sexta-feira, 19 de abril de 2019

terapia reversa

Os dedos tamborilavam em cima do balcão. A perna fina e recém depilada balançava suavemente, cruzada sob a outra. Uma mão repousava no tampo da mesa enquanto a outra sustentava  seu rosto redondo e falante. Olho em volta. É um cômodo pequeno, mas com espaço o suficiente para caberem duas cadeiras, uma mesa, uma estante e uma poltrona. Devia ser ali que ela fazia suas famosas hipnoses. Me encolho mais na cadeira.
    As paredes eram de um tom frio e sem graça. Umas figuras abstratas decoravam o ambiente numa falha tentativa de descontração. Quem pintou aquilo nunca devia ter imaginado o paradeiro tão infeliz de sua obra. Nem as míseras pinceladas quentes do amarelo conseguiam trazer algum calor para aquele ambiente. Van Gogh estaria frustrado. Volto a pensar no quanto a área daquela sala é indiretamente proporcional à distância que eu sentia dentro dela. Se é que isso faz algum sentido. Afinal, só tem uma mesa nos separando que parece mais um abismo. Perguntei-me se aquele era o jeito certo de fazer isso. E será que tem algum?
   De repente, o farfalhar  das pulseiras pararam. Agora, ela me encarava com seu sorriso estático e cabelo do Willy Wonka. Finalmente tinha parado de falar. Seus olhos me encorajavam a responder alguma pergunta que eu não tinha prestado atenção. Confesso que era difícil, uma vez que essa consulta parece mais uma sessão comunitária. Murmurei alguma coisa e a deixei prosseguir. Porque era assim que funcionava. A cada coisa que eu falava sobre mim, ela me bombardeava de informações sobre a vida dela.
  Ouvi sobre como ela tinha parido uma agencia de publicidade já que seus quatro filhos eram publicitários (algumas vezes). Ouvi sobre como o youtuber Christian Figueiredo foi parar na sua sala de estar em pleno dia das mães. Ouvi sobre seus encontros com homens desocupados que faziam piadinha sobre sua profissão e queriam saber como faziam para “marcar uma consulta”- nessa, ela deu um fora bem dado e me lançou um sermão de como devemos ser mais assertivos na vida.
    Ouvi também sobre uma paciente dela que parecia uma Barbie, segundo ela, fazia medicina por pura pressão dos pais mas era infeliz. Por não ser algo que queria ser. Ouvi sobre um paciente que sofreu de um trauma com alguém do mesmo sexo e por isso era gay. Ela disse que ele foi abusado sexualmente. Disse que todos os pacientes dela que eram gays, tinham sofrido algum trauma. Por isso eram gays. Porque sofreram algum dano provocado à estrutura mental - trauma. Os pacientes dela sofreram, logo, todos sofreram também.
 Ouvi, em seguida, que não adiantava “mutilar o corpo”, tirar os seios, se você nasceu XX, será sempre XX - essa, ela soltou enquanto arrumava a pasta com meus exercícios de autoestima para praticar em casa. Pensei naquela pilha de livros na estante, se eram só de enfeite. Como será que ela despertou o interesse por esse estudo para não saber distinguir orientação sexual e identidade de gênero. Qual trauma será que sofreu. Pensei se ela mesma tinha noção de que estava sendo o trauma na vida de alguém. Decidi parar de ouvir.
  Na pasta, havia uma folha impressa com a seguinte frase de Freud selecionada por ela: “Antes de diagnosticar a si mesmo com depressão ou baixa auto-estima, primeiro tenha certeza de que você não está, de fato, cercado por idiotas.” E eu realmente estava.
Toninho Rodrigues

O melhor abraço


Em uma quarta-feira como outra qualquer, fazia um teste de ciências na escola.
Recebi inúmeras ligações dos meus pais, aquilo me deixou aflita. Saindo da escola, havia alguns parentes a minha espera. Achei suspeito, contudo prossegui rumo ao portão. Chegando até eles, começaram a inventar desculpas e mandaram-me para casa de um tio, pois disseram que meu irmão mais velho (o qual tomava conta de mim durante o dia, já que meus pais trabalhavam) tinha ido buscar meu outro irmão, porém era mentira. Fiquei lá por horas, sem saber o que realmente ocorreu.
Ao cair da noite, fui até meus pais e então tudo aconteceu. Encontra-los chorando acabou comigo! Tive a certeza que algo grave se passava e a minha consciência gritava que se tratava de algo com meu irmão. No dia seguinte, veio a terrível notícia O MEU MANINHO TINHA MORRIDO, aquele que sempre protegeu e cuidou de mim.
Como ele morreu? Afogado em um lago, enquanto se divertia com amigos. Um dos mergulhos não saiu como planejado, ele começou a afundar e a superfície ficava cada vez mais distante. Pensar que partiu alegre, pois brincava no instante do acontecimento, amenizou a dor um pouco, mas imaginar seu sofrimento com a água entrando em seus pulmões roubou as noites seguintes de sono.
Além da dor da perda, uma dúvida me persegue há sete anos. Não sei se no dia ou na semana do fatídico episódio, houve uma discussão entre nós e o maior tormento é não ter a certeza que fizemos as pazes.
O tempo passou, a dor se foi e hoje permanece a saudade.  Eu amadureci, aprendi a viver sem sua presença.  A ajuda que recebi de parentes, amigos e pessoas próximas contribuíram para isso. Mas você sabe, um abraço como o dele ninguém jamais poderá me dar.
Srta. Bridgerton

