terça-feira, 1 de novembro de 2016

A imutabilidade da sociedade


Revolta, dor, desespero, indignação...
Me sinto uma formiga que esta prestes a ser esmagada por um elefante. Minha voz não ecoa com a força que preciso, grito por socorro, mas ninguém me vê, ninguém me atende.
Só consigo lembrar de uma aula de redação do prevest em que tive que dissertar sobre a imutabilidade da sociedade. Que tema! Tive que recordar de todos aqueles que incansavelmente lutaram por esta atual e capenga cidadania, que ainda que capenga, foi conquistada através de muita dor, gritos e vozes roucas. É como se estivéssemos naquela parte do mar onde a onda quebra e você fica em um ciclo de caixotes. Quando ergue a cabeça, lá vem mais outra, e outra. Será que só nós estamos vendo isso? Minha garganta já dói.
Aquela apresentação inesquecível da Elis, me serviu pra intertextualizar na redação. A revolta na voz e no olhar dela... agora eu a entendo.  Aqueles bonecos  parados no palco enquanto ela cantava, eu os reconheço hoje.
Sigo lutando.
“Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos. Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais...”


Luli Sweet.

Cidade de concreto rodeada por abutres. Hoje amanheceu cinza, com muitos escombros feito palestina. O vento traz tensão, no céu ecoam gritos, na parede marcas da guerra e seus frutos: "terror é aqui".
O cenário é cruel, a realidade se faz retrato de Sebastião Salgado, mas há esperança, claro que há. Veja: rodeado por abutres que desejam morte e se saciam com sangue, no centro se encontra o Brasil, representado por sonhos e força, muita força. Brasil é mulher e juventude, transpira luta, vontade de pertencimento, mas os abutres insistem. Com discursos autoritários e seus bicos sujos de sangue, marcados por ódio se mostram hipocrisia. Não há ponto final nessa história, é a miséria que os nutre, se alimentam do que querem. Da ponte pra lá: desespero, pistola na cintura, dinheiro, droga na pochete, muito ódio, aliciamento e exploração.
Nesse cenário o Brasil se impõe como mulher e jovem, discurso com fio de sonho e esperança, pouca poesia pra realidade crua.
Em homenagem a Ana Júlia Ribeiro, estudante de 16 anos que, cercada por abutres, discursou em defesa das ocupações das escolas que acontecem no Brasil.

RRR
  DE QUEM É A ESCOLA?

   Nós não somos, de forma alguma, vagabundos. Não estamos fazendo o que estamos para ocupar nosso tempo. Temos idéias, preocupações e direitos que precisamos preservar. Por isso estamos aqui. Mas olha, vou te contar que é muito difícil. Ter que sacrificar vida pessoal, social, e até mesmo a estabilidade emocional pra não receber sequer um comunicado escrito exige uma força enorme.
   Eu mesma abri mão de muita coisa pra lutar aqui na ocupação. Estive ajudando a Karen, uma amiga minha que vai ser mãe solteira. Pobre, negra, periférica e menor de idade. Não digo a ela, mas rezo baixinho para que a sociedade pegue leve com toda essa situação dela. Também rezo muito pelo Lucas. Dois dias depois do enterro dele, vi a mãe dele ontem no mercado. Melancólica, e com toda razão.
   Conciliar todos esses acontecimentos com a ocupação é desgastante. Por lá também não está muito bom. Tem dia que faltam suprimentos, colchões, coisas de necessidade básica. Damos um jeito, como sempre. Temos que dar. Acho que o mais injusto é o jeito que o governo ta tratando tudo. Nenhum diálogo, nenhuma troca de idéia, nenhuma empatia. Só polícia, polícia, polícia. Esta que, no caso, foi treinada pra destruir seus inimigos ao invés de proteger o cidadão.
    Hoje de manhã vieram ter uma conversa séria comigo. “Ana Júlia, a gente quer ter uma conversa muito séria contigo”. Eu meio que já sabia o que estava por vir. Assim que percebi que seria eu a voz de milhares de estudantes, professores, e pessoas comprometidas pelo futuro da educação, me deu um medo no fundo, mas esse é um sentimento que eu devia sufocar. Há coisas maiores em jogo.
                                                            ...
  Tô saindo agora da assembléia. Nem sei como e de onde tirei tudo o que disse. Foi muita preparação, claro. Mas assim que vi aqueles rostos, os rostos que deviam nos amparar, proteger, tudo ficou branco. Não importava, tinha que falar. Tentaram por diversas vezes me silenciar durante minha fala, tive que engolir choro e me manter de pé por todos nós. Felizmente, cumpri meu papel. E espero que nunca esqueçam: “vocês têm sangue nas mãos”.


