagrada se inicia e com ela nosso ritual pulsado. Todos em ordem com seus maracás chocalhando. Um pé batendo mais forte no chão em um compasso binário para marcar o ritmo da dança e da música. O uso do corpo como barulho e a voz feminina em consonância com a voz masculina concede um contraste musical que nos basta. A fogueira complementa o culto à natureza, juntamente com os curumins da tribo, signo máximo de perpetuidade.
Me sinto mais uma vez vivo. Vivo por respirar desse ar purificado. Vivo por beber dessa água ungida. E vivo, principalmente, por todos aqueles ao meu redor que me permitem transcender do meu jeito próprio, longe de toda aquela poluição e deturpação de valores que eu vi na cidade grande, longe do homem branco. Enquanto reflito sobre o quão abençoado sou, continuo a dançar. Bato o pé direito com mais leveza, depois o esquerdo cm maior força, em minha mão o maricá soa. Me sinto parte da natureza.
A natureza, minha tribo e eu somos um só. Por isso a necessidade de agradecer por esse vínculo tão refinado. Tudo que eu tenho veio da mãe terra, e tudo que eu emito vai para mãe terra. União agraciada pelo pai sol que emana sua energia para selar essa ligação. A fogueira continua a queimar e o maricá a soar.


Nina Meneses

A culpa não é das estrelas, é das células

Eu tinha 12 anos quando fui diagnosticada com Carcinoma de Células Grandes, câncer no pulmão, estágio IV.  Aquilo definitivamente não foi esperado, foi um baque, um choque, um soco bem na boca do estômago, sabe? Daqueles que doem à beça. Minha mãe chorou durante dias e meu pai ficava repetindo que aquilo não estava acontecendo. Não com a menininha dele. E eu só tentava ser forte, o mais forte que eu podia ser. Por eles. No fundo, eu sabia que ia morrer. Eu só não pensei que ia demorar tanto.
Comecei o tratamento assim que descobri que tinha uma doença que estava me matando aos pouquinhos. Minha vida acontecia dentro de hospitais com agulhas espetadas por todo o meu corpo, eu não ia mais à escola, nem ao cinema, nem brincava com as minhas amigas. Eu só ia para os hospitais e esperava ansiosamente o dia em que eu não precisaria mais ir. Meus pais também não aguentavam mais esperar por esse dia. Mas acho que eu e eles tínhamos uma noção diferente de como ia ser quando esse dia finalmente chegasse.
Veja bem, eu não sou suicida. Mas eu já não tinha cabelo, amigos, diversão. Eu só tinha uma careca e minhas amigas eram as enfermeiras que aplicavam drogas todos os dias em mim sabendo que aquilo não estava funcionando. Eu tinha pais que estavam gastando mais do que podiam com um tratamento que não ia me curar. Eu tinha uma esperança que a velha amiga Morte me buscaria logo. Eu tinha só essa esperança.
E ela veio.
Dois meses depois, faltando uma semana para o meu aniversário de 13 anos, ela veio. Eu a senti chegando, meus pais também. Minha mãe me abraçou até o fim e meu pai segurou minha mão até ela ficar gelada igual a um picolé. E aí eu morri. Aceitei a morte como uma velha amiga e parti desse mundo junto a ela. E finalmente, eu estava livre.


Afrodite

Fuga pela Vida

Yusra Mardini, treinava natação desde os 3 anos de idade, já disputou e ganhou mundias por isso. Em agosto de 2015 viu sua casa ser destruída por uma bomba, uma bomba como muitas outras que já caíram e destruí muitas outras casas em seu país. Um pais arraso por uma guerra civil que já dura 5 anos. Mardini, em seus 17 anos na época, sem casa e sem país decidiu fazer igual muitas pessoas cansada da guerra e querendo viver com o mínimo de paz. Decidiu então se juntar a um grupo de refugiados e atravessar o Mar Mediterrâneo em direção a Europa.
Mardini e sua irmã embarcaram em um bote com capacidade apenas para 6 pessoas, com outras 18. No caminho de sua travessia em direção a um futuro ainda inserto Mardini e seu grupo sofreram um acidente no percurso, seu bote com superlotação virou em mar aberto. Mardini, nadadora desde a infância ajudou a salvar não só sua vida, mas a de todas que ali estavam com ela. Nadando por 3 horas em mar aberto, lutando pela vida que podia afundar junto com aquele bote.
Meses após todo esse percurso Mardini agora residindo na Alemanha com sua irmã continua sua viagem, treinando para que um dia possa competir, mesmo convivendo com a incerteza de que isso será possível, agora sem uma nação a qual defender tudo isso se tona mais difícil. Até que em junho de 2016 ela e mais 9 atletas foram convidados a participar de um time de refugiados do COI. Um time olímpico que visa apoiar e dar a oportunidade que foi perdida com a Guerra.
Em agosto de 2016, no Rio de Janeiro, quase um ano após começar a travessia em direção a Europa, Mardini competia os 200m rasos representando o time dos refugiados. Não só aos atletas, mas a todas a pessoas que saíram de seu país natal deixando para trás família, amigos e memórias. Mardini não ganhou medalhas, chegou nem perto de subir ao pódio, ficou em 41° lugar de 45°. Mas Mardini se diz grata. Grata pela vida. Grata pela oportunidade de representar pessoas em situação venerável igual a dela. Grata pelo apoio dos atletas. Grata pelo apoio da confederação. E mais grata ainda a todos que junto a ela lutou para atravessar o mar aberto. Mas a viagem não para por aí, para Mardini e sonho de conquistar um pódio não foi perdido, e ela espera ter a oportunidade de dar esperança a outros refugiados de continuar a ter um sonho.


