sexta-feira, 17 de junho de 2022

Ao que vale ser dito


Digo o que eu sinto. Digo o que eu vejo e vivo. Digo quem sou. Já dizia o ditado popular "Diga-me com quem andas, que te direis quem és". Há tanto a se dizer pelo mundo afora, então, por que calar-me-ei?

O "dizer" me atormenta, me sufoca. Às vezes me questiono: "o que vale a pena ser dito?" Tenho tanto a dizer, tanto a esvair e poucos querem me ouvir. Aliás, quem gostaria de ouvir as barbaridades que perambulam em meu subconsciente? Quem quer ouvir os uivos abafados do meu coração? Quem quer ouvir os desejos mais sombrios de m'alma? Quem quer ouvir o que tenho a dizer?

Quero dizer, por isso, digo: anseio por amor. Sei que já ficou clichê e que vocês devem estar enjoados de tanto ler sobre tal assunto em meus textos, porém é a única verdade que há em mim. Eu o admiro em todas as suas facetas. Multifacetado, multiforme e único ao mesmo tempo. O amor me encanta. Me comove. Me move.

Olhos nos olhos, pele na pele. Almas entrelaçadas, não só por um momento, mas para a eternidade. Chamem- me de menina sonhadora, eu os deixo. Os sonhos me permitem levitar, suas mãos me puxam para fora do poço. Marte e Vênus se beijam. Sol e Lua se amam. E nós? Calaremos o nosso amor? Jamais!

Diga-me meu bem, não se cale. Tome do meu cálice de inconsequência. Me diga tudo de mais obscuro, de mais puro, de mais verdadeiro... Não há motivos para calarmos. Quer falar? Fale! Quer dizer? Diga!

Conforme diz o nosso profeta da música Lulu Santos, "deixe que digam, que pensem, que fale"!

Não precisamos calar os tremores do nosso espírito. Não precisamos vendar os olhos das nossas almas. Deixe que seu corpo fale. Deixa que seu coração diga tudo o que sua maldita boca quer calar. Apenas deixe. Diga. Exista. Viva. Sonhe. Quebre o cálice. Não cale-se. Permita ser quebrado e se reconstrua como um lindo mosaico. Não sabote o seu "bote salva vidas". Não deixe que os traumas te paralisam, mas se olhe num "espelho" e reflita o seu real significado, não o imaginário.

Feche seus olhos, se jogue de alma e corpo. Siga sempre seus sonhos e lembre-se do mais importante, tudo vale ser dito quando vem do coração!

Da sua amada, e às vezes sumida, Glória Maria!

 O mal dito, o maldito. O jogo de palavras é interessante e o conteúdo provocante, a autora faz uso de metáforas que nos levam a diversas direções e reflexões. 

"Não posso dizer que desejo um estranho sobre mim, à revelia de meus quereres, segurando mãos contra o chão com a força de um animal sedento" 
É óbvio o desejo, a necessidade, o mal dito desesperado por ser dito, e bem dito. Bendito toque que saciaria todo desejo. Lendo a poesia, foi inevitável relacionar com Rita, quando cantou que "sexo é imaginação, fantasia" e fez arte falando sobre o mal dito, muito explorado em sua arte... "Amor é prosa, sexo é poesia".

"Através de olhos sufocantes, corpos expostos e movimentos bárbaros" 
O ato, a concretização, o momento em que nada precisa ser dito, não com palavras. 

"Não posso dizer, por isso não digo"
O desejo permanece reprimido, negligenciado. Não pode ser dito, mal dito ou bem dito. Silenciado, mas nunca findado. 

Uma pornografia depressiva 


Querida autora, confesso ter ficado intrigado somente com a ideia de escrever para você. Talvez isso se deva ao desejo do Eu de habitar o audiovisual também, um dia. Enquanto Felipe narrava sua trajetória, humanamente pensei que gostaria de ser lembrado de mesma forma em um possível futuro.

Juntamente com a leitura veio minha confusão, podemos culpar minha empolgação por aqui. Dado a escolhas de palavras, imaginei ser um relato jornalístico poético sobre a cobertura de um assassinato. Até futuramente perceber que se tratava sobre o mais puro ato carnal do sexo, o que me fez questionar: por quê não estamos prontos para discutir sobre a obscenidade e obscuridade presente em atingir um ápice orgasmático? O Shaolin certamente estaria pronto para ganhar essa discussão.

Não pretendo ser poético sobre algo tão viril ou muito menos tentar convencê-lo sobre a reflexão dentro de algo que é apenas instinto humano. Transar. Movimentos repetitivos e prazerosos que tendem a nos mostrar o paraíso, suspiros ofegantes, mãos entrelaçadas, olhares ritmados e quentes. A oportunidade de conectar dois caminhos em um toque só. A questão abordada é: o que acontece quando tudo isso se perde? 

O que acontece quando os momentos desejados são apenas aspirações? Quando os instintos são deixados de lado e tudo se torna o breu? Quando a dor da lembrança é pior do que o arrepio e choque do orgasmo? O que acontece quando uma essência se perde e se transmuta em um monstro?

A morte de uma memória, de forma turbulenta, violenta e sangrenta. Não literalmente, e por muitos talvez esse fosse o desejo, mas a sua eterna falta de cor. Um assassinato, talvez não estivesse tão equivocado na gênese de meu pensamento. Quando Pedrosa decide expor sua impossibilidade de relatar seu desejo, imagino sua sensibilidade por detrás das lembranças sexuais e selvagens relatadas. Um instante de pura vida que passa a simbolizar a morte de uma narrativa: o que poderia ter sido se estivéssemos falando do “poema do bem dito”?

Não sei. Muito provavelmente a querida Patrícia também não. No entanto, entendo-te como uma pobre alma sedenta por doses de sua favorita droga. Aquilo que mais nos sacia costuma ser o nosso maior veneno. Encontramos a autossabotagem e a tornamos uma perfeita companheira em uma jornada decadente e sem possíveis caminhos para a paz.

Perdoem-me por minha falta de linearidade, companheiros. Minha confusão precisava ser exposta de alguma forma. Prometo ser mais fiel a uma narrativa concreta, tentarei. Além disso, não descaracterizem minha máscara por sua ausência de tristeza e decepção inabitual. O sofrimento dramático e exagerado ainda pertence meu ser, sempre pertencerá.

Apesar de toda narrativa e peso exposto em suas palavras, através de enormes metáforas, meu espírito cru e vil enxerga apenas a essência uma pornografia depressiva. Você não pode dizer, Patriciar. Entendo você, eu também não posso. Em um universo de possibilidades finitas, o não dizer nos permite a oportunidade de abraçar aquilo que se pode ser dito, nos momentos perfeitos em que se podem ser ditos. Mesmo que seja um gemido ou um suspiro antes de alcançar o seu ápice sexual.