Kane 3000

Quem me pertence?
Quando os vi pela primeira vez, várias vidas eu vi, várias histórias, várias personalidades. Cada um com sua peculiaridade. Quando eu olhei seus rostos, decorei cada olhar, cada sorriso, cada fio de cabelo, cada janelinha no sorriso que se formava quando um dente de leite ia embora. Eu os vi crescer, eu os fiz crescer. Eles cresceram ao meu redor, aprenderam matemática, português e ciências. Jogaram futebol e queimada enquanto eu os observava. Deram o primeiro beijo atrás dos meus muros, tiveram o coração partido pela primeira vez no meu pátio e choraram como se mundo fosse acabar nos meus banheiros.
            Quando os vi chegar, eram nada mais que bebês recém-saídos dos colos dos pais e quando os vi partir, eram jovens preparados para enfrentar minha prima. E toda vez é assim, eles chegam pequeninos e vivem, crescem, comem, choram e sorriem dentro do meu ser, eles trazem suas histórias para mim e vão embora com as que construíram comigo. Mas eles voltam. Numa dessas voltas, não foi para sentar nas cadeiras das salas de aulas e aprender sobre artigos indefinidos ou números compostos, foi para sentar na minha quadra e resistir.
            Algumas pessoas queriam cessar com todas as discussões que dentro das minhas paredes ocorriam, queriam fechar meus portões, queriam me amordaçar. Queriam me tirar de quem eu pertencia. Mas aqueles que eu ajudei a criar, voltaram para lutar por mim. E aqueles que eu estou criando agora, juntaram-se a luta. Agora eles sentam na minha quadra e discutem política. Eles sentam na minha quadra, e os alunos ensinam os professores e os professores ensinam os alunos. Eles sentam na minha quadra e resistem, ocupam, vivem, lutam. Eles sentam na minha quadra para que outros possam ser criados por mim, assim como eles foram e são. Eles sentam na minha quadra para que não me amordacem, não me calem, não me fecham. A quem eu pertenço? Eu pertenço aos alunos. Aos que vieram e já se foram, aos que vieram e voltaram, aos que ainda estão aqui. Pertenço àqueles que me pertencem.
            Eles sentam na minha quadra, para que outros após eles possam sentar nas minhas cadeiras.

Afrodite
Ocupado
Sempre me interessei por política. Cresci ouvindo meu pai, advogado, falar de direitos humanos, sociais, cidadãos. Também sempre estudei em escola pública, o que desde cedo ajudou a fomentar em mim esse sentido de coletividade, de coisa pública, mesmo. Pra mim era comum ouvir que o pessoal da pública não queria saber de nada, só baderna. Que a gente ficava feliz quando tinha greve por causa disso. Menos aula. Acontece que a gente fica feliz com greve sim. Fica feliz porque é o corpo docente mostrando que não abaixa a cabeça pro Estado opressor. Que sabe dos seus direitos e não vai calar-se por menos que isso. E aí chegou a nossa vez de mostrar que também sabe. 
Faz um tempo que a situação não anda bem pra educação. Lei da mordaça, reforma do Ensino Médio (longe de ser do jeito que a gente precisa), e aí a PEC 241. E os secundaristas resolveram que não dava mais pra aguentar calado. Na minha escola, nós fizemos uma assembléia com os alunos pra decidir como iríamos agir em função disso. Agora, tem uma semana que estamos entre os mais de 800 colégios ocupados. Isso pra mim é revolução. 
E no decorrer dessa uma semana a gente adquiriu um senso político, crítico e de cidadania que por 16 anos eu não obtive. A nossa relação com a escola se concretizou numa relação de pertencimento, mais que isso, de ser. Agora minha casa é a escola, eu formo a escola, eu sou a escola. E a gente segue levantando a nossa bandeira pela Educação nesse movimento dos estudantes, pelos estudantes. Pensando no futuro dos meus filhos, dos seus filhos, dos filhos da nação. 