Sabina Kundera

11 de setembro de 2001. Sim, eu estava lá. Tinha acabado de completar 28 anos e trabalhava no World Trade Center, mais conhecido por torres gêmeas, em Manhattan. Parecia um dia normal, fui na cafeteria de sempre, tomar meu expresso duplo de sempre, e depois parti para o escritório. A manhã corria, papeladas e relatórios para preencher, cobranças do chefe... E então aconteceu. Ouvimos um estrondo por volta das 10 AM e nos disseram que a Torre Norte havia sido atingida por um avião entre os andares 93 e 99. Eu, que trabalhava na sul, me apavorei, como todo mundo. Ninguém entendia muito bem o que estava acontecendo, mas o conselho de segurança nos mandou voltar a nossos postos, pois nosso edifício estava seguro.
Alguns minutos depois ouço novamente um barulho muito alto e logo em seguida veio um cheiro insuportável de queimado. Os andares acima do meu também haviam sido atingidos. O prédio ficou em chamas por um tempo – não sei dizer ao certo – enquanto o caos se instalava por toda parte. Ficamos desesperados, mas da nossa localização não tínhamos como sair, era muita fumaça. Senti uma tremedeira, quase como um terremoto e então percebi que a torre estava desabando. E depois escuridão.
Quando acordei, a vista demorou para se acostumar. Devem ter se passado horas, que mais pareciam dias, nas quais só sentia fome, e sede, e dor. Muita dor. Quando tive consciência de que estava no meio dos destroços de um prédio que havia acabado de cair, quis gritar, mas não consegui. Estava prestes a desmaiar de novo, ou quem sabe morrer, mas tentei me manter firme. No resto do tempo comecei a pensar muito: sobre o que será que tinha acontecido, como estariam meus amigos, meus colegas de trabalho, minha família. De repente senti uma saudade imensa de todos eles e tive diversas daquelas reflexões existenciais.
E então chegou meu milagre. Ouvi vozes, uma em especial se sobressaindo, e senti os destroços do minúsculo espaço em que me encontrava remexendo, até que veio um clarão e uma mão, que pertencia a voz. Depois disso foi tudo um borrão. Fiquei semiconsciente e a voz se identificou como o bombeiro Tom do FDNY, e falou frases inspiradoras e motivacionais.
Dizem que a primeira coisa de uma pessoa que a gente esquece é a voz. Mas eu nunca me esqueci daquela que me salvou dessa experiência traumática. E que até hoje me leva a ser uma pessoa melhor.


Esquerdogata Felinazi

A mortadela

Começo meu dia, hora de trabalhar.
“Tia, tem uma moedinha pra me ajudar a comprar alguma coisa pra eu comer?”. Frase que repito por mais de cinquenta vezes durante um dia inteiro.
Passa uma senhorinha com carrinho de compras e, opa, dois reais. Agora um cara com bebê no colo e dez centavos, assim como o estudante. Depois um homem de terno e um “vai trabalhar vagabundo!”. E, é claro, aquela tia que passa por mim andando rápido e segurando a bolsa com medo que eu assalte. Mas, finalmente, ela. Aquela moça do sorriso largo, dos quilinhos a mais e da risada nada discreta. Aquela que não veio com centavo nem real nenhum.
“Vem aqui, meu filho, vem que vou pagar um lanche pra você aqui nessa padaria.” Se eu tinha dúvidas de que Deus existia, ali passei a acreditar.
Tá certo que já ouvi inúmeras histórias de pedintes que são viciados e metem qualquer caô pra conseguirem dinheiro pra droga ou bebida. Mas juro, eu realmente estava morrendo de fome. E aquela moça salvou meu dia. Ganhei pão, e com mortadela até! Pra muita gente normal, mas pra mim, um luxo.
Eu não sei o nome dela, nem onde ela mora, muito menos o que levou ela a me ajudar. Só sei que o gesto dela forrou não só meu estômago como também a minha vida. Foi bonito demais enxergar que ainda existem pessoas no mundo que são capazes de fazer alguma bondade. Mesmo no meio de tantas frases como “não ajuda esse moleque aí não!”, “se der uma vez ele não vai sair mais daqui!” e “cuidado com essa gente, eles podem te roubar!”, ela ignorou tudo e resolveu pagar um lanche pra mim.
Resolveu preencher minha fome e também o meu coração, de carinho e reconhecimento. Ali senti uma sensação de dever com aquela moça, gostaria de retribuir o ato dela de alguma maneira. Talvez algum dia eu consiga construir uma vida fora das ruas, ou quem saber juntar uma graninha, aí eu faço isso. Vou catar essa mulher e dar a ela um sanduiche bem caprichado também. E é claro, recheado com o melhor acompanhamento. Mortadela!