Diga. Fale. Pense. Exista. Seja.

Com carinho,

Shaolin, o matador de porcos e o Eu.

 Por isso, eu digo


Posso dizer que falar sobre sexo em sua mais pura exência ainda é um tabu, para nós que somos mulheres é pior. A pele na pele, arrepio na espinha, suor compartilhado e troca de olhares famintos.  Senti desejos sendo negligenciados ao ler seu poema, vi que parte dos meus desejos também estavam ali. Principalmente aqueles que não compartilho por medo, vergonha ou ingenuidade. Aliás Patrícia, você tem medo de contar seus anseios? Não posso agir como se fossemos íntimas e falar: "Ei amiga, fala tudo, sem vergonha. Compartilha comigo!” Não posso dizer. Por isso, não digo. 

 Não nego, desejo é algo bom e eu gosto. Gosto mais do que eu admito gostar. Acho que o prazer é necessário para uma pessoa, assim como água e consciência de classe. Temo não ser tão delicada quanto você foi ao descrever um ato tão descarado, não costumo ser assim e nem sei se consigo alcançar sua delicadeza. Confesso que ao conhecer a Patrícia que o Pena citou, fiquei admirada. Não pude deixar de te procurar no instagram para ver quem era essa moça que fez meus olhos brilharem com uma poesia. Admito, esse é um péssimo hábito que o dinamismo das redes sociais me fez ter. Mas  pulando esse papo digital, vamos falar do que não foi dito. 

Sexo. Existem muitas formas de fazer e outros tantos fetiches. Alguns mais difíceis de falar em voz alta, outros nem tanto. Não sou fã de anunciar aos quatro ventos tudo que gosto e não gosto na cama, mas sempre que tenho a chance, deixo escapar em uma conversa entre amigas. Em alguma época da minha vida o sexo não era algo bom pra mim porque não sabia o básico. Ninguém conversou comigo sobre esses atos, fui aprendendo sozinha algumas coisas simples como não ter medo de chegar lá. Por isso, sempre que tenho a chance de falar para uma ou outra colega, falo. Digo que transar é compartilhar. Não é justo estar lá só para saciar o desejo de outrem. Elas precisam saber. Por isso, eu digo.

Acho que esse é o meu erro, Patrícia, por que não compartilhamos com os homens também? No que esse silêncio ajuda quando pensamos que falar sobre sexo é um problema para as mulheres? Tenho a resposta: não ajuda em nada. Precisamos que saibam que desejamos estranhos sobre nós, que gostamos da força, do sufoco, dos olhos sufocantes, gostamos dos corpos expostos e ainda mais dos movimentos bárbaros. Podemos dizer, temos que dizer. Por isso, eu digo.


Com amor, Dandara dos Palmares.

O desejo repreendido em mim clama pelo teu ser. Não sou capaz de controlá-lo, tampouco consigo fazer o mesmo com meu corpo. Mas posso tentar não pensar tanto em você... Sozinha à noite, mergulho em lembranças de nossos momentos íntimos. Éramos selvagens pecadores apaixonados. Nos tornamos estranhos separados por uma distância monumental. E eu não posso te dizer como me sinto. 

Meu corpo ainda responde aos pensamentos mais masoquistas sobre ele. Mesmo assim, tento não me envolver nessa onda de imaginação que me desnuda. Sozinha ao amanhecer, o desejo repreendido insiste em continuar no âmago do meu ser. A existência de outros corpos sobre mim não é capaz de saciar a minha vontade. Ninguém me consome como ele. Simplesmente não posso dizer a ele como me sinto. 

Caminho em direção à loucura, no ímpeto de encontrar uma solução para essa frustração. Os olhos castanhos que tensionam minha carne em segredo não me tem por inteiro. Por isso, carrego a revolta e o peso das palavras não ditas. Infelizmente, não posso dizer a ninguém que o meu suspiro mais sincero pertence a alguém.

O mal dito e o não dito caminham juntos. Como também sufocam aqueles que clamam por libertação.

 Código Morse


— Ei. Precisamos conversar.


Nós dois somos um pouco ruins em conversar com palavras. Você tende a se enrolar na própria língua, e eu vomito sem-sentidos toda vez que abro a boca devido à uma vontade inexplicável de preencher o silêncio com o meu próprio ego. A meia-luz em nada ajuda nossa situação, despejando uma sombra amarelada sobre você, desenhando uma auréola na sua cabeça. Eu queria arrancá-la daí.


Nós dois somos um pouco ruins em conversar com palavras, então as pontas dos seus dedos me contam uma mensagem em código Morse sob a mesa. Você sabe que eu ainda não sou fluente. Todos os dias, eu abro um novo livro e encaro as páginas com a transcrição do alfabeto que eu aprendi a chamar de seu. Pouco a pouco, eu entendo as mensagens que você desenha nas minhas mãos, pulsos, coxas, panturrilhas, pés, pescoço:


Linda. Eu adoro o seu cheiro. Chega mais perto. Me conta um segredo.


(Eu acho que já te contei todos.)


Essas são palavras que eu já ouvi. O que realmente precisamos conversar sobre paira entre nós como se fosse parte da decoração do restaurante; candelabros, cortinas, O que nós somos?, garçons, cartas de vinho, E a nossa data de validade?, talheres, taças de cristal. Eu e você ignoramos isso.


— Eu sei que precisamos. Como foi seu dia?


Sua voz me deixa com vontade de vomitar. Ela me lembra dos sussurros trocados sob uma luz de rua, de mensagens de áudio oitentistas, de viagens de carro que duram cinco minutos e canções trocadas entre risadas. Ela é tudo que eu quero ouvir agora e a última coisa que eu desejo no momento ao mesmo tempo. Por cima da mesa, você coloca sua mão sobre a minha. Por baixo da mesa, nossos pés se tocam; meu salto vermelho e seu tênis preto, uma ode à teoria das cores.


Não gosto de falar o que sinto, então tal qual Patrícia, não digo. Meus sentimentos ficam presos na garganta, amarrados a correntes que nem mesmo seu beijo conseguiria arrancar. Na filosofia simplista do hedonismo, só preciso fazer o que me dá prazer. Você entra no requisito. Falar sobre mim, não. Gostaria que fosse um não poder, mas é um não querer. Você acha que eu sou egoísta?


— Não é disso que eu tô falando. Precisamos conversar de verdade.