Terra adorada

 O vento que soprava seus cabelos parecia mais leve agora, retumbando o brado das boas novas. Para os outros a sua volta, era apenas o mesmo vento que trazia a promessa de uma chuva de verão. O sol, que não era tão bom quanto o da parte sul da cidade, tampouco bom quanto ao sol que aquecia Brasília, parecia carregar a liberdade, iluminando em raios fúlgidos o que talvez fosse a última partida de futebol que alguns meninos, aqueles que não haviam um lugar pra cair duro, tocavam por ali. E mesmo assim, nada, jamais, superaria o fulgor do sorriso daquela menina naquela tarde.
  A menina era filha do samba. Aquele mesmo samba que alimentava as noites das favelas e se misturava ao som dos estômagos famintos que ali jaziam. Ela, que era filha de Iemanjá, de outros Orixás, e de todos os Santos e Deuses que pudessem ocupar o buraco que a nação - com n minúsculo - e a verdadeira família tradicional brasileira - uma mãe de duplo encargo, e um pai que dava cabo das bebidas - haviam ali cavado.
  Ela, uma menina que nascera gritando de fome, havia ganho recentemente a promessa de uma morte saciada: havia passado na faculdade. Se não era o penhor da igualdade. Se não era o penhor da igualdade? 
  Era a primeira de sua família a conseguir passar em uma faculdade pública. Vira sua mãe, desde pequena, fazer malabarismo entre casas de família, pra muitas vezes o dinheiro acabar antes do mês e, junto, toda a pouco comida que havia dentro da geladeira. Mas ela nunca havia passado fome, sua mãe não teria permitido. O pouco que havia, ela dava as filhas, virando a noite varada e com o estômago doendo.
  Mas trauma? Ela não sabia o que era isso. Ela não podia se permitir a sentir isso, pois um minuto a mais tendo pena de si mesma, é um minuto a menos, e um minuto a menos na vida de um pobre, é muito coisa.
  Seu trauma era sua realidade, não era recente, nem passado, se fazia presente. Nascera com ela, e morreria com ela, junto ao seu berço de barro nas favelas brasileiras.
  Se não é a Pátria amada, idolatrada, desafiando os nossos peitos até a morte. Seu estômago que antes roncava, hoje se retorcia de ansiedade ao ver a oportunidade da mudança em suas mãos, superando parte do trauma hierárquico que não era apenas dela, ou de sua família, e sim de uma maioria incumbida de pobreza por essa mãe tão gentil. Porém, verás, ó Brasil, que um filho teu não foge à luta.

By a Lady

Sem Título

Minha mãe me disse para eu não aceitar nada de estranhos na rua. Mas ela não disse o que eu deveria fazer se eu achasse que fosse a única solução. Era um desses dias em que se sai com amigos e é preciso voltar de ônibus para casa. Tudo poderia ter terminado perfeitamente normal se eu não fosse tão avoado. Mas eu era.

Eu estava perdido por ter soltado um pouco antes do meu ponto (uns 30 pontos antes) e comecei a vagar aleatoriamente às 3 da manhã, com medo e procurando alguma pessoa de aparência inocente para pedir dinheiro. Não tinha. Cheguei em um senhor em um bar e pedi dois contos. E então eu peguei uma pistola e atirei nele. Na verdade, eu não fiz isso. Mas a questão é que eu poderia ter feito. E ele não tinha como saber se eu faria ou não.

Contudo, ele confiou em mim. Acreditou na minha história e me deu dois reais para voltar para casa. Então eu peguei o dinheiro e fui comprar drogas. Na verdade, eu não fiz isso. Eu poderia ter feito, mas ele acreditou na minha história e me deu dinheiro. Isso me comoveu.

Eu voltei para casa e contei a história para minha mãe. Ela me repreendeu, é claro. E a sua justificativa foi: “O senhor poderia ser um homem do mal e te bater ou algo parecido.” E ele poderia. Ele poderia mesmo. Eu também. Mas nenhum de nós dois o fez. Me pergunto se ele foi dormir naquele dia pensando ser uma pessoa de bem que ajudou um jovem. Ou se simplesmente não mudou nada na vida dele. Eu não sei se ele saiu dali e foi agredir uma jovem. Eu não sei se ele saiu dali e foi atropelar cachorrinhos. Eu sei que ele foi bom comigo e poderia ter feito milhares de coisas horríveis comigo. Mas, na verdade, ele não fez!

Eu acho isso importante. Eu discuti mesmo com a minha mãe quando ela me repreendeu. Não quero viver num mundo em que você não pode confiar nas pessoas. Eu estava certo. Eu quero poder confiar nos outros e eu vou lutar por isso. A discussão terminou comigo de castigo por algumas semanas, mas o meu consciente seguiu limpo. Eu acredito que podemos ser melhores, então eu vou ser!
Festa Intensa

O Corpo Lembra

Ana sempre se perguntou por que seus músculos travam quando ouve a voz daquele homem. Moço bruto e de humor tão amargo quanto baba de bruxa. Toda segunda-feira era exatamente igual à outra. Entre um assobio e outro, a tabela periódica. Ás vezes, grito. Não se deve subestimar a potência vocal de um professor ou seu jeito de bater com a mão na mesa. Tudo isso fazia seu corpo reagir. Era o coração que vinha a boca e as mãos que chacoalhava. Tudo por um frustrado professor de química. Ana viveu a vida esperando que segundas-feiras acabassem até que o ensino médio teve fim. Seu professor de colégio virou o professor da faculdade – que, por sua vez, virou aquele moço da venda. Só foi capaz de descobrir a resposta quando, finalmente, o moço da venda virou seu namorado. Ele também gritava e, ás vezes, batia com a mão da mesa. Até a mesa virar parede e a parede virar seu corpo.
Ana se endureceu como fez a vida toda e antes da pancada sentiu cheiro de casa. Viu mesa revirada e roupa no chão. Pensou na vida de moços brutos com humores amargos e em como o corpo lembra, ainda que a mente não. Limpou o canto da boca, gosto de epifania. Não é que é verdade? Ana nunca gostou de baba de bruxa.
Dominique Casanorte

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Inícioemfim...