Ba2007

É o início, o meio e o fim

 Leninha já não caminhava pelos jardins como de costume mas preferiu que fosse ali o encontro que sentia ser o último. Não sabia, mas sentiu. Não por ser localizado atrás de sua casa ou porque a idade não permitisse encontros externos. Mas porque foi ali, no centro daquele jardim, na árvore mais alta em que Carolina apareceu pela primeira vez e estendeu a mão. A mão que mal cobria uma folha daquela mangueira. Mas estendeu. Leninha foi ao encontro e segurou forte, selando as mãos e a amizade que começara ali. Não impediu que na descida o joelho fosse ralado, mas impediu que se sentisse sozinha. O vínculo estava firmado para além de seu último dia. Carolina chegou ao jardim já segurando a mão de Leninha, apoiada em seu próprio colo. As mãos que já não eram mais pequenas, tinham marcas de experiências e de gratidão. Não havia mais o que conversar, o sentimento que a tomava era o mesmo de Leninha. Poucas palavras foram ditas. O que falaram ali foram os olhos, que enxergavam naquele lugar as brincadeiras de criança, as fugas adolescentes e os filhos brincando no local que as uniram. As lágrimas foram inevitáveis e as palavras naquele momento foram insuficientes para demonstrar a gratidão que era recíproca. Mas o encontro era necessário. Aquele último abraço era necessário. Necessário para que Leninha pudesse partir e que ambas pudessem estar tranquilas da importância de uma na vida da outra. Desde aquele dia, ainda no alto daquela árvore, Leninha mostrou que a gratidão não era só o segredo da construção daquela amizade. Era o início. E agora, no último abraço, era o fim.


Sam Castiel

Só agradeço àquele cara

Não sabia o que aquele cara estava olhando. Parecia que nunca tinha me visto, que nunca tinha me dado um zero numa prova, que não sabia que eu era aquele moleque que sempre acabava com suas aulas. Isso porque ele estava me olhando de um jeito que eu não estava acostumado. Ele tinha um olhar de preocupação, não a preocupação de sempre de eu, mais uma vez, acabar com uma aula que ele tanto tinha se dedicado para preparar. Estava estranho mesmo.
A partir dali, comecei a pensar no que aquele cara poderia estar querendo naquela manhã de aula, se era me punir mais uma vez chamando minha mãe na escola, (o que não daria certo porque o que mais tinha na minha casa, além de contas pra pagar e crianças, eram convitinhos escolares desse tipo) ou se era... Eu não sei! Não conseguia pensar em outra coisa vindo dele, vindo de ninguém que tenha a profissão dele. Talvez ele estivesse me olhando da mesma forma que todo mundo olha ali na parte baixa de Copacabana.
A manhã foi passando chata como sempre e eu fui esquecendo a estranheza daquele olhar, mas não tardou para o meu desconforto voltar. A próxima aula era dele. Ele entrou e eu fingi que estava tranquilo, não me comportei e não o levei a sério como sempre, mas para minha surpresa ele não se incomodou, continuou a aula como se eu não estivesse ali e conseguiu chamar a atenção de todos até que eu me vi sozinho, sem ninguém para rir do que eu falava, sem ninguém para não prestar atenção comigo. Eu não desisti, não podia deixa-lo vencer e, na hora da saída, prometi para mim e para ele que na próxima aula, se eu fosse deixa-lo dar aula, seria pior. E o que ele me respondeu? Ele disse “Venha! Vou adorar te ter aqui mais uma vez” com o maior sorriso do mundo.
Eu fui e fiz as mesmas coisas de sempre, mas dessa vez tive sucesso. Sucesso com alguns colegas, mas ele continuou a aula como se toda turma estivesse em silencio e aquilo me deixou irritado. Fui até a mesa dele e o desafiei “Você vai deixar isso?! Vai continuar aí, como se nada tivesse acontecendo?! Faz alguma coisa fessô, vai deixar a gente zoar com tua aula memo??” E ele disse que ia continuar, disse que a gente precisava disso, que um dia a gente ia agradecer por ele não ter desistido, por ele não ter parado aquela aula que eu, mesmo fazendo de tudo para destruir, sabia que ele estava falando que as preposições são as palavras que estabelecem, uma relação entre dois ou mais termos de uma oração.
Nessa hora eu saquei o olhar. Vi que ele talvez fosse a pessoa que mais se importava comigo, que mais se importava com a pessoa que eu seria. Por causa disso, eu percebi que o que ele estava me ensinando não era só como aplicar as preposições mas, com seu exemplo, me mostrou como ser alguém perseverante, alguém que acredita que não sou o que a sociedade me destina a ser.
Só agradeço àquele cara que por ter plantado uma semente em mim sabendo que daria fruto. Só agradeço àquele cara por ter transmitido conhecimentos que estavam além de um currículo. Só agradeço àquele cara que me fez pensar que eram possíveis as minhas impossibilidades. Só agradeço àquele cara me ajudou a ser capaz de escrever essa crônica.