Ocupado. Diz o cartaz que a gente pendurou do lado de fora da escola, pra quem quiser ver. E a gente ocupa porque o Estado parece ocupado demais com outros gastos pra se preocupar com a Educação. 

Rita
Brasileiro é tudo igual

Ah, a política. Já ouvi pessoas dizendo que pra ser feliz não é possível se envolver ou pensar nada relacionado à política. Já fui daquelas que política não se discute, dessas que não sai da discussão até ganhar. Mas agora, sei lá. Parece tudo perdido.

Como já disse algum filósofo contemporâneo: é pau, é PEC, é o fim do caminho. A gente não sabe pra onde vai. Só sabe que tem que resistir. O tempo inteiro. Não dá pra deixar a peteca cair um segundinho senão já tem uma nova medida do Michel “Fora” Temer pra gente temer.

Inclusive, a PEC 241, você sabe o que é? Porque, olha, o que tem de gente que nem faz ideia é de doer. Depois, sem entender o porquê dos protestos nos chamam de vagabundos. Mal sabem que a gente só queria estudar. Que nem a Ana Júlia, a secundarista que só tem 16 anos e com coragem discursou na frente de um monte de engravatado. “Mas você sabia que o tio dela é do PT?”

É cansativo ter que lembrar o tempo inteiro aos políticos que eles têm que governar pra população, e não pro bolso deles. Mais cansativo ainda é escutar que político é tudo igual, que nenhum presta. Só que brasileiro também é tudo igual e quando você vai ver, eles votaram no mesmo candidato das eleições passadas.  

É por isso que não dá pra deixar política de lado. Como é que pode não discutir sobre o que muda a vida de tanta gente? Como pode fechar os olhos de deixar tudo passar sem nenhuma resistência? Está cada vez mais difícil e os desafios só crescem, mas não dá pra parar agora.


- Valdea Bennet
Manifesto pela Educação/ Manifesto conta o duplipensar.

 Só a educação nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Não temos tempo para ter medo. Nossa aula hoje não será sobre matrizes ou orações coordenadas, tão pouco sobre mitoses e meioses. Hoje a figura de destaque da aula não é o professor. Somos nós. Nós estudantes. Nós que estamos vendo o sistema educacional desmoronar na nossa frente. Ocupar e resistir. Ocupar e existir.

Contra todas as Pec´s 241. Contra o mercado Mendonça do ensino privado. Contra todas as ideologias excludentes adquiridas de consciências enlatadas. Contra todos os Bolsonaros, Olavos e Frotas.

Comemos-vos.

No matriarcado de Pindorama! Na terra de Capitu! Deixemos de lado o elitismo linguístico de José Dias.

Nunca fomos doutrinados. Fizemos as Diretas Já acontecer. Fizemos Paulo Freire ler o mundo.

Transformamo-nos.

Não nos deixemos abater por pistolas fascistas, substituímo-las por flores. Façamos da poesia nossa voz impressa e declamada em luta contra a aniquilação do senso crítico. Lutemos em oposição à uma escola parnasiana de preciosismo formal. Por uma escola que destaque a política como parte necessária de nossas vidas. Por uma escola que não perpetue o racismo velado de cada dia.

Resistir. Resistir. Resistir. Resistir. Resistir. Resistir. Resistir. Resistir.

Vivenciamos a transmutação infindável do Tabu em Totem.

Nós vamos proclamar a nossa independência. Expulsar o espirito peemedebista e aniquilar esse sistema organizacional calcado por uma ideologia de Panótipo.