Eu escrevo a você, caro leitor, em meu leito de morte, mas não fique triste ou com pena de mim, é apenas mais uma história, e hoje vim contá-la e escrever seu final. Bom, eu sempre vivi nas sombras, dos meus sonhos, dos meus atos e de mim mesmo. Era velado por uma capa que me escondia dos tormentos, mas sufocava. Não sei ao certo em que momento eu vesti e assumi essa capa...Na verdade, acho que no fundo nunca passei de uma sombra dessa capa preta, sempre rodeando com curiosidade sob sua obscuridade e mistério. Mas pera aí, minha infância e adolescência foram, em certo padrão, muito boas, eu fiz coisas boas, deixei muitas pessoas felizes, mas e eu, eu era feliz? Quem eu era afinal? Era apenas o reflexo do que olhava no espelho, ou era o que eu não via através da minha imagem no espelho?
Lembro-me que um dia, a capa preta me notou, e foi tão confortável me esconder dentro dela, apenas tirando-a perante os outros. Usá-la para me confortar e conformar diante da triste realidade era apenas um disfarce e esconderijo temporários, porque no fundo eu ainda era um grande melancólico ranzinza, cansado de decepções e profundas tristezas. Não durou muito tempo para a capa preta me tomar por inteiro, deixei de ser unicamente o adolescente emo, que escrevia poesias e ouvia Evanescence. Eu era a própria Sombra em si, não era mais uma capa, era uma alma perdida... Eu simplesmente vagava rumo ao nada e ao vazio que construí e interiorizei em mim.
E foi sendo Sombra, que tive coragem de vir aqui, escrever essa carta, sentado confortavelmente em meu sofá, diante da dose exorbitante de remédio que tomei e sendo dominado pelo maior vazio que já senti. E se ainda não está claro em meu testamento ou queres me ver, ler, enquanto escrevendo isso, sim eu cometi suicídio. Na verdade, prefiro dar-lhe o nome de ato de recomeço, pois aqui, agora, sinto que minha trajetória foi apagada, ou até salva no arquivo morto do meu subconsciente. Entretanto, nesse enorme vazio se conforta minha esperança em algo novo e único. Sentindo a fria solidão da morte percebi que não busco meu fim em si, procuro algo além, meu começo, meu renascimento. No fim estava minha maior descoberta, a vida, e que ela seja eterna enquanto dure...
- Eu William Hamlet Julio César Romeu.
Shakespeare Iludido

Lições de um inverno memorável

Era agosto. Inverno. Os dias já não traziam tanta euforia ou paz.  O câncer havia se espalhado rapidamente em seu corpo. Meu tio João estava internado no hospital. Eram poucos movimentos, as palavras eram breves. Mesmo assim, todos podiam ver esperança em seu olhar. Apesar da situação trágica, ele fazia planos para o futuro e continuava a contar piadas sobre seus encontros em Cavalcante. Seus dias eram os últimos, mas o sorriso parecia eterno. 

Tio João era nosso tio mais chegado.  Ele sempre nos visitava nos feriados, aniversários entre outras datas. Era impressionante o esforço que ele realizava  para trazer barras de chocolate que pareciam sempre estar em promoção nas Lojas Americanas mesmo estando em uma condição financeira difícil. Eu e meu irmão adorávamos ouvir seus conselhos depois do almoço. Ele sempre dizia a minha mãe que quando recebesse o  dinheiro de sua aposentaria gostaria de investir em nosso futuro de alguma forma.

Terça-feira. Minha mãe disse que ia visitá-lo. Ela me chamou, porque existiam vagas disponíveis. Entretanto, eu decidi ir outro dia. Pensei em deixar para quinta-feira. Fazia um tempo que eu não o via, mas coloquei a desculpa de que eu precisava resolver algumas coisas. "Por que hoje, se posso ir depois?". Estava cansado. Não queria ir. 

Quarta-feira.

Quinta-feira. Aquele dia amanheceu nublado. Quando acordei, meus pais já não estavam em casa. Achei estranho pelo horário que eu havia acordado. Mas me arrumei ,fui para escola e sabia que quando eu voltasse visitaria o Tio João. 

Bem, talvez você saiba o que vou dizer agora. Sim, aquela visita que procrastinei... nunca aconteceu. 

Sempre que eu olhava para ele naquela situação, queria agradecê-lo pelas risadas, pela maturidade que ele me fez alcançar. Queria dizer "eu te amo, tio", todas vezes que eu entrava no quarto. Mas não disse. Sempre quis deixar para amanhã. E o amanhã não quis chegar. Agora, as palavras de gratidão são sufocadas por um remorso violento. As lágrimas mancham os versos que nunca entreguei a ele. 

Então, aprendi naquele inverno: breve somos. Em um instante, desapareceremos. Os momentos eufóricos logo se tornarão memórias em nossos corações. Efêmero. Resolver algumas coisas nunca serão mais importantes do que pessoas. A agenda nunca pode estar lotada demais se ela nos impede de amar.
 Então, por que deixar o abraço ser tão rápido? Por que deixar as pessoas passarem por nós sem se quer que deixarmos uma marca de amor? Por que aquele beijo em sua família precisa ficar para outro dia ou para uma data importante? Existe por acaso dia mais importante do que o hoje? 

Aprendi que o amanhã pode não existir. E como já dito pelo poeta: "O ontem é passado. O amanhã é um mistério. Mas o hoje é uma dádiva. Por isso, se chama presente".
Joey Tribbiani

Amigo da onça

Quando acordamos não temos ideia de como iremos finalizar o dia.
Pois bem meus caros leitores, assim começo a contar o meu trauma.
Meados de 2012, estava em um restaurante com uma amiga, deliciando um maravilhoso sushi, eis que toca o celular.
Era minha mãe, aos prantos! Ela dizia: - Filha, vem pra casa. Seu irmão foi preso.

Meu mundo parou, fiquei sem reação e só pensava como teria acontecido. Por um momento achei que pudesse ser uma brincadeira.
Chegando em casa, não sabia o que falar, só pensava em  acalma-lá.

Toca o telefone.
 Era meu pai, dizendo que o caso tinha sido grave e que talvez meu irmão pegaria anos de prisão. 
Mas como assim grave? O que ele fez? 
Meu pai explicava calmamente, e dizia: - Ele estava em um carro,  com os irmãos 
 João  e Douglas (seus amigos de infância ), e foi parado pela polícia. 
João dirigia, Douglas no banco do carona atrás e meu irmão ao lado do Motorista. Douglas portava uma arma, quando a polícia parou o carro. Ele chutou a arma para baixo do banco onde meu irmão estava. 
O porta luvas do carro estava cheio de drogas. 
Quando o policial perguntou o que estava acontecendo, os irmãos não pensaram duas vezes e disseram que meu irmão estava sequestrando eles.

Meu irmão, que sempre ajudou a família dos amigos, que era padrinho da filha do João . Algo não estava certo na história. 
Mas era óbvio que a história não estava certa, eles tinham subornado os policiais para contarem essa história.

Meu irmão foi preso, ficamos um mês  sem notícias (esse é o tempo que leva para a carteirinha do presídio ficar pronta). Foram exatos 5 meses esperando a sentença do juiz sair, e meu irmão foi condenado, pegando quatro anos e cinco meses em regime fechado, por porte ilegal de arma e tráfico de drogas. 
E ali, naquele momento, a família desabou.