Clodovil Viu­

DIÁRIO DE UM FETO

Deparo-me em uma corrida, não sei bem como cheguei aqui e nem o motivo da mesma, só sei que quero chegar primeiro que todo mundo, e estou conseguindo, espera, me ultrapassaram, mas vou conseguir, estou chegando perto, vou ganhar, vou ganhar, GANHEI! Hahaha eu sabia que conseguiria ganhar, eles não eram páreo para mim. Espera um momento, que lugar é esse? 
Parece que estou dentro de alguém, não a conheço, e pelo visto ela nem sabe da minha presença, mas me alimenta, me aquece, consigo sentir o coração dela pulsar, é como se ela me amasse sem me ver, e eu a amo também. Não sei explicar, acredito que esse sentimento seja algo tão verdadeiro que nem posso compreender.
Três meses se passaram, acho que finalmente fui descoberto, e percebo que o amor aumentou. É como se eu pudesse sentir a felicidade dela em saber que eu existo. Tem um homem que fala sempre comigo, apesar de ter uma voz estranha e falar tudo no diminutivo, ele é legal, acho que o nome dele é papai.
Quinto mês! Acho que eles descobriram que sou um menino, já me chamam de Marcelo. Estou doido pra sair daqui e ver o rosto dessa pessoa, já até descobri o nome dela, é mamãe. Não imaginei que o prêmio por vencer aquela corrida seria algo tão grande. É inenarrável a felicidade que estou sentindo, como alguém consegue me amar tanto sem nem se quer olhar no meu rosto, nossa ligação vai além desse cordão umbilical, vem do coração, sinto como se fossemos um só.
266 dias se passaram, estou louco para sair daqui, sei que ela deve ter sofrido me levando pra cima e pra baixo, dividindo sua alimentação comigo, ouço queixas de dores, mas ainda assim o nosso amor só aumenta junto com a minha gratidão. Chegou a hora, estou saindo, finalmente consegui ver o rosto dela, ela é linda e está chorando de felicidade me segurando no colo. Só queria dizer uma coisa para ela: OBRIGADO MAMÃE, TE AMO!


John Kramer

Visão de Mundo

“No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho”. Quando fiz esse poema com um tom tão pessimista da vida, não soube analisá-lo de maneira em que onde há um obstáculo, há uma vitória. Hoje, sou capaz de enxergar essa verdade através de um colega de profissão chamado Vinicius de Moraes.
Nossas diferenças eram extremamente notáveis: Nasci em Minas Gerais, de personalidade pacata, um mero escritor e jornalista revoltado com o cotidiano e não acreditava que haveria uma solução para o país diante de seus problemas. Diante desse quadro, na minha vida apareceu Vinicius, um moço de carisma extrovertido (afinal carioca tem essa característica) e um mulherengo de marca maior e que retratava em seus poemas o principal motivo da sua vida: o amor.
Esse fato gera uma contradição para o leitor: Se esse cara “pegava” todo mundo, como poderia falar de amor? Talvez, pelo fato de ter se casado 9 vezes e nunca ter desistido de encontrar sua verdadeira cara metade e, com ele, o seu maior sentimento embora tirado como mulherengo: o amor.
Em um dos seus escritos ele citou: “e esquecer tudo ao vir um novo amor/ e viver esse amor até morrer/ e ir conjugar o verbo no infinito.”, pude perceber que enquanto houvesse esperanças nas pessoas e inclusive em mim em encontrar o amor, meus desejos descritos em poemas poderiam ser solucionados seja em relações políticas, sociais e amorosas. Eu apenas teria esperança em um mundo melhor ao carregar o sentimento mais puro em meu peito: o amor.
Sempre gosto de ressaltar que os escritos de Vinicius ficarão no semblante de diversas gerações e da mesma forma que modificou minha visão pessimista sobre a vida, ele impulsiona aos próximos leitores a encontrar esperanças pela vida através do único sentimento possível de curar todos os conflitos: o amor.
Reconheço e agradeço pela comunicação desse escritor com meu coração de forma indireta e, reitero que, ele foi capaz de descrever a única e verdadeira finalidade do homem nessa vida: o amor.