Nós dois somos um pouco ruins em conversar com palavras, então eu deixo as minhas unhas desenharem círculos nas suas palmas. Você engole em seco. Nós já temos nossa própria língua. Eu jogo meu cabelo para o lado direito e você sabe que isso quer dizer Eu sei que você está mentindo. Você coça a ponta do seu nariz e eu sei que isso quer dizer Não gosto quando você age assim. Até o momento, nenhum de nós fez esses movimentos. Acredito que estejamos bem, mesmo com as palavras nos incomodando.


Penso no que quero fazer quando sairmos daqui. Uma colher de sorvete de canela para abrir o apetite, tropeços nas pedrinhas da calçada para ouvir sua risada, enrubescer quando você falar que eu estava linda essa noite. Temos a nossa rotina a esse ponto. Você vai me ajudar a tirar os sapatos e eu vou rir de como seu cabelo fica quando você tira a camisa.


Click, clack, click. Meus saltos batem contra o chão do restaurante e o barulho se confunde com os ponteiros do seu relógio. Estamos com o mesmo objetivo em mente e, mesmo nos conhecendo, mesmo entendendo que o peso das palavras malditas não ditas causam uma pressão na boca do estômago, mesmo querendo solucionar os mistérios que nos assombram como se nós dois fôssemos detetives, não daremos o braço a torcer. A nossa teimosia, como quase todo o restante, combina. Às vezes, penso que tudo seria mais fácil se nosso encaixe não fosse tão agradável.


Nós dois somos um pouco ruins em conversar com palavras, e é por isso que eu me ocupo com a conta e deixo você fazer o pedido. Nós nos entendemos sem elas e, na maioria das vezes, não precisamos delas. Quando quiser falar comigo, é só batucar na minha pele em um ritmo constante e pelo menos umas três vezes — ainda não peguei o código inteiro, mas eu aprendo. Você é o único que pode me ensinar.


— Já estamos conversando.


No final da noite, sou eu quem descobre o que você esconde, mas é você quem me faz sentir confortável mesmo exposta até a última camada da derme. E sobre as palavras, quem precisa delas? Se não gosto de dizer, não digo. Mas…


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 Poder

Não conseguirei seguir o gênero crônica nesse texto. Isso porque o desejo sempre foi, para

mim, algo muito além da famosa vontade de fazer amor. De dar carinho a quem se ama.

Quando perguntado o que eu imaginei ao ler o texto da Patrícia, acho que não pude fugir da

espiral que me levava até o canto escondido de um corpo que não posso dizer, como a autora,

que possuo. Mesmo que eu queira.

Dificilmente existe algo muito profundamente poético escondido nos ruídos animais e no

toque brusco da minha mão tateando um corpo em busca de colocar para fora, de algum jeito,

uma dor que eu ainda não entendo se é boa ou ruim. Existe, no entanto, algo

milimetricamente versificado e escondido na meia luz de um quarto, enquanto eu busco um

romance na mistura de fluidos e no toque da sua língua pelas minhas costas. Assim, eu

quebro toda a ideia de uma crônica nessa escrita.

Quando perguntado o que eu imaginei ao ler o texto da Patrícia, aconteceu o que eu não

queria: eu imaginei uma situação muito específica, seguida de “pensamentos invariáveis”

muito específicos e que rondavam, loucamente, toda a extensão do seu corpo jogado no chão.

Pisado, sujo, melado. Não existem muitas palavras porque, como no texto, meu pensamento

não varia quando eu imagino as marcas do seu rosto se formando ao fechar os olhos com

força. Há alguma forma de variar? Ou melhor, alguma forma desse texto não virar uma carta

endereçada ao choque do meu corpo contra o seu?

Não vou entrar na ironia que permeia um poema sobre sexo que fala sobre não poder quando,

no fundo, a consumação do ato carnal é sobre poder. Poder falar sobre ele. E poder cuspir,

poder gritar. Sobre o poder. Quase como o que você exerce sobre mim, ainda que por alguns

instantes perdidos.

Eu aponto a contradição em um texto que não escrevi porque, no fim, quero fugir da noção

do quão vergonhosamente irônico é não receber o poder de chamar de meu o seu gosto quase

imoral.

Não posso chamar de meu

por isso, não chamo

Que merda.

Por que não dizes o que queres?

O patriarcalismo aniquila qualquer vontade feminina que não seja de prover ou cuidar da família. O machismo enraizado - por séculos - em nossa sociedade oprime e silencia. Mata o que nem nasceu por completo, o que sequer desabrochou. Corta pela raiz qualquer traço de individualidade. Gerações após gerações de mulheres cresceram com o discurso reacionário de que seu papel na cama era apenas satisfazer o homem. Seus fetiches estariam em segundo plano. Assim, tamanha opressão faz com que a mulher acredite que não foi feita para ser amada, tocada e desejada. A faz sentir vergonha ao sentir-se atraída por um homem que não seja seu marido ou, pior,  por uma mulher. A faz sentir-se culpada caso deseje algo mais obsceno, não convencional. Não a permite falar abertamente sobre seus anseios sexuais mais profundos sem expô-la ao ridículo, a humilhação.Não podes dizer o que sentes por seu parceiro. Tens de controlar-se, manter a posição de mulher recatada e reprimida. A cerca, portanto, não é mais física, visto que houve a queda das leis que criminalizavam o adultério e a masturbação, por exemplo. É mental.
A perpetuação desse pensamento conservador cria mulheres extremamente frustradas com seus corpos devido à repressão sexual sofrida desde pequena. O estresse é flagrante, além do sentimento de vazio. Por isso, diga não.Mil vezes não. Seja livre e lute pela emancipação feminina. Independentemente do reacionarismo e conservadorismo que nos cerca, diga.Rebele-se contra este mundo medíocre e careta. Inspire-se e lute como Rosa Luxemburgo, Frida Kahlo e Marielle. Cale-os. Permita-se sentir e realizar-se.  Tenha em mente que prazer e mulher não são palavras opostas, rivais. 

 TO THE END

Hoje faz frio. Muito frio. O sol se pôs há algumas horas e a majestosa rainha da noite se faz presente, completamente cheia, num céu escuro, sem estrelas, como se hoje a noite fosse apenas dela. Ninguém teria a ousadia de tirar seu protagonismo. Conforme as horas passam e a madrugada se aproxima, uma fina neblina completa a paisagem mórbida, vazia, profunda e silenciosa de todas as ruas, vielas e becos da cidade. Como um véu de noiva, a neblina acompanha a Lua e lhe concede beleza jamais vista, jamais imaginada, jamais idealizada.