Foram anos ajudando meus pais a fazer a sucata para levar ao presídio, anos sofrendo por não ter notícias. Quando tínhamos notícia era sempre superficial. 

Quando saiu o hábeas corpus foi uma felicidade sem fim, porém a alegria acabou em minutos. Aquele irmão que era amoroso, carinhoso e bom, não existia mais!
Seus sentimentos ficaram presos em Bangú 2.
Luz Luar

A carta que nunca chegará ao real destinatário

Eu ainda não esqueço daquela noite fria de inverno. Tinha apenas 11 anos e estava assistindo Disney Channel, sentada no sofá da sala, como tinha costume de fazer quando chegava da escola. Foi quando ouvi um barulho vindo do quarto e decidi ir olhar. Minha mãe estava com a nossa correspondência na mão, que eu havia pegado mais cedo na portaria do condomínio, com lágrimas por todo o rosto. E foi aí que eu me aproximei e pude ler, em letras garrafais: "SENTENÇA DE DIVÓRCIO".
Os nossos traumas nos faz quem somos, acredito veemente nessa frase. Quando surgem durante a infância, podem nos moldar até o estágio final da vida. Muitas crianças da minha idade na época tinham pais divorciados. E, olha, é uma coisa que acontece. Cada um tem seu motivo, e não cabe a mais ninguém julgar. Se o casamento já não está bom, é a melhor opção para ambas as partes envolvidas. Todo mundo merece a chance de ser feliz. Contudo, a separação normalmente ocorre entre marido e esposa, certo? Porém, no meu caso, ocorreu entre pai e filha também.
Tudo foi acontecendo aos poucos. Nos falávamos todos os dias. Você me visitava seis vezes ao ano. Considerando que morávamos em estados diferentes e você trabalhava muito, era aceitável. Mas, lentamente, as visitas foram diminuindo, se transformando apenas em ligações com desculpas esfarrapadas. A última que eu lembro de ter ouvido foi que você não tinha conseguido juntar dinheiro para pagar a passagem pro Rio. Uma semana depois, minha madrasta posta uma foto com o carro novo que acabara de ganhar do marido.
Eu tentei por muito tempo, juro. Sempre tentava ser a melhor em tudo que fazia, na esperança de você sentir pelo menos um pouco de orgulho de mim. Recebia migalhas suas, já que, na minha cabeça, isso era melhor do que nada. Te perdoei por você ter esquecido o meu aniversário. Aceitei suas desculpas quando você perdeu minha formatura porque disse que estava cansado demais do trabalho para viajar. Acreditei quando você disse que me recompensaria algum dia. Mas esse dia nunca chegou e, particularmente, não quero e nem preciso que chegue mais. Depois de um tempo apenas cansa. Cansa o sentimento de insuficiência, porque eu sempre achava que a culpa era minha. Cansa ter que implorar para alguém ficar na sua vida. Eu te via como o Luke Skywalker, mas você foi se mostrando cada vez mais o Darth Vader.
Vou te poupar os detalhes de toda a raiva e o choro dos últimos anos. Doeu muito. Somos feitos de carne, mas temos de viver como se fôssemos de ferro, como dizia Freud. Hoje, depois de tudo, eu te agradeço. Você me ensinou a valiosa lição de não esperar nada de ninguém, não importa quem, porque nem sempre as pessoas irão atender às nossas expectativas. Eu aprendi o quanto as pessoas podem ser ruins e sem coração. Você me fez forte, desde muito pequena, e as cicatrizes que carrego desde então são a prova disso.
Apesar de tudo, eu te perdoo. Não te desejo o mal, pelo contrário, espero que você seja muito feliz com a sua nova família. Eu sei que eu sou. Estou caminhando para a realização do meu sonho, com uma família maravilhosa ao meu lado, torcendo a cada vitória minha. Mas sinto pena de você. Você perdeu muito da minha vida e vai perder cada vez mais, pois sei que ainda vou chegar muito longe. Tenho mágoas, isso é fato, mas não guardo rancor. Assim, se algum dia precisar de mim, não hesite em me chamar. Eu nunca viraria as costas e te abandonaria, porque eu sei por experiência o quanto isso dói.
Mia Thermopolis

VOLTA

Ninguém está preparado para o fim. Me perdoe, ex-amor, o maior de todos é a morte. Quem vive à espera dela, é refém da aflição. Aquele que recusa pensar sobre, não leva a brevidade a sério, e por isso é pouco atento à magnitude dos intantes. Ambos são igualmente vulneráveis ao fim derradeiro.  A morte não é meritocrática.
Uma criança de oito anos está ainda menos preparada para a morte. Ainda mais de sua mãe.  Se adultos enrolam-se ao falar sobre a concepção da vida, quem dirá sobre o seu esfacelamento. Dois dias depois de versões estapafúrdias, entre protocolares salgadinhos servidos no cemitério do Caju e balbucios de familiares que não faziam ideia de como consolar o meu pai, lá estava eu no velório da nossa Cotinha. Atônito, eu entendia, só não acreditava. Porque se ela sabia o que era o mundo sem mim, o contrário não procedia. Quem me faria cafuné durante os filmes da Disney? Meu pai não sabia fazer canjica. Mas me mirava compenetrado, como se abraçasse de longe apenas com seu olhar de piscadas vagarosas. Nunca tive coragem de perguntar se era só o Rivotril, se era por desespero de criar um filho sozinho dali em diante, talvez a grana apertada em casa, provavelmente por seu peito agora órfão. Mas sinto que também era por não saber o que dizer pra mim. A tampa do caixão sendo fechada e minha mãezinha ali, de olhos cerrados, como a dormir um sono tranquilo, com um inquietante sorriso sutil. Tão vívida quanto vazia. Era e não era ela.
Vivi amores de lá pra cá. Numa referência fantasiosa do que deveria ter sido o amor deles, desconsiderando todos os defeitos que a saudade é capaz de apagar. Também vivi desamores. E a sensação é de que a gente perde uma parte do corpo. Mesmo que fique algo, a verdade é que sempre passa. Menos no caso da Dona Lourdes, da Tia Lu, a Cotinha, minha mãezinha. Sabe, é como se eu sentisse a dor no membro fantasma. Ao partir, criou uma régua cujo limite nenhum sofrimento alcança. Todo o resto é secundário.
Sempre que vejo um amor partir, sinto que me despeço de mim mesmo. De uma versão de mim que só existia diante daquele determinado encontro. Quebra-cabeças que perdem o encaixe porque as bordinhas esfarelam. E é terrível no teu caso, guria, porque você está aí viva. No dia que a gente se esbarrou por Itacoatiara, foi como o velório da minha mãe: um sorriso de canto de boca, teu corpo intacto, mas a tua frieza retratava que a alma já tinha partido.
Traumas são ssinaturas escarificadas em nossa pele. Você passou, me mudou e deixou cicatrizes. Ninguém é substituível, mas só há um vazio sem escapatória. De todos os amores, a única ferida que não cessa é o sonho irrealizável com o dia em que vou recostar no sofá, sentir o cheiro que vem da cozinha, aquelas mãos suaves deslizando no meu cabelo, quando posso finalmente dizer: minha Cotinha, ainda bem que você voltou!
João Cadeado