João de Santo Cristo



Milagre da Santa

Eu sou Maria, Maria de Jesus. Pode ter sido meu nome que chamou atenção de Nossa Senhora ou apenas minha fé que me fez receber o melhor presente da minha vida. No dia 20 de outubro de 2003, meu quarto filho nascia. Não foi um parto fácil. Meu bebê engoliu água e, por isso, poderia ter muitas infecções. Eu rezei dia e noite para nada lhe acontecer, mas não surtiu muito efeito. Conforme os dias passavam, nada parecia melhorar.
Decidi, então, falar com a minha Nossa Senhora de Aparecida, padroeira das grávidas e dos recém-nascidos, para cuidar de meu filho e não deixar ele ir. Pedi como nunca havia pedido para Nossa Senhora antes. Prometi pagar pela benção em Aparecida e de joelhos quando meu filho completasse 12 anos, além de criá-lo na Igreja.  
Algumas dias depois, com a ajuda dos médicos e da Santa, meu filho melhorou. Foi uma vitória tão grande, agradeci demais à Nossa Senhora. Meu filho começava a viver sem aparelhos e saudável, demos a ele o nome de Gabriel de Jesus.
Todo domingo a família ia à Missa, além de participar das atividades da Igreja. Eu rezo muito para que ele vire coroinha, mas o menino ainda é novo para decidir o que fazer.
Conforme os anos foram passando, juntei o dinheirinho da viagem. Decidi levar Gabriel comigo para me acompanhar, já que não dava pra ir a família inteira. No dia 11 de outubro, partimos para Aparecida do Norte, e chegamos no dia seguinte, no dia de Nossa Senhora Aparecida.  A passarela era alta, tinha 35 metros de altura, e 392 metros de comprimento até chegar a Basílica Velha. Eu, de joelhos, e Gabriel me acompanhando partimos para cumprir o prometido.
Atravessar aquela passarela até chegar até a imagem de Nossa Senhora não foi fácil, meus joelhos se esfolaram e o calor era demais, mas meu filho estava ali ao meu lado por causa dela!  Tantos outros fiéis ali cantavam músicas, superavam desafios e agradeciam àquela que nos ouviu, a padroeira do Brasil. E eu era uma deles. 


Valdea Bennet

Respirando Gratidão

Acordei meio tonto de manhã mais uma vez, completando assim uma semana direto. Mas aquela era uma tontura feliz, uma tontura que me lembrava de me manter feliz por estar vivo.
Havia duas semanas que eu tive a crise. Não parava de tossir, não conseguia respirar. Havia desmaiado umas três vezes naquele dia até eu conseguir ser levado para o hospital. Foi quando veio a notícia: Meu pulmão esquerdo tinha parado de funcionar e o direito já não funcionava 100% e eu precisava urgentemente de um transplante.
Eu me desesperei. Desmaiei ainda mais uma vez e só acordei quatro dias depois, curado. Fiquei imensamente surpreso e feliz quando a doutora me disse que eles haviam conseguido um doador a tempo e o transplante fora um sucesso. Eu não podia acreditar na sorte que tinha tido naquele dia e só conseguia pensar no quanto eu queria encontrar a pessoa que salvou minha vida, abraça-la e agradece-la milhares de vezes por isso.
Eu não podia afirmar o tamanho da minha gratidão. Era incalculável. Meu maior desejo naquele momento era ir atrás do meu herói ou heroína pra saber o que eu poderia fazer como forma de agradecer pelo ato.
Infelizmente, quando perguntei à doutora quem havia doado pedaço do pulmão a mim ela disse que a pessoa pedira para não ser identificada. Contudo, ela disse que o doador tinha deixado um bilhete para mim que, quando eu li, continha um simples pedido que era tudo o que eu precisava: uma forma de agradecer pelo gesto. E foi o que fiz. Daquele dia em diante eu jurei nunca mais fumar de novo.


Assinado: Mindinho 

Nota de agradecimento
Oi vizinha, queria te dizer um muito Obrigado!
Não te conheço direito, mas desde que nasci nesse lugar, tive uma boa hospedagem. Ouvi dizer que você é uma menina, por isso tem esse cabelo grande que esquenta minha casa.
Se puder, lave menos ele, porque o shampoo que você usa me deixa um pouco tonto, mas em compensação quando você passa quase uma semana sem lavar, é sempre uma festa!
Você deixa um lanche crocante que a galera aqui chama de caspa... só de pensar me da água na boca. Você é muito gentil moça. Quando eu to tomando minha bebida preferida, que aliás você também produz e me deixa tomar de graça, você mexe no cabelo e faz uns movimentos de vai e vem tão gostosos com a unha, que quase durmo...
De vez em quando vejo um pente que tem umas cerdas finas e estreitas que quando passa, leva quem está no caminho. Acho que é um transporte público, mas eu ainda não peguei. Evito ficar no caminho quando ele passa porque não sei exatamente pra onde leva. Quem pegou carona nunca voltou pra contar como é, então eu não dou bobeira na estrada. Só sei que meus amigos são muito elogiados quando chegam ai fora.
Só ouço comentários do tipo: "que cavalão!" " Esse é grande em!". Fico bem curioso... mas não quero sair daqui, você me trata muito bem e eu sou eternamente grato a tudo que você me proporcionou morando aqui. Obrigado mais uma vez. Quem sabe um dia a gente se encontre. Beijos, do piolho do andar de cima.


Luli Sweet

domingo, 9 de outubro de 2016


Eu tinha valores, uma visão de mundo.