Não há absolutamente ninguém nas ruas. Nenhum carro passa. Não há um ruído sequer.

No exato instante que o relógio crava três horas da manhã, o tempo é suspenso. A dimensão temporal conhecida por nós, meros mortais, não faz mais diferença. Nesse eterno minuto de suspensão temporal da noite mais fria e escura do ano, iluminada apenas pela rainha solitária no céu, a Vida e a Morte se encontram e bailam pelas ruas, vielas e becos da cidade. Uma dança atemporal, visceral, sepulcral, paralisante, estonteante, nunca vista antes.

– Você voltou.

– Jamais te abandonaria. Você sabe disso, Vida. Esse momento agora é nosso. Meu pedido de desculpas. Um presente que queria te dar há muito tempo. Todo o tempo do mundo em nossas mãos. O infinito passageiro do badalar do relógio. Apenas nosso, para sempre será.

Ambas se aproximam, primeiro entrelaçando seus dedos, como se fizessem um pequeno reconhecimento de terreno, como se testassem sua incontestável compatibilidade, mesmo que muito contraditória. A morte, frios dedos, ossos expostos, brancos e polidos. A vida, com mãos rosadas, hidratadas e quentes. O primeiro toque ainda muito hesitante, inseguro, incerto. Há muito não se viam, não se falavam, não se permitiam.

– Senti sua falta. Suspira a Vida.

Após o primeiro contato, se abraçam, e já nesse primeiro abraço que mata a eterna saudade, o baile começa e as duas flutuam pela cidade entrelaçadas, presas uma à outra de uma forma que nada nem ninguém no cosmos poderia soltar.

Uma valsa belíssima. Pode-se dizer que a dança daquela madrugada foi a mais incrível de todos os tempos. Vivida com vigor pelas eternas companheiras, sempre tão distantes, mas que agora aproveitariam para sempre aquele infinito minuto. Era todo o tempo de que precisavam, era todo o tempo do mundo.

– Sabes que sempre te quis ao meu lado

– Agora estamos lado a lado, minha Vida.

– Não só agora. Queria-te antes, queria-te para todo sempre.

– Este é nosso infinito. Este é o nosso “para todo sempre”.

– Não posso dizer...

– Então não diga.

A distância entre as duas diminui cada vez mais. O silêncio ensurdecedor das ruas parece abraçá-las em sua valsa e conduzi-las num ritmo lento, feroz e apaixonante. Seus passos tornam-se cada vez mais compassados e a valsa adquire elementos dramáticos, como se em um castelo em ruínas ganhasse vida um baile. Fugindo da queda dos escombros, a Vida e a Morte driblam as contradições, a repressão e a não aceitação da obviedade: elas nasceram para estar juntas. Um casal improvável, uma paixão que não pode existir. Mas que existiu. Durante um eterno minuto, onde o tempo parou e se curvou perante a violência e beleza da valsa mais improvável, a Vida e a Morte se amaram e selaram sua paixão na noite mais escura e fria do ano.

Não há razão que explique. Esta apenas possibilita “momentos fúnebres de pensamentos invariáveis” onde se negaria aquilo que não se pode negar.

A repressão do desejo confere à valsa a violência que as mais ardentes paixões em seus infinitos começos possuem. A vontade de não soltar, a negação, agora, da separação. Vida e Morte se abraçam fortemente sabendo que o infinito estava perto do fim. O coração pulsante e palpitante da Vida se opõe ao gélido e inerte coração da morte, e como num milagre, numa transferência de energia, confere à desesperançosa Morte um último batimento. A estranha pulsação faz vibrar até o menor dos ossos, da falange ao martelo, é possível enfim sentir. Morte esboça um sorriso discreto no canto do rosto e se tivesse lágrimas com certeza cairiam sobre seus pés.  

– Vida, hora de ir.

As duas se olham profundamente pela última vez. Os profundos olhos da Morte encaram a face jovial da Vida de perto. Se afastam um pouco e posicionam, cada uma, a mão no peito de sua amada, sentindo também pela última vez, a batida de seus respectivos corações. A vida, pulsante, a morte, deteriorante.

Três horas da manhã e um minuto.

O tempo voltou a correr e a lua cheia, amarelada e perfurada, voltou a ser a única protagonista da noite. Nesse sufocante silêncio, no meio à neblina e sob a luz do luar, a Terra foi palco da mais bela dança jamais presenciada. A representação da incapacidade de dizer, da repressão do desejo e do amor, do irremediável. Vida e Morte jamais puderam ser aquilo que queriam, mas durante aquele infinito momento, mesmo que passageiro, amaram e sentiram mais do que qualquer um poderia sequer imaginar. Mais do que qualquer um poderia dizer.

Por isso, melhor nem dizer.

Ford Prefect

 REPRIMIDOS, SEXUAIS E REVOLTOS

“Tudo nesse mundo é sobre sexo, exceto sexo. Sexo é sobre poder”. _ Oscar Wilde

Poema do mal dito, escrito por Patrícia Pedrosa certamente é um poema confuso, o que não é algo ruim, uma vez que os melhores poemas são difíceis de entender. Ainda assim, algo evidente é que se trata sexo, logo, fala sobre poder.

A relação sobre sexo e poder é óbvia, o ser humano é regido pelo prazer, e isso é engrenagem fundamental para fazer nossa sociedade girar. No entanto, é um tema complexo que não tenho tanta experiência para abordar. Esse tema foi muito estudado pela psicologia, sociologia e filosofia, o que nos mostra que é um ponto extremamente importante para se debater.

A sexualidade pode se mostrar como prazer, liberdade, conexão e criatividade, mas também pode ser opressão e repressão, e eu acho que é isso que o texto aborda. O Poema do mal dito, nos mostra uma pessoa que se reprime a todo momento, seja por não poder falar que deseja um estranho sobre ela, seja por não poder dizer que um sexo com “força animal” saciaria o seu “anseio revolto”. Essa sua repressão certamente se deve a cultura judaico-cristã, influente no mundo ocidental, que mudou a perspectiva que olhamos para o sexo, o vendo como um instrumento de procriação, e não necessariamente de prazer, o que é extremamente perigoso.

Tal ação se torna evidentemente perigosa quando a ligamos com a frase que eu disse antes, o ser humano é regido pelo prazer, e por isso, se reprimir sexualmente é quase igual a mutilar um pedaço de si mesmo. Segundo Freud, considerado o pai da psicanálise, a repressão sexual exercida por uma moral específica como a judaico-cristã, é uma grande fonte de doenças neuróticas.