Conversando com a Lua

  Eu não sou muito boa em falar de traumas, consigo contar quantos foram esses na palma da minha mão. Pra falar a verdade, tenho uma vida extremamente tranquila, meus pais sempre me deram uma educação de qualidade e faziam minhas vontades (na medida do possível) e sou grata por tudo isso. Porém um desses traumas é algo que marcou profundamente minha vida, formando problemas que tive que enfrentar por anos e de certa forma ainda enfrento. 
  Bullying. Algo por muitas vezes banalizado. "Ah na minha época todo mundo se zoava e ninguém reclamava" é o que muitas pessoas pensam acerca desse tópico. Tudo começou aos meus 11 anos, quando decidi me declarar a um garoto da minha turma. Lindo, amigável, engraçado, um pouco introvertido mas conversava com todo mundo e gostava das mesmas coisas que eu. Já quem vos escreve era uma menina cheia de amigos e super comunicativa (graças à minha querida mãe, que lia o clássico "Pinóquio" comigo e me fez ler e escrever mais cedo). Era uma combinação perfeita. Foi então que eu resolvi botar uma carta em seu armário da escola. A pior ideia possível. Na mesma semana todo mundo descobriu que era eu a "admiradora secreta" e fui feita de chacota o resto do ano letivo. Excursões e dinâmicas em grupo eram infernais. Eu comecei a me sentir cada vez mais sozinha e sempre chorando ou gritando pros outros pararem de me zoar (o que apenas aumentava a zoação).
  Então cheguei ao ano seguinte, um pouco mais renovada. Era meu sétimo ano do ensino fundamental (infame por ser um dos mais difíceis) e me via com um pouco mais de auto-confiança. Mas o que eu não esperava é que na minha sala haveriam três garotos repetentes (um inclusive repetiu duas vezes) que iriam transformar aquele ano no pior da minha vida. Não podia abrir a boca na sala que me tornavam alvo de zoações. Era chamada sempre de "gorda". Falava algo errado ou que apenas eu julgava engraçado e era caçoada. Eram abusos físicos, psicológicos, morais e sociais. Tudo que você pode imaginar, caro leitor. Tudo mesmo.  Minhas únicas companhias eram minhas músicas melancólicas do Bruno Mars e o livro distópico da Suzanne Collins, "Jogos Vorazes".  Chegou a um ponto aonde eu queria simplesmente não ir mais às aulas pois eu não tinha amigos e me sentia socialmente incapaz de conversar e me expressar. E quando um deles faltava, era motivo de comemoração, eu me sentia aliviada de verdade. Sempre que eu tentava falar com um professor, ele simplesmente ignorava ou me mandava junto com os delinquentes para a diretoria. Nunca tomei tantas advertências na vida, foram umas oito.
  No próximo ano, dois desses meninos iriam para outra escola. Mas o dano já estava feito. Só era capaz de conversar com dois ou três amigos, perdi a capacidade de me defender, de conhecer novas pessoas, me senti numa total solidão. Inexplicável. Demorei anos pra me recuperar. E por muito tempo, mesmo após me sentir "recuperada", uma certa neurose me assolava ao pensar que todos que cochichavam perto de mim estavam falando mal de algo que eu falei e fiz ou comentando algum aspecto físico meu. Era uma tortura.
  Hoje me vejo convivendo com a ansiedade, porém muito mais sociável e confiante do que jamais fui. É, até que sou bem feliz, mas sempre lembro que a vida me encheu de chutes até quando estava no chão. Literalmente.
Viúva Negra

Frases desnecessárias


Uma das piores sensações do mundo é você saber que está errada e não conseguir parar de errar. Eu sempre fui uma pessoa ciente do que faz bem e do que faz mal, dos riscos que certas atitudes podem trazer e do que devo fazer ou não. Mas, mesmo assim, em certas situações, não consigo evitar fazer tudo ao contrário. Isso acontece muito quando se trata do meu pavor de ganhar peso.
A adolescência é uma fase aterrorizante. Nos meus doze ou treze anos comecei a ligar para o meu corpo e para o que os outros pensam de mim. Todo mundo sabe que a aparência não importa e beleza não é tudo. Ser magra é só um padrão imposto pela sociedade. Como disse, eu entendia tudo. Colocava isso na minha cabeça o tempo todo. Mas não deu certo.
Qual a necessidade de comentar o peso dos outros? Pra que falar “você engordou um pouquinho” ou “você tá mais cheinha do que da última vez que nos vimos”? Não sei pra que; só sei que falaram para mim. Mais de uma vez. Ouvir essas frases não deveria ser problema pois não tem problema em ser gorda. Eu sei disso. Acredito nisso de verdade. Mas não consegui evitar. Essas frases me marcaram muito, causando um trauma que me assombra até hoje.
Comecei a comer menos. Sempre que estava sozinha em casa passava metade do tempo procurando na internet exercícios para emagrecer e na outra metade estava fazendo eles. Já cheguei a ficar mais de um dia sem comer. Dizia que ia cortar os doces, não comeria mais fritura. Mas ficava nervosa e comia. E me sentia culpada. E fazia exercícios. E dizia que não comeria mais. E ficava nervosa. E comia.
Minha mãe sabia que algo estava errado e tentava conversar comigo, mas eu fugia do assunto e dizia que estava tudo bem. Porém, ela me conhece mais do que eu mesma. Nós conversamos várias vezes e tirou um peso enorme de mim.  Decidi que continuaria tentando emagrecer, mas dessa vez não me cobraria tanto. Apesar de ter sido extremamente difícil, passei a comer menos doces e frituras e a fazer exercícios de verdade, dessa vez sem todo aquele desespero e com ajuda. Minha mãe conversava sempre comigo e, quando percebia que estava estranha de novo, falava mais ainda. Esse apoio fez toda a diferença.
Não se preocupe, hoje estou bem melhor. Não vou mentir, às vezes a paranoia volta e me sinto culpada por comer, ou então choro quando acho que engordei. Mas sinto que estou no caminho certo. De qualquer forma, espero que um dia as pessoas entendam que certas frases desnecessárias no momento errado podem desencadear um problema para a vida toda. Não custa nada ter um pouco de empatia.
Sharpay Evans

