Esta história que compartilharei com vocês não é minha. Por mais que a minha vida seja um mar repleto de aventuras e desventuras, as histórias que Anete, antiga professora de jardim de infância, conta em nossos raros encontros são sempre encantadoras – não por serem recheadas de casais melosos e finais felizes, mas sim porque mostram como as crianças podem ser uma representação fiel dos adultos às vezes.
Anete, ainda no auge de seus 20 e poucos anos, era uma moça esbelta, com seus cabelos lisos negros e seus óculos de grau que davam a ela um típico lookde professora, ainda que se assemelhasse mais às representações sexuais da profissão que se veem em filmes pornográficos. Recém-contratada, Anete era o membro mais jovem e inexperiente do corpo docente do educandário onde trabalhava, o que já era problema suficiente.
Nada, no entanto, significava “problema” tanto quanto o antipupilo, o aluno exemplar da escolinha do capeta, o suprassumo da traquinagem: Juninho. O garoto de 5 anos era o pesadelo pelo qual toda professora contratada tinha que passar antes de poder ser efetivada, embora nenhuma delas tenha sobrevivido a tal ser humaninho travesso. Com Anete não foi diferente.
Seu primeiro (e último) dia no trabalho foi, eufemisticamente falando, uma maratona corrida sobre um chão de brasas. Desde o momento em que chegou a sua sala de aula, quando viu que o molequinho com cara de levado já havia roubado a boneca da Fernandinha, sabia que estava prestes a trilhar um caminho sem volta. Um caminho árduo, permeado por estresse e remédios para dor de cabeça.
Após pendurar a bolsa em sua cadeira, a jovem Anete voltou-se para a turma e disse, impostando sua voz afeminada: - Turma, sente-se! - Claro, sem sucesso. Quarenta crianças berrando em uma sala de aula e a mocinha da voz de veludo querendo ser ouvida era como esperar por um milagre. Milagre, porém, era o que ela precisaria ao ouvir um choro vindo do fundo da sala.
A gritaria se silenciara perante o sofrimento de uma das crianças, que, em prantos, encontrava-se no chão. Os infantos murmuravam, todos ao redor da cena do crime. Alguns poucos, de joelhos, tentavam estabelecer contato com a menina, que agora tinha as mãos no rosto. Ao aproximar-se da pequena multidão, Anete perguntou: - O que houve?
Uma garota, apontando para Juninho, disse: - Foi ele, professora.
— O que ele fez? - questionou Anete.
— A democracia, professora. Ele matou a democracia. - Respondeu a menina, cabisbaixa e consternada.
Anete, confusa, virou-se em direção a Juninho, que tinha um sorriso ardiloso no rosto. O menino não apresentava remorso, e outros garotos já se agrupavam ao redor dele, parabenizando-o por seu feito. Ao perguntá-lo sobre o ocorrido, recebeu a seguinte resposta:
— A culpa não é minha, professora. Ela sempre me chamou pra brincar de casinha com ela, mas ela sempre ficava com a boneca. Todas as vezes que eu brinquei, eu era o cachorro da Democracia. Todo mundo dizia que a Democracia era linda, que queria ter uma Democracia pra eles, mas nunca fizeram nada a respeito.
— E aí?
— Ué, - disse o menino, apontando para o corpo decapitado da boneca no chão. - Eu arranquei a cabeça dela. Se eu não posso brincar com a Democracia, ninguém pode.
Anete teve que terminar a história ali mesmo, infelizmente. Já era tarde, e a grande maioria das ruas estava interditada por causa das manifestações contra o golpe que derrubara a presidente Barbara Millicent Roberts. Uma pena, estava curiosa para saber se a Democracia voltaria à vida ou não.
Por Simone do Saxofone