Além disso, vemos que práticas sexuais não tão comuns, como as experimentadas pelo eu-lírico, como o sadomasoquismo, ou até mesmo um sexo mais violento, são julgadas como pecaminosas e estranhas pela nossa sociedade, ainda mais para grupos que não sejam o homem, branco, cis e hétero, e para esse grupo em específico, é considerado inaceitável estar em uma posição de submissão, uma vez que ele deve ser “macho” o suficiente.

Por isso, acredito que o eu-lírico do poema esteja se condenando por ter condutas sexuais não convencionais, como fazer sexo com estranhos e gostar de um sexo considerado violento, e mais do que isso, acredito que o poema nos leve a uma reflexão que é: Todos temos fetiches, por que não podemos simplesmente aceitá-los, ao invés de ficar nos reprimindo ou os fazendo escondido?

E eu sei o porquê disso. Isso ocorre porque sexo é poder, e mais do que isso, admitir que tem condutas sexuais diferentes das estabelecidas pela nossa sociedade é como lutar contra uma ditadura, um sistema opressor que nos atinge dia a dia, e é muito difícil lutar contra ele sozinho.
 
Mas o ponto é exatamente esse, devemos nos unir nesse processo, sexo é algo a ser discutido, sim! E mais, não seguir esse modelo opressor sexual deve ser motivo de orgulho, e não de algum tipo de vergonha. Devemos sim nos tocar, nos conhecer, fazer sexo com quem quisermos (desde que seja recíproco), experimentar tudo na cama, no quarto, na cozinha e onde mais quisermos, para assim, nos desvencilhar de qualquer coisa que nos reprima ou oprima, como a moral vigente em nossa sociedade.

Sexo é poder, e fazer sexo maneira que se quer, é revolução!

 O não dito


Talvez eu tenha entendido tudo errado. Se bem que não dá para entender errado uma poesia que também é minha. 


Isso, claro, se supusermos que nossas experiências nos pertencem. Vendo dessa forma, seja qual for o desfecho deste texto que nasceu meio tímido, sem jeito, ele pertencerá a todas, ou todos nós: à autora, a mim, e a você que me lê. Mas talvez nada seja assim tão nosso, você não acha?


À exceção de uma coisa: aquilo que (não) dizemos. Porque pensar é involuntário, mas dizer é uma escolha: há palavras que fluem facilmente, leves e confortáveis como uma brisa de verão, ou como o manto de microfibra que você provavelmente já tirou do armário a essa altura do campeonato. Mas no fundo, lá no fundo, estão os nossos desejos. 


Não estou falando do desejo de ganhar cinquenta milhões na Mega-Sena, mas aquele desejo de estrangular a pessoa que você mais ama. O desejo de fazer o mal, a coprofilia, o gozo de ser a grande vítima da história e o que mais sua cabecinha infame puder inventar. 


O que você não pode dizer é seu. Só seu. 


A não ser que você resolva gritar para a turma inteira ouvir. Ou contar só para mim, e tudo o que disser será nosso grande segredinho pessoal (não aconselho esta última opção, porque assim eu seria um pouco dona de você, um peso que não sei se posso carregar).


Talvez o primeiro campo de guerra seja o da palavra. Uma guerra interna, de medo, vergonha, desejo. Uma autofagia.

Cais de porto


Confesso que a poesia contida no Poema do mal dito me deixou um pouco confusa. Posso estar completamente equivocada, mas a sensação que tenho é que o eu lírico deseja algo considerado “sujo” e talvez por isso não possa dizer em letras garrafais ou gritar para o mundo o que sente. Nesse quesito, consegui me identificar plenamente. Porque esta semana tive um desses momentos figurativos e extremamente sensuais, que me deixaram um pouco sem graça. Eu também desejei que uma certa pessoa me tomasse num rompante e me colocasse contra a parede, mordesse a minha pele e me fizesse delirar.


E, embora estivesse em um ambiente estritamente profissional, minha mente não se limitou. A garota na minha frente, trabalhando arduamente e distribuindo ordens, ao passo que eu só conseguia pensar nela fazendo isso só que apenas comigo, na minha casa, no meu quarto. Adoraria que ela lesse meu texto, morreria por uma reprimenda dela ao meu ouvido. Tenho certeza que distorceria tudo, só escutaria “Assim, não…” em vez de “Assim, não!”.


Eu queria que ela me seguisse ao banheiro, rasgasse a minha roupa, colocasse a mão dela na minha coxa e descesse devagar. Eu queria que ela chegasse e ficasse. E ficasse. Me tateasse. Talvez seja essa a minha diferença, eu não quero uma estranha, mas alguém que conheço. Isso já faz do meu desejo um tanto menos sujo, porém, ainda sim, um tanto desrespeitoso com uma pessoa pela qual digo nutrir sentimentos. 


Espero que um dia eu tenha coragem suficiente para mostrar esse texto para ela. Talvez bêbada de algo mais forte do que as bebidas de um bar.


Liev

domingo, 12 de junho de 2022

Caro pequeno eu


Essa carta vai para mim. Na verdade, ela é para aquela criança que passou boa parte de sua infância imaginando a pessoa que seria, mas que não se tornou quem imaginava. É muito interessante pensar como nossa mente vai criando expectativas sobre nós mesmos no molde como a sociedade gostaria que fôssemos. Engraçado pensar que imaginei chegar nessa idade de uma forma totalmente diferente. Sempre cresci me imaginando como uma pessoa com muitos amigos, alegre, que desbravaria o mundo fazendo o que gosta. Também cresci me imaginando com uma pessoa muito bem-sucedida no amor, no trabalho e financeiramente. E é muito frustrante chegar na fase adulta e perceber que toda aquela vida perfeita que imaginávamos que seria o nosso futuro, não passou de uma ilusão. 

Imaginava chegar aos 20 fazendo a faculdade que gosto, trabalhando com o que gosto, viajando com os amigos, vivendo a juventude como nunca e tendo ao meu lado a pessoa que gosto. E quando a realidade bate e mostra que a vida é muito diferente daquilo que moldamos, é um choque de realidade. Crescer moldando o meu eu do futuro me fez chegar no hoje com muitas frustrações. Mas, inegavelmente, também muita maturidade foi adquirida com as vivências diferentes do que era esperado, além dos baques com as quebras de expectativas e decepções durante esses anos.

Olhar pro meu eu de hoje e ver que sou totalmente diferente daquilo que me imaginei é um pouco assustador. Alguns me consideram uma pessoa forte, equilibrada e, de certa forma, bem-sucedida por ter alcançado algumas das minhas metas (como você imaginava que seria). Mas, na verdade, quando essas pessoas conhecem o seu eu do futuro de verdade, além dessa casca de proteção criada para o mundo externo, elas descobrem uma pessoa frágil e com muito medo da vida, por conta da bagunça sentimental interna que você se tornou por criar em sua cabeça um mundo ideal que nunca existiu.