Joga sua teia

      Era uma tarde boa. Daquelas que eu saía da escola e chegava à casa em cinco minutos. Entrava no meu quarto, tirava a calça jeans apertada e deitava na minha cama apenas de sutiã e calcinha. Meu irmão e o amigo jogavam videogame no quarto e papai cozinhava para o jantar.
      Era uma noite boa. Mamãe já tinha chegado à casa e contava as novidades do trabalho. Mas, de repente, o ar começou a faltar, o coração pulsar mais forte e o sorriso desaparecer. Meu irmão. Aquele que cismava que era o homem aranha- e tinha tudo desse super herói-, pulava em cima de mim para me acordar, me buscava em qualquer festa caso precisasse e comprava presente para todos os meus aniversários com sua mísera economia. Era realmente a pessoa que eu mais podia confiar. A implicância, a troca de desaforos, o carinho nos gestos e a simplicidade na personalidade. O nosso amor foi além. Além do que se pode imaginar. Além do sentimentalismo da palavra amor.
      Ele me escutava, me orientava, me transformava. Embora mamãe dissesse que não existia filho preferido, se tivesse que escolher, ele seria o ideal. Sempre foi mais evoluído do que eu: mais responsável, mais cuidadoso nas palavras, mais maduro, mais capaz de executar uma prova na escola, mais mais mais. Ele era o que era, e, por isso, nada mais importava.
      Importou, precisamos levá-lo correndo para o hospital e o médico logo pediu um raio-x. Quando saiu o resultado, a expressão do doutor foi de desespero. As enfermeiras começaram a cortar a roupa, o cordão, a pulseira, tudo, tudo que ele tinha. A sala de cirurgia era o único caminho possível, demorou 10 horas, ninguém sabia a noção daquilo, só quando disseram que a cirurgia não teve efeito, não adiantou, não bastou, não resolveu, não fez nada, apenas deixou cicatrizes no corpo dele e nos nossos corações. Era pneumotórax espontâneo. Ficou semanas no CTI sem melhoras. Eu não conseguia ir visitá-lo porque não conseguia segurar o choro quando o via tão fraco. Eu rezava todos os dias, mesmo não acreditando que Deus existisse. Só queria me apoiar em alguma coisa que tivesse sentido para alguém.
      A “sorriso”, como me chamavam no condomínio, era tristeza. Meus olhos transbordavam o que eu não conseguia mais segurar no coração. Eu não sabia o que fazer porque nem minha mãe sabia. Ela só entrava em casa para tomar banho e a gente não conseguia ser apoio para a outra, estávamos destruídas demais. Queria desaparecer, mas tinha que continuar indo à escola, ao curso de inglês e ao de desenho. A minha vida seguia, enquanto que a do meu irmão morria.
      Após quatro semanas, uma esperança surgiu. O pulmão começou a responder: dos três drenos que estavam enfiados nele, um não precisava mais. A minha alegria foi imensa, eu acreditei que as coisas começariam a melhorar e falhei. O problema aumentou, teve uma intoxicação na área do sistema respiratório e o que eu podia fazer? Eu queria ter feito tanto, mas eu fui fraca. Eu fui covarde por não conseguir ter entrado naquele CTI mais vezes, por não ter dado apoio, por não olhar para ele e mostrar que ele conseguia sair daquela situação, nem que pela força do ódio.
      O ruim da vida- e desculpa se você acha isso bom- é que ela age sem a nossa interferência. E agiu tão bruscamente que tirou meu irmão de mim. Acho que nunca vou perdoá-la por ter feito isso. Eu sou metade hoje. Metade solidão, metade alegria, metade companheira, metade da metade da metade do que ele foi. Eu tento catar meus pedaços t o d o santo d i a.
      Sobra-me amor, pois sei que ele foi bom para mim. Embora ainda me pego pensando que ele ia ser o titio rico que daria conhecimentos poderosos para os meus filhos e o pai mais fã de super herói possível, me reinvento. Sei que entrar na suposta mansão dele e dormir vários dias lá só para matar saudade de quando ele vinha dormir na minha cama também não será possível. Ser a titia pagodeira que bebe todas as cervejas nas festas de família, fala besteira e não para de perturbar o irmão, também não vai rolar. Mas, pelo menos, sei quem fui. E fui muito para ele.
      Passei a acreditar que você é o homem aranha depois que morreu. Então, deixe rastros da sua teia, irmão. Eu ainda preciso de um sinal seu para seguir. 
      Era um dia bom.
      Era um dia.
      Era um.
      Era.
        Para sempre na imensidão do meu coração.
Gato de Botas

A violência que nos cerca.