"As mulheres tem um papel na sociedade, os homens outro"; "Ser gay é errado"; "aborto é crime"; "o bandido pobre, tem que ser punido"; "só minha verdade ta certa"; "não é culpa de ninguém que haja desigualdade"; "não existe racismo no Brasil". Até que não pensava mais assim. Até que me deparei com a realidade e o esclarecimento.
Mulheres só têm um "papel" e expectativas estimadas na sociedade diferentes das dos homens porque fomos todos criados, construídose instruídos assim. Ser gay é/era considerado errado, porque em uma maioria heterossexual esse ato é repudiado e causa nojo. Aborto é crime, mas na prática isso afeta somente as mulheres desfavorecidas.
Ninguém tem culpa de nascer onde nasceu. Devemos tentar entender o que levouuma criança, um favelado, um bandido que for a fazer aquilo e tomar medidas efetivas para reabilita-lo. Não há verdade mais certa que outra,cabe a cada um ouvir e entender o outro, e debatendo chegar a uma conclusão ou consenso. Se há desigualdade, é por causa de um sistemapolitico e econômico que favorece uma minoria poderosa. O racismo no Brasil é mascarado, hipócrita - como todo o povo – e também pesado.Sim, a onda de conservadorismo me atingiu, mas consegui me desvencilhar dela.
Dizem por ai que mudei muito... e mudei mesmo. Me afastei de toda uma forma de pensar, do meu antigo eu. Ainda bem. Não soumelhor nem pior que ninguém, sou só mais um buscando aquilo que acha certo e sensato a fazer ou acreditar.


Esquerdogata Felinazi 

Outro clichê adolescente

Eu não sei como as coisas foram desenrolar desse jeito. Não sei como viemos parar nessa situação. O mais difícil, que era amar alguém e ter a certeza que essa pessoa te ama de volta nós conseguimos, mas parece que mesmo assim nos perdemos no caminho. Caminho esse tão torto e errado que nenhum de nós sabe como voltar. Nos perdemos em brigas bobas, nos distanciamos em discussões sem sentido. Fizemos as pazes. E repetimos tudo de novo. Te sufoquei em desespero. Fui sufocada com os seus. Chorei. Gritei. Te odiei. Mas repetimos e tentamos tudo de novo.
Olhando assim parece que somos mesmo insuportáveis juntos. Tiramos nosso tempo, terminamos, voltamos e terminamos de novo. Viramos uma versão sem graça de Rachel e Ross. Nos tornamos um drama mais chato que Meredith Grey e Derek McDreamy. Uma versão menos excitante de Mr. Big e Carrie. E conseguimos enrolar mais do que Chuck e Blair. E mesmo assim ainda tentamos.
Já brigamos tanto a ponto de nem conversa mais, algo que foi tão bom e natural por tanto tempo. Não nos vemos mais, algo que antes contávamos os dias para acontecer. Não vazemos mais planos, nem nos stalkeamos, e não ligamos mais. Já não sei mais como você vai, nem se você precisa ouvir minha voz depois de um dia ruim. Não te conto mais minhas conquistas, nem as coisas bobas que aconteceu durante o dia. Não te vejo mais, nem te beijo mais. Mas ainda assim sinto teu cheiro presente em mim. Bem não entendemos mais nada e nem conhecemos mais um o outro, mas ainda espero o nosso final igual a algum filme adolescente dos anos 2000. Ainda espero receber sua mensagem e que assim possamos repetir nosso roteiro ruim tudo de novo. Ainda espero que na nossa quinta, sexta, sétima chance o nosso relacionamento parece melhor que esse texto ruim.


Sabina Kundera

A VOLTA DE QUEM NUNCA VOLTOU

Meu primeiro relacionamento sério acabou sendo interrompido por uma viagem. Ela, um mês na Austrália, e eu aqui. Morrendo de saudades, contava dias e dias para sua volta, justamente nas minhas férias ela resolve partir. Que perrengue encarar essa onda de se apaixonar fortemente. Além do perrengue que foi se comunicar com ela com um fuso horário de 13 horas.
Enfim, passado esse mês complicado ela estava de volta. Bateu aquele nervosismo de revê-la, ainda que para muitos casais um mês pareça pouco, para mim era algo de novo, foi meu primeiro relacionamento sério junto com o maior tempo distantes. Marquei com ela um almoço no restaurante Outback, onde tem minha cebola preferida. Perfeito! Ela e a cebola, tem coisa melhor?
Durante as mensagens trocadas ela me parecia estranha, algo de ruim parecia que fosse acontecer. No caminho desisti de pedir a cebola, imagina só as lembranças ruins que eu teria sempre que eu fosse pedir a cebola. Quando a encontrei ela me pareceu mais esquisita ainda, dessa vez eu estive certo que não pediria realmente a cebola. Alguma merda ia acontecer.
Comemos e conversamos, com certo clima de anormalidade. Paguei a conta e nos despedimos, ela se recusou a ir para minha casa. A saudade não foi matada. Cada um seguiu para seu ônibus. Quando sento, recebo uma mensagem de termino pelo celular. Sim! Pelo celular! Resumindo: sem cebola e sem namorada.
Aprendi que nada adiantou não ter pedido a cebola, pedindo ou não, eu sempre iria lembrar dessa frustração na minha vida. Aprendi também que o pé na bunda doeu muito mais do que a conta cara que paguei sozinho. A espera pela sua volta nas férias me pareciam ser eternas, mas como dizia Vinicius de Moraes: A vida só se dá pra quem se deu, pra quem amou, pra quem sofreu.