Mas, nem tudo nesse caminho foi ruim ou diferente daquilo que você, pequeno eu. Conhecemos pessoas incríveis que carregamos até hoje, vivemos experiências que nunca imaginamos que teríamos, nos apaixonamos, fomos imprudente algumas vezes (de não se lembrar da noite passada, como você sempre sonhou), tivemos a coragem que não teríamos em algumas situações e realizei um dos seus maiores sonhos. Hoje sigo o que você tinha planejado ser quando criança: jornalista. Muito provavelmente não na área que você sonhou, mas muita coisa mudou nas suas preferências nesses últimos anos. Talvez se você pudesse ver o seu eu do futuro, você sentisse orgulho pela pessoa que você vem se tornando, mesmo ela sendo bem diferente daquele conto de fadas que você imaginou.


sexta-feira, 10 de junho de 2022

 Rio de janeiro, 09 de junho de 2022


Meu querido amigo, vai fazer 7 meses desde que você se foi e não há um dia que eu não pense em você.
Não há um dia que eu não pense em nossas memórias juntos desde a infância ou até de nossas discussões, todos esses momentos por mais que não poderão ser vividos de novo sempre estarão vivos em minha memória. Eu me recordo de uma de nossas conversas sobre a vida, na qual você disse " uma pessoa só morre de verdade quando é esquecida" e acho que só depois disso tudo que eu entendi o verdadeiro sentido dessa frase. 
Enfim, como é aí no céu? É tudo que sempre imaginamos? Ruas de ouro, casas de marfim, tudo belo e perfeito?. 
Para ser sincero eu nunca acreditei em conceitos como céu ou inferno, mas ao mesmo tempo eu me recuso a aceitar que você só se foi, Mesmo não acreditando gosto de acreditar  que você está no céu ou em algum lugar parecido, espero que um dia a gente se encontre aí e possamos compartilhar uma bebida e falar sobre a nossa vida.
E falando em vida, a minha tem sido um pouco conturbada ou estranha não sei ao certo, muitas coisas mudaram nesses 7 meses, ou melhor desmoronaram, tudo parece fora alcance ou simplesmente sem esperança de uma mudança, mas prefiro lhe contar o lado positivo, nesses últimos meses eu passei para a faculdade, tirei a carteira, comecei a terapia, estou saindo mais de casa, fiz novas amizades e várias outras coisas positivas.Mas para ser sincero sinto muito a sua falta, sinto falta de ter alguém para compartilhar as pequenas vitórias ou até às derrotas da vida.
 E mesmo você não estando aqui muitas dessas coisas só aconteceram graças a você, como por exemplo eu ter escolhido fazer jornalismo, você foi a pessoa mais me apoiou nessa decisão, que me deu forças em vários momentos em que eu achava que não era capaz, vou sempre agradecer a Deus ou ao universo por ter tido o prazer de ter sido o seu amigo por 19 anos da minha vida.
Me desculpe por não conseguir ir em sua casa, para mim ainda é muito doloroso, não consigo ver um local que compartilharmos tantas memórias juntos sem você, mas prometo que até o fim do ano eu irei lá dar um abraço em sua mãe e nos seus irmãos, principalmente no Caçula, Ele ainda sente muito a sua falta.
E mesmo sendo botafoguense eu vou fazer de tudo para que ele siga os caminhos do flamengo que nem o irmão mais velho, você vai ficar me devendo uma, no pós vida eu cobro essa.
Espero que você esteja descansando em paz e que não tenha me esquecido ainda, por que quando eu morrer quero virar o Gasparzinho ou qualquer fantasma genérico e assombrar alguma casa abandonada com você e o pessoal, por que esse era o nosso plano.


Encerro a minha carta por aqui, qualquer dia desses vou lhe escrever novamente e espero que faça mesmo. 

Um grande abraço, eu te amo meu irmão.

Ps. O seu real Madrid ganhou a Champions League, então estou te devendo 10 reais.

 No tears in heaven 


Querida mãe,

 

Alguns anos se passaram desde que nos vimos pela última vez, ainda me lembro do brilho do seu olhar se apagando após o sopro da vida abandonar o seu corpo e não gosto de lembrar disso. Me recordo da chuva nesse dia e de como eu me perguntava se os céus choravam comigo. Fico feliz por não ter visto a minha queda, como tentei deixar este mundo para ir em sua busca, foi assustador, nunca achei que teria coragem para isso, entretanto, eu fiz e não foi só uma vez. Me perdoe por tentar quebrar a minha promessa, eu não sabia como experimentar esse negócio de viver sem você e ainda é muito estranho.

Me lembro sempre do seu cheiro, um perfume amadeirado, misturado a essência de jasmim, tentei simular esse perfume com algumas essências, dessas, vendidas em casas naturais que você adorava visitar enquanto andávamos pela rua, mas para a minha decepção nunca mais encontrei. Ele se foi. Como você e tudo o que lembro de você. Eu sei que você nunca me deixou realmente e que vive em mim, guardada para sempre no meu baú de lembranças, mas fico frustrada as vezes, principalmente quando alguém pega o telefone para avisar que chegou em casa e eu não tenho para quem fazer isso, e sim, eu sei que o meu pai continua aqui e eu valorizo isso, mas ele não é você. Nunca te contei isso, mas você me lembrava um corcel, sempre admirei a vivacidade, braveza e independência dos corcéis, você nunca foi independente ou brava, mas sempre foi viva.

Então, as vezes eu finjo que esqueço de você para que não fiquem me lembrando toda hora sobre o quanto você era incrível. Queria poder reclamar sobre como estou irritada com o transporte público ou de como meu pai sempre queima o arroz, ou te contar sobre a vergonha que passei na semana passada, eu quase caí na rua, no entanto, eu não posso. Você devia saber também que não sou mais aquela garota insegura, assustada com a vida e cheia de antidepressivos para tomar. Eu me livrei do Rivotril, sabia? Aliás, me livrei de tudo, até do medo que me aprisionava enquanto só existia, hoje vivo, saio para dançar, aprendi a tomar as rédeas da situação. Fiquei cansada de querer agradar todo mundo só para que gostassem de mim e fui viver, sendo maravilhosa pra mim. Aquela história do Mário Quintana, sabe, mãe? Estou cuidando do meu jardim, colorindo aos pouquinhos, dançando o vai e vem da vida. Curtindo a jornada.