        Um trauma vem quando você menos espera. Não da para prever, muito menos se precaver. Então, o que fazer quando ele vier? Aquele momento difícil na sua frente que te atinge fisicamente e devasta seu psicológico, que te deixa sem reação e faz o ‘’depois’’ se tornar tão ruim quanto o ‘’agora’’. Essa pergunta, caro leitor, eu não vou saber te responder, porque ainda não respondi a mim mesmo.
        Numa tarde de terça-feira, que tinha tudo para ser comum, me preparo para mais um dia da minha rotina nada interessante. Pego mochila, chaves, um dinheiro para comer e o celular. Ah, o celular... Aparelho cada vez mais indispensável. Eu tinha acabado de ganhar de presente e havia ficado muito feliz.
        Com fone de ouvidos, caminhava conforme a música que ritmava o meu trajeto e me desconectava do mundo. O montante de emoções que a aquela canção me passava fazia ser a favorita, aquela que a cada estrofe cantada gerava uma reflexão e que, provavelmente, já tinha se repetido três vezes naquele dia. A conexão gerava distração e, nesse momento, eu agi contra mim.
        O gosto de sangue na boca me causou confusão. As memórias chegavam devagar, como se estivessem fazendo download na minha mente. Até que eu lembrei... Havia acabado de virar a esquina e me pararam, um homem um pouco mais alto puxou o meu fone de ouvido, interrompendo a canção que me guiava. No susto, reagi. Eu o empurrei na tentativa de fugir, até ser atingido por trás. O lindo dia de sol foi ficando mais escuro bem devagar, até que apaguei.
        Até hoje lembro de quando acordei, dos sentimentos que corriam pelas minhas veias, da confusão que trovejava no meu cérebro e na sensação de impotência que cobria a minha alma. Lembro-me do nariz sangrando, pernas e braços machucados. Eu estava sem tênis, sem celular e sem mochila. Encontrava-me paralisado, apavorado e dolorido. Os dias passam, os machucados no corpo somem, contudo, as marcas no psicológico são eternas e, mesmo 4 anos depois, eu ainda consigo me ver deitado naquele chão.
Larry Bird

Apenas mais uma

 Agora pouco estava revendo nossas fotos, relendo as cartas. Foram muitas ao longo desses seis anos. Algumas triviais, de aniversários, dias dos namorados. Outras dos nossos inúmeros términos e reconciliações. Em todas, mesmo traduzindo momentos distintos, fica nítido a admiração que temos um pelo outro e a gratidão por nossos caminhos terem se cruzado. Mesmo na última que me entregou. Quando decidiu pôr um ponto final.

 Ponto final esse que não foi por acaso. Eu, principalmente, não estava bem. Me desculpe por esse defeito de não conseguir externar os problemas e agir como se andasse tudo bem. Não andava. Me escondi, guardei as mágoas, tive medo de enfrentar o que me destruía. No fundo eu sabia que estava doente. Mas não consegui admitir. Nem pra você, nem para mim.

 Foi compreensível a sua decisão. Eu não reagi. Não tive argumentos. Nem ao menos discordei. Você, coerentemente, confirmou a tese de que eu não me importava mais. Hoje, sabe que não é verdade.

 Ao longo desses meses, muita coisa se passou. Busquei forças, deixei de lado o orgulho. Voltamos. Brigamos. Terminamos de vez - agora vai -. Voltamos.
Porém as marcas ficaram e, pela primeira vez, tive coragem de encarar o que a poucos meses era impensável. Decidi seguir sozinho e tentar apagar a falsa ideia de que dependíamos um do outro. 

 Porém histórias complexas, como nossos sentimentos, não possuem finais simples.Você acabou se arrependendo por algo que não teve culpa. Eu me obriguei a seguir um caminho que não gostaria de ter seguido. Estamos aí. Perdidos. Nos acostumando com o que parecia um devaneio. Esperando que isso tudo passe. Ou não.

 Não sei se estamos no final de uma longa história, ou apenas no início. Porém, tenho a certeza de que o sentimento ainda está presente e suas raízes, mesmo com tantas tentativas de serem arrancadas, resistem com grande paixão ao solo em que as plantamos. 

 Te escrevo isso, para que depois de tudo o que vivemos, aquela carta que li a alguns minutos, a do ponto final, não seja a nossa última recordação. Porque enquanto ainda houver sentimento, haverá cartas a serem lidas.
Ana Thaís Matos

O trauma é agora

AVISO DE GATILHO: depressão, ansiedade, suicídio.  
  
   Meu maior trauma. É difícil escolher sobre o que escrever, ou encarar o que eu sei que tenho que escrever. É difícil principalmente porque eu poderia escrever sobre qualquer um dos 86400 segundos que compõe o dia, sobre qualquer momento a partir de quando meus olhos se abrem, até o instante em que meu corpo finalmente se rende ao sono. É difícil viver constantemente seu maior trauma. 

   Depressão. Por que esperar que uma garota de treze anos saiba lidar com isso, quando na verdade quase ninguém sabe? Talvez o problema não fosse esse, talvez  na verdade a grande questão fosse aceitar que a princesinha radiante realmente estivesse passando por algo do tipo. Princesinha radiante. É cômico usar essas palavras como forma de autodescrição, porque princesinha radioativa com certeza é mais coerente. Uma erupção de hormônios graças à puberdade. Um poço de solidão porque a melhor amiga tinha se mudado, porque os primos com quem convivia quase que diariamente agora estavam no ensino médio ou na faculdade -  os dilemas dos treze anos já eram bobos demais pra que se importassem -.  Um ponto fora da curva dentro da família, uma estranha na sala de aula. Radioativa, tóxica, desprezível. Eu me sentia qualquer coisa, menos radiante. 

   Estava mudada. Mais quieta, mais indiferente. O que realmente chamou a atenção deles foi o fato de eu não querer mais ir à escola. Dor de cabeça, dor de dente, enjoo. Todo dia era uma desculpa diferente, e a cada 24 horas a situação se complicava. Meu pai começou a perder a paciência, e o que antes eram olhares tortos, se tornaram broncas, repreensões, gritos. Minha mãe, por sua vez, era mais paciente. Ela tentava mediar a situação. Era  quem contava ao meu pai que mais um dia eu não iria pra escola, quem me abraçava e me consolava depois das minhas crises de choro ouvindo os sermões dele. Talvez esse último trecho tenha-o feito parecer o grande vilão, mas quero dizer que não condeno a atitude dele. 
   Os dois tiveram atitudes extremamente plausíveis para aquela situação, é inegável. O que também não posso negar é que a grande diferença entre as duas reações pode ter piorado tudo. Eu não queria continuar me queixando de dores falsas -  já não aguentava mais ouvir os gritos e o tom zangado do meu pai -,  mas também não queria perder a confiança e o apoio maternal ao dizer que estava mentindo. Além disso, nem de longe eu sabia explicar o que estava acontecendo. Em pouco tempo, as invenções se transformaram em silêncio. 
  - E hoje? Por que você não vai pra escola, hein, Leena? Qual é a desculpinha de hoje?! Eu  cansado dessa palhaçada! - mesmo depois de ouvir tantas versões disso, eu ainda fechava os olhos, protegendo a mim mesma de seu semblante raivoso.  
 - Para de falar assim com ela, ela tá com dor. É dor que você tá sentindo, né, filha? 
   Silêncio. Minha aboca abria, como se eu finalmente fosse responder a pergunta que me era feita todos os dias, mas logo depois se fechava. Não haviam palavras que pudessem expressar o que estava realmente se passando. 