Arnold de Moraes

Cuidado com o vão entre o trem e a plataforma

Eram sete e meia quando eu fui deixado na estação. Eu e minha mala em mãos, fomos até o caixa para eu retirar a minha passagem. Era quase o triplo de uma passagem normal, também, pela distância e pelo vagão que eu escolhi, já era de se esperar.
Aquela seria uma longa viagem e por isso decidi comprar mais um lanche na lanchonete da estação enquanto aguardava sentado no banquinho. O trem que iria pegar sairia do norte do país até o sul onde eu começaria uma vida nova. Era a faculdade que eu sempre desejei. A distância sempre fora um fator que me impedia de realizar esse sonho mas a bolsa que eles me ofereceram recentemente era o que eu precisava para isso. O sim foi imediato. Na semana seguinte já começava a planejar a viagem, hospedagem e o que eu levaria para essa “nova vida”.
E o grande dia havia finalmente chegado. Havia me despedido da minha família na noite anterior, e da minha mãe hoje de manhã quando ela me deixou na estação. Eu estava ansioso, olhava a todo segundo para o relógio pois não aguentava mais esperar. Decidi então, para passar o tempo, dar mais uma conferida no que eu levava na mala. Foi quando eu me deparei com algo que congelou meu corpo. A gravata. A gravata que a minha namorada tinha me dado há algumas semanas e que eu ainda não tinha usado por prometer a mim mesmo que a guardaria para um momento especial. “Eu não tinha me despedido dela.”, pensei. Com a correria e a animação da mudança eu tinha esquecido de me despedir da minha própria namorada! Como pude ser tão esquecido? Mas foi quando eu percebi o porquê. Eu não conseguiria. Não conseguiria me despedir dela. Não aguentaria suportar ficar longe dela por tanto tempo...
O apito do trem soou e o auto-falante da estação anunciou para que os passageiros do trem 247 embarcassem, pois o trem partiria da plataforma em 5 minutos. Eu entrei, com o coração completamente o inverso do que estava quando chegara. Sentei no lugar que eu reservara, com a mala aberta e encarando a gravata. Peguei-a com meus dedos suados e, enquanto a sentia em meus dedos, encontrei um bilhete. “Para o amor da minha vida. Faça bom uso, lembre-se de mim quando usá-la. Do amor da sua vida.” Estava ali escrito, com caligrafia inconfundível, um bilhete de minha namorada.
Ao ver aquilo tomei uma decisão. Eu não ia mais. Não poderia me separar dela. De que adiantaria fazer a faculdade dos meus sonhos se precisaria ficar longe dela para isso? Não! Não valia a pena. Eu precisava deixar aquele trem! Levantei-me apressado com a minha mala quando ouvi o último soar do apito. Fui apressado em direção à porta. “Volte para o seu lugar, senhor. O trem já vai sair.” “Eu não ligo! Preciso sair. Não quero ir mais!” , gritava, enquanto tentava transpor a porta bloqueada pela mulher.
E então a porta se fechou. Eu do lado de dentro, olhando, abalado, a plataforma que sumia enquanto o trem partia, tal qual, o meu coração.


Assinado: Mindinho


Dezoito anos atrás eu chegava em casa pela primeira vez. E por dezoito anos observei a mesma vista pela mesma janela. Em dezoito anos vi minha mãe decorar o apartamento de um, dois, três, dezoito jeitos diferentes. Por uns doze anos corri pela mesma rua, jogando bola com os mesmos vizinhos até decidirmos que éramos legais demais pra aquilo. Na verdade não com os mesmos, pois uns vieram, outros foram, mas eu continuei ali. No mesmo lugar. Há uns quatro anos foi bem ali, naquela pracinha, no banco do lado dos balanços, que dei meu primeiro beijo. Há dois foi na mesma praça que enchi a cara pela primeira vez e no mesmo banco que deitei desacordada por horas a fio.
Há dois meses foi ali, no edifício número 78, apartamento 401, segundo quarto a direita que vibrei de felicidade quando passei pro curso que eu queria. Psicologia. Em duas horas liguei pra todo mundo que podia, e agitada resolvi que já deveria começar a planejar minha vida. Foi quando a ficha caiu. Sabe, a faculdade ficava a 1300 km da minha cidadezinha do interior. Eu não veria mais o mesmo mundo que vi por dezoito anos. Não sairia pra tomar café com mamãe na padaria da esquina porque a gente não se lembrou de comprar o pó. Não ouviria os mesmos passarinhos cantando da árvore aqui da frente, nem as maritacas que por tanto tempo me irritaram e hoje só queria que fizessem bastante barulho. E elas estão incrivelmente silenciosas. Justo hoje.
Hoje que é o dia da mudança. Passei a semana toda empacotando, encontrando coisas que não sabia que existiam mais. Fotos reveladas que achei que só tinha na memória. Quando terminei, meu quarto meio vazio me deu um vazio tão grande. Mas no fundo eu sei que não passa de um espaço pra preencher com novas experiências, novas memórias e novas primeiras vezes.