Eu espero que você esteja bem, no céu que eu acredito que você vive, torço e imagino que as minhas avós estejam por aí, sentadas embaixo de uma grande árvore, conversando enquanto o sol se despede. Ah, e o Bob, o gato que nós tivemos, posso vê-lo deitado no jardim, envolto de flores como aquelas que existiam na nossa antiga casa. E vejo através de uma janela azul, você dançando, ouvindo o som de sua vitrola, Roupa nova cantarolando, como você bem sabe, eu estou sorrindo enquanto escrevo isso, as suas danças eram muito estranhas, mãe. Imagino o melhor lugar, para a melhor pessoa. Puta merda, eu estou com saudade, saiba que estimo o nosso reencontro, vou sempre ver o mar pois sinto você por lá. Bem, está na hora de dizer até logo, o dever me chama, te vejo nos meus sonhos e não quero te ver chorando como sempre aparece, me encontre perto da arrebentação, tenho um segredo que queria te contar, mas não posso fazer por aqui. Saiba também que o meu amor por você ultrapassa o tempo, o universo ou qualquer coisa que possa se medir, não tem medida, a gente ainda vai se ver em outras vidas.

 

Amo você, borboleta


Com amor e muita saudade, sua filha Lilith

 Uma carta aberta para as coisas que Eu perdi 


Inicio este devocional com a intenção de romper quaisquer expectativas, esse talvez seja o mais pessoal e mais perto do Eu que seremos capazes de chegar.


Vocês verão as Minhas dores através do Shaolin, meu personagem mais dramático e andrógeno. Tenham todos uma boa viagem, queridos passageiros.


Começar um texto dessa forma pode ser particularmente difícil, uma vez que a certeza que terminarei devastado em quaisquer caminhos que opte por seguir me invade.


•Queridos pais perdidos, 

 Eu só queria dizer que: eu sinto falta de vocês. Eu sinto falta de como tudo era, e mais do que tudo: eu sinto falta de ser o seu orgulho. Eu sinto falta de não ter um oceano entre nós, era tudo tão leve e puro no início. Todas as vezes que eu começo a trilhar esse caminho, sou pego por lágrimas. Essa é a mais profunda das minhas dores.

 Me perdoem por não ser o que vocês sempre quiseram que eu fosse, por amar mais do que eu deveria e principalmente, por amar de forma abominável. 

 Pai, eu sinto falta de ser o que você sempre sonhou. O sonho que se tornou realidade, aquilo que você passou toda uma vida esperando. Desde então, existe mais distância em nosso abraço mais apertado do que existia em um mínimo olhar, quando eu não era a sua maior decepção. Você acha que eu não percebo, mas a sua violência e rispidez são apenas sinais de que eu ainda te machuco. Eu nunca quis te machucar, eu juro. Eu só queria ser sentir o amor em sua verdadeira identidade, e que vocês conseguissem me amar mesmo assim.

 Mãe, eu sinto falta de sermos a nossa melhor amizade. Eu sinto falta de te contar sobre as minhas amizades e sobre os meus romances, a verdade é que você não quer saber sobre o amor da minha vida se ele não for um homem.

  No final, em todas as minhas versões e facetas, eu só queria ser completamente amado e aceito por vocês. Eu não espero uma resposta, essa é uma pequena saudação à antiga versão de vocês: aquela que costumava fazer com que que eu sentisse como se tivesse um lar. Eu sinto saudade de me sentir desejado.


 Com carinho, o seu eterno budogão


•Querida vovó,

 Às vezes é difícil acreditar que você se foi já tem mais de um ano. Eu me lembro constantemente de você, e as memórias costumam me levar para longe.

Quando eu admiro o mar e o estrago que ele faz sob as pedras, eu me lembro da devastação de ver aqueles homens carregando o seu corpo para longe de mim, tendo a certeza de eu nunca mais a veria. Ainda é difícil pensar sobre nós e assistir os vídeos que fazíamos todas as vezes que eu ia visitá-la, a sua risada me avisa da perenidade da vida. 

 Você parecia eterna, vó. Não sei se você soube, mas achei o presente de aniversário que você havia reservado em seu armário para mim, antes que partisse. Eu ainda não tenho coragem de usá-los, admito. É o mais perto que eu tenho de você, e eu os guardo com mais esmero que qualquer outra coisa. 

 Você será eterna para mim, vó. Enquanto nossas lembranças estiverem vivas em mim, eu pregarei o nosso amor tornando-a tão viva quanto você parece nessa carta. Eu sinto saudades sempre. Esse talvez seja o adeus que eu nunca tive a oportunidade de ter.


 Com carinho, o seu neto lindo


•Querida realidade ideal,

 Quantas vezes me peguei imaginando-a: Um local em que eu posso ser eu, completamente e irrevogavelmente. 

 Minha família compreende a pessoa a quem eu decidi amar, e eu tenho pessoas com quem contar. Não existe desprezo, pelo contrário, eu me sinto amado pelos tios e primas. Todas as vezes em que comemoro minhas vitórias, eu não preciso me preocupar em prová-las. Quando eu conto uma história, não preciso ouvir as retóricas sobre uma possível mentira. 

 Os encontros familiares não são uma tortura e não são horas encarando o celular, sinto-me pertencente e querido. As vozes dos meus avós cantando no karaokê ecoam pelo local, um sertanejo antigo e um coro de fundo. 

 Comer não é uma tortura, mas um prazer. A ansiedade não é uma verdade e os meus sonhos são minhas maiores inspirações. Até lá eu sabia que chegaria aqui.

 O pior de toda essa realidade é saber que ela já foi verídica. Hoje, as engrenagens jamais funcionariam da mesma forma, não quando sou deixado para comer sozinho numa mesa que costumava estar cheia. A humilhação de carregar o mesmo sobrenome pesa como nunca. 

 Um coração saudoso e confuso: eu arruinei tudo ou apenas descortinei a verdade?


Sinto que poderia continuar em cartas falhas e honestas demais, até encontrar o mais ínfimo e podre do Eu: o Shaolin. Portanto, eu lhe prometi apenas a forma mais abstrata do Eu: as suas emoções incompreendidas.


Em um último questionamento, deixo-lhes o maior gatilho e motivação do Eu: aceitação. Sempre quis ser amado e compreendido, e talvez por nunca tê-lo sentido completamente em minha infância, eu tenha uma carência e tendência narcisista absurda, queridos amigos. Vocês me conhecem mais do que a maior parte das pessoas ao meu redor.