   Possessão. Essa era a única explicação plausível na visão de uma mãe extremamente religiosa. Tudo piorou quando passei a me negar a ir à igreja. Desde criança eu nunca gostei de frequentar a Missa, mas isso com certeza não seria levado em conta naquela ocasião. Fora isso, era complicado demais explicar que o problema não era com a igreja, que eu não queria mesmo era sair da cama para ir a lugar nenhum, que eu não queria estar em lugar nenhum.  
   Água benta. Estranhos entrando e saindo de casa. O barulho do choro da minha mãe, meu pai tentando não chorar enquanto a consolava. O som do telefone tocando. Gritos. Olhos embaçados por lágrimas. Pesadelos.  Eu queria ter uma lembrança mais vívida pra descrever aqui, mas a verdade é que agora tudo não passa de um grande borrão de flashes surgindo em sequências aleatórias. Parte de mim é grata por isso. A outra parte? Essa quer se lembrar de cada mísero segundo. Da vez em que eu já não aguentava mais tanta merda e me tranquei no banheiro assim que a rezadeira entrou no quarto com crucifixo e o livro de orações. De como liguei o chuveiro pra bloquear o barulho, de como eu provavelmente desejava me afogar naquelas simples gotas, de como devo ter gritado com a minha mãe depois do que tudo acabou. De como foi a sensação de ter todos os meus livros - refúgios, os únicos lugares nos quais eu ainda parecia ter sanidade - jogados fora. 
Foram essas merdas que ela tava lendo! Essas coisas sobre vampiro, sobre coisa que não existe! Isso é coisa do demônio! - essas palavras não foram ditas em voz alta, mas não é como se as entrelinhas não fossem explícitas. 
   Depois de lágrimas, instantes eternos e muitos ciclos de rotação da Terra completos, eu acabei - finalmente! - sendo levada ao psiquiatra, e a partir daí as coisas começaram a voltar a se encaixar. Mal sabia eu que outra sessão de filme de terror na vida real me aguardava anos depois. 

   Ansiedade. Era uma noite de sábado, e me lembro de ter acordado tomada pela pior sensação que já senti em toda a vida.  Hiperventilação ataque cardíaco desmaio morte encefálica não quero ir pro hospital eu ainda sou muito jovem eu quero fazer faculdade eu sou a única filha que a minha mãe tem meus amigos eu quero viajar  o mundo não quero preocupar ninguém será que é só um sonho eu acho que vou vomitar talvez eu esteja morrendo. Era um terror violento, um desespero incontrolável, como se todas as células do meu corpo estivessem vibrando e sendo chacoalhadas em todas as direções, como se minha mente estivesse inconsciente do mundo ao redor, mas ao mesmo tempo fosse tão onisciente quanto só Deus pode ser, totalmente ligada e informada sobre tudo que aconteceu no meu passado, e também formulando todas as hipóteses possíveis sobre o futuro. 
   Demorou mais ou menos um mês para que eu descobrisse que aquilo na verdade tinha sido um ataque de pânico, e que sofro de transtorno de ansiedade generalizada. Em um mês, foram tantos médicos, exames e remédios que mal consigo contar. A sensação física de desgaste e apreensão é indescritível, e tenho vergonha de dizer que mesmo me sentindo no pior estado em que já estive na vida, dessa vez fui eu a negar a possibilidade de ser um problema de origem psicológica. 

   A verdade é que até hoje não consigo entender exatamente o que aconteceu, mas acho dentro de mim a razão pela qual fugi da realidade: medo. Eu estava bem, minha mente estava - ou ao menos aparentava estar - bem. Minha vida estava sob controle, tudo parecia caminhar na direção certa, e mesmo me sentindo como se estivesse morrendo, eu tinha medo de tudo se repetir. Medo de desestabilizar o que parecia tão equilibrado, medo de acessar memórias guardadas à sete chaves, medo de cruzar o mesmo inferno de audição seletiva e fanatismo religioso. 
   Provavelmente é relevante falar aqui que sim, eu acabei aceitando e enfrentando o medo, ou pelo menos parte dele. As sessões com a psicóloga não chegaram a razão pela qual a ansiedade se manifestou de forma tão extrema e repentina, bem provavelmente porque eram cheias de omissões, mais uma vez vindas do medo. No final das contas, os remédios receitados pelo psiquiatra foramsuficiente para que eu pudesse retomar a vida, e o resto foi mais uma vez trancado em um cofre com um código, que até agora permanece secreto. 

   Mas, é difícil viver constantemente seu maior trauma. E eu ainda vivo completamente cercada por consequências dos dois piores momentos da minha vida. Por vezes, quando olho pro vidro de remédios, tudo de que consigo me lembrar é do dia em que eu tentei me matar tomando o remédio de pressão do meu pai. Alguns dias, fico minutos encarando os comprimidos extras que joguei na mão, parte de mim quase agindo por impulso e empurrando-os na boca, outra parte me perguntando como chego a sequer cogitar fazer isso. De vez em quando ainda acordo no meio da noite com crises de ansiedade, e conseguir focar na voz racional que me diz que não estou morrendo, que já passei por isso antes, e que vai ficar tudo bem é mais do que árduo. Tarefas simples como atender o telefone, ou pedir ajuda a um vendedor também são constantemente hercúleas, e talvez essa seja a pior parte. Apesar disso tudo, sei que alguns dias são melhores que outros.  

   Às vezes eu também me pergunto quem eu seria se tudo isso não tivesse acontecido.  
   Tudo na vida é bom, ou é aprendizado. Respiro fundo e repito essa frase como se fosse um mantra sagrado do sânscrito. Interiorizo o amor próprio e a aceitação, honrando minha jornada pessoal e cada passo que me trouxe ao aqui e agora, até mesmos os tropeços. Aceitar. É tudo que se pode fazer quando se trata de um trauma. Se não marcasse, não rimaria com alma. 

          Ligue 188. https://www.cvv.org.br/ 
          O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.  
          Saúde mental importa. 
Leena Charpentier