Rita

Saudade a bordo

Estou num avião indo para Santiago. Como se não bastasse a ressaca de ontem a noite, estou sentado entre um casal de velhos que não cala a boca, eles estão discutindo desde que embarcaram. Olho para os lados a procura de um assento vazio, mas, para minha desgraça, o voo está lotado. Já me ofereci gentilmente para trocar de lugar, para que eles pudessem sentar lado a lado, porém, a velha não abre mão de ficar na janela e o velho vai ao banheiro a cada cinco minutos, portanto melhor ele ficar no corredor mesmo, só me faltava ter esse cara passando por cima de mim infinitas vezes durante a viagem. Meu Deus! Como se minha vida já não estivesse ruim o suficiente! Vou ter que aguentar as próximas quatro horas entre esses dois. Estou começando a pensar que o melhor que pode acontecer é esse avião cair. E logo.
Coloco os fones de ouvido e tento me acomodar no meu assento, na esperança de conseguir pegar no sono, mas não consigo, é inútil. Além deses chatos do meu lado, não consigo parar de pensar na Mariana, no fato de que não terei mais sua doce companhia. Ela nem apareceu na minha despedida ontem a noite. De certa forma isso foi bom, fiquei tão bêbado que provavelmente iria falar alguma merda. Não fiquei chateado dela não ter ido, sei o quanto ela está triste. A notícia da minha transferência para o Chile nos pegou de surpresa. Foi como um tiro de canhão em nossas cabeças. Justo quando ela ia terminar com aquele namorado babaca dela. Sim, ela namora. Nunca a tive 100% pra mim, muito raramente saíamos num final de semana por exemplo. Mas acho que isso só me fazia aproveitar mais nossos momentos juntos. Com aqueles, digamos 50% dela, eu fui mais feliz do que com qualquer outra.
O dia em que terminamos foi o pior da minha vida. Argumentei que não precisávamos terminar, que ainda podíamos dar certo, mas sempre com um tom de insegurança na voz, relacionamentos à distância nunca dão certo. Obviamente essa ideia não foi pra frente e só de pensar que ela deve continuar com aquele namorado otário eu passo mal. Desde que paramos de se ver, tudo, absolutamente tudo, me lembra que a estou deixando para trás, até a música que toca no momento. Nesse instante tiro os fones- chega de sofrência- e volto minha atenção ao casal de velhos. Eles seguem falando besteira, mas ouvindo com atenção, sinto um amor profundo em suas palavras. Minha nossa! Não acredito que estou com inveja desses dois! Mas estou, inacreditável. O que eu não daria  nesse momento pra me tornar um velho chato com a minha Mariana.


Paulo Pontes

Monólogo
5 pessoas num  gol quadrado. Viagem longa, cansativa, sol de norte a sul. Chegamos em São Paulo capital no meio da tarde, cada um seguiu pra um canto, sem muitas palavras, afinal éramos desconhecidos. Na rua eu me via só, longe de minha terra, obrigado a partir, sem família ou dinheiro. Só sonhos me nutriam. Deixei minha mãe em casa, sozinha. Necessidade de fazer dinheiro, de não cair da linha tênue da rua. Foi então que conheci Carla, e com ela a cocaína. Paixão intensa, dias intensos, pouco amor e muita fome, sem muito sentido e sensatez. Paixão de 7 dias. Vício eterno.  
Na rua Pedro me serviu de pai, que de fato sempre foi ausente. Pedro presente, trocamos muita experiência, graças a ele consegui um emprego no comércio do bairro. Dinheiro, com ele paguei meus vícios, minha descrença na humanidade, que me supria. Dinheiro era meu novo amigo, ausente como meu pai, me fez homem, me deu condição de me impor na rua, diferente do meu pai.  
O grande dilema da vida é conseguir chegar no topo sem se vender. Não se contentar é uma premissa. De longe uma voz grita : "todo mundo pode ser um pouco mais...". A vida implica monotonia, e cabe a nós fugirmos dela, ficarmos distante dos padrões que o homem cria e nos impõe. Ser triste e se tornar escravo de muitos é o resultado da linha de montagem. Vícios, dependências, corpos, escritórios. É o que vem, cabe a nós libertarmo-nos disso. "Todo mundo pode ser um pouco mais...".  
Num fim de tarde conheci Saudade. Me fez inseto, fraco, viciado. Fiquei preso a ela por meses, sem saber muito o que fazer pra matar tudo que me afligia. Quando me libertei, me fiz coração frio. De pedra. Comum. Anos se passaram, muitos anos. No balcão era só mais um. Nada pra humanidade, nenhum fruto, nada pra mim. 
Olhei pra trás e reconheci Vida, nunca a conheci de fato, mas era muito falada nos jornais. Não nos amamos, mas nos encontrávamos, ela me hipnotizava, as vezes nos entrelaçávamos nas esquinas. Foi cedo demais. No fim da estrada assinei meu divórcio. Sem filhos, sem heranças, sem frutos pro mundo. Me separei do meus primeiros amores, chamavam-se Sonhos. Nunca os vi, mas sempre estiveram comigo. Mais um escravo da vida.  
"Todo mundo pode ser um pouco mais..."


RRR