Com carinho,

Shaolin, o matador de porco

 Rio de Janeiro, 9 de Junho de 2022


Meu querido quarto, 


    acho que nunca te dei o crédito que você merece. Nunca reconheci sua importância real na minha vida ou te agradeci por ter sido meu lugar seguro tantas vezes. Por isso, hoje vou escrever essa quarta, com um tema exótico, que eu jamais imaginei escrever, em agradecimento a você e a todos os momentos que me proporcionou. Não um agradecimento do tipo “obrigada por ser um teto para eu dormir”, mas sim um agradecimento real, por ter sido o lugar de tantas risadas sinceras e de tantos choros de angústia e alívio.

    Obrigada por ter sido palco para minhas melhores brincadeiras e fantasias de criança e o melhor lugar para as noites de festa do pijama. Te agradeço por ser o local onde eu pude respirar de verdade pela primeira vez depois de inúmeros dias angustiantes e por ter sido o lugar que eu corria para chorar e desabar depois de não aguentar mais.

    Você viu meu primeiro coração partido, ouviu meu primeiro choro por amor, sentiu comigo meu coração doendo, mas também sorriu com cada gargalhada boba de quem conhece uma nova pessoa. Você viu meus momentos de maior intimidade, me ouviu em inúmeros desabafos, me viu acordar depois da primeira ressaca, assistiu diversos abraços coletivos, me acompanhou em cada maratona da série e presenciou milhares de noites de brigadeiro e de conversas entre irmãos. Você me assistiu chorar de alegria quando descobri que passei na faculdade e viu meus olhos brilhando de alegria voltando do primeiro dia. 

   Por esses e por mais mil momentos, obrigada. E, acima de tudo, obrigada por ter sido um grande telespectador dos meus melhores dias, sendo o meu cenário favorito para essa loucura de vida. Um dia, quando esse cenário mudar, vou sentir sua falta. Você vai ser sempre meu favorito e nossas lembranças juntos jamais irão se apagar. 


Com amor, Aria Masiul. 

 O término


Querida Ansiedade, às vezes você me assusta. Temos que conversar, estou achando que nosso relacionamento é abusivo. Não te quero mais, por favor, pare de insistir. É estranho te sentir aqui, tomando conta de tudo que me pertence, me enchendo pouco a pouco, me paralisando, fazendo com que eu tenha dificuldade em respirar. Como você consegue controlar meus pulmões? 

Eu vou ser breve, mas temo que você não me escute. Para com isso! Eu não vou deixar de confiar nas pessoas porque você está com o pé atrás em tudo, agora não consigo confiar nem em mim mesma. Tem mais, acho um absurdo quando você me acorda no meio da noite querendo me fazer chorar. Isso dói, dói muito, sabia? Você nunca sabe, não é mesmo? Sua incerteza ainda vai me enlouquecer. Ultimamente você tem arrancado meus fios de cabelo e roído minhas unhas, nunca te senti tão presente, me machucando e usando minha mente como abrigo. Será que algum dia você vai me deixar? Me avisa antes, insisto, quero comprar vinho e queijo para brindar sua partida. 

Confesso, talvez eu já tenha usado nosso relacionamento para legitimar uma ou outra crise minha, mas será que não era você? Sei lá, estou sozinha e do nada você surge atrás da porta implorando que eu abra. Aliás, eu sei que você tem chave, pode parar de tentar me enganar, você roubou-a de mim faz tempo. Não estou no comando, você entra, quebra minhas coisas, faz bagunça e se esconde de mim. Quero terminar, está tudo acabado entre nós. Sinto muito.

 Meu eterno carnavalesco, 


Escrevo para ti na intenção de compartilhar um pouco da minha atual experiência no plano terreno. De antemão, gostaria de avisá-lo que o mundo não é mais aquela imensidão de felicidade da minha infância. Naquela época, nossa família ainda morava no sobrado branco, compartilhava o mesmo quintal, se reunia para almoçar nos finais de semana e comemorava os aniversários com grandes festas. A vida era mais tranquila e prazerosa de se viver no início dos anos 2000. No entanto, os ares de mudança chegaram quando perdemos a Laís – minha prima e sua neta – aos dez anos de idade. Apesar de ainda ser muito jovem, pude sentir a dor de não ter mais aquela que passou a infância toda ao meu lado. Crescemos juntas, mas nossa trajetória em conjunto foi interrompida pela dengue. Infelizmente, depois desse episódio sofremos cada vez mais desfalques… Incluindo você, que alguns anos depois se despediu quando desistiu de lutar contra o câncer. Agora, a maioria da velha guarda já partiu e nossa família não soube preservar a união de outros tempos. Os membros que restaram encontram-se cansados e perdidos. Alguns mergulharam em vícios que não conseguem largar. E no meio de todo esse desgaste emocional, eu continuo observando tudo com grande lamento.

Nesse sentido, acho importante deixar claro o quanto a sua ausência ainda me abala. Confesso que a sua partida deixou um grande vazio em mim. Naquele dia eu estava no cinema com alguns amigos. Assistimos ao filme “O homem do futuro” com trilha sonora da Legião Urbana. Quando a sessão terminou, uma amiga recebeu a ligação da minha mãe com a notícia. Fiquei desolada. Depois daquele dia, toda vez que ouço a música “Tempo perdido” lembro automaticamente de você. Desabo em lágrimas.   


Então me abraça forte

E diz mais uma vez que já estamos

Distantes de tudo

Temos nosso próprio tempo

Temos nosso próprio tempo

Temos nosso próprio tempo 


Sinto que não tive tempo de expressar o quanto você foi e ainda é importante na minha trajetória. Também sinto sua falta nos momentos mais tristes e nos mais felizes da minha vida. Você foi a figura paterna que eu não encontrei no meu progenitor. Você me compreendia muito bem. Tínhamos um vínculo. De você, herdei o amor pelo carnaval e pelo mundo do samba. Até hoje nunca perdoei minha mãe por não ter me deixado desfilar com você na Cubango. Mas, eu não sabia que anos depois desfilaria pela primeira vez justamente na sua escola do coração. Coincidência, não? Lamentavelmente, você não estava mais aqui e não compôs o samba campeão. Mesmo assim, pensei em você o desfile inteiro. 

No começo desta carta, a intenção era falar um pouco sobre a minha vida atualmente. Conversar como nós fazíamos após suas sessões de tratamento. Contudo, senti a necessidade de expor minha dor e algumas lembranças que carrego. Ainda estou conectada a essas memórias, como também ainda tenho muito a dizer para você. O tempo te roubou de mim. Mas o coração faz questão de recordar todo o meu amor por você.  


Com imensa saudade, da sua amada sobrinha Elizabeth Bennet.