Contra uma sociedade opressora. Contra Temer. Contra a Escola Sem Partido. Contra 20 anos de sofrimento. Contra o fim do mundo.

Estudantes de todo o Brasil, uni-vos!!!






                                                                         Nina Meneses.
Filhos da cidadania
Após um dia cansativo e gratificante de trabalho com meus alunos, acessei o facebook pelo celular deitada em meu leito e assisti a um vídeo. O conteúdo do vídeo em questão era sobre uma aluna do ensino médio do Paraná, Ana Júlia, que representou no Congresso os alunos que ocupam escolas em todo o Brasil.
Caí no choro ao assisti-la, porque comecei a me observar externamente e refletir sobre a diferença que eu e meus colegas de profissão conseguimos despertar em nossos alunos. Eles geralmente chegam nas salas de aula “crus”, tomados de senso comum sobre os fatos ao seu redor e, a cada aula dada por nós, refletindo, questionando, debatendo fatos atuais, aliados às tarefas em sala de aula, percebemos nitidamente o desenvolvimento da autonomia e da criticidade em pensar o mundo e as coisas ao redor.
No entanto, nunca imaginei que nossos estudantes poderiam abraçar nossas lutas por condições melhores na educação agindo conosco nas ruas, em congressos e agora nas ocupações. Agora sei muito bem que com eles podemos contar até onde for preciso, mesmo que a presença de outros membros da sociedade tentem influenciá-los sobre nossas ações nas ruas, nos igualando à baderneiros e vagabundos.
Com isso, reitero a vocês que meus dias corridos e cansativos são bem recompensados quando compareço à algumas escolas ocupadas e aplico oficinas, questões do Enem e palestras pros meus alunos sem ganhar nenhum lucro por minhas ações. Entretanto, eu as realizo por acreditar na bandeira da educação. Ocupação é reivindicação, sim.
Portanto, aquela menina do vídeo me afirmou que a luta continua. Que todos os dias quando entro em salas de aula ou compareço em assembleias é por saber que sou exemplo de cidadania para os meus filhos. É por saber que o futuro dessa geração enxerga nos ideais de nós, docentes, a importância de perseverar na esperança da conquista dos direitos de melhores condições para nossas escolas.
Agora vou dormir, pois amanhã é dia de encontrar meus alunos e partir para a luta, novamente.


João de Santo Cristo
Seguro de que?

Daqui posso ver alguns pássaros que voam. O domingo amanheceu nublado, e só não estou convencido que está morto, pelas poucas vidas que cruzam minha janela num voo rápido. O céu está cinza, opaco e posso dizer, sem expectativa. Ele não abre e dá lugar ao sol para que, assim como nos filmes hollywoodianos, eu possa apreciar uma tarde agradável de primavera no parque. Também não dá lugar à chuva para lavar a minha alma e trazer a esperança de dias tranquilos.

Minha mãe abre a porta do quarto e anuncia que o café está na mesa. Olhando para a janela, calado estava, calado fiquei. Não significa que eu não queria respondê-la, mas é que meus pensamentos estavam barulhentos demais para que conseguisse falar um “já vou levantar”. Mas levantei. E além de tentar disfarçar toda a minha angústia com a situação do país, tive que aturar entre cada gole do nosso café amargo a depreciação das ocupações das escolas no Brasil.

Eu tento não parecer tão desanimado, mas tem um nó na minha garganta. Da mesma forma como eu empurro o café, mentalizando que será um dia normal, eles empurram a diminuição dos nossos direitos. E tão natural como o café que eu tomo todos os dias às 10, é o papel da mídia legitimando os projetos que resguardam os grandes interesses.

O Ministério Público diz que não há mais razões para ocupações, a televisão mostra a insatisfação e preocupação dos pais com seus filhos e tenta esconder  pressão da polícia sobre o movimento. Já minha mãe... Minha mãe desabafa: “Ah, meu filho, que bom que está seguro aqui comigo!”.

Seguro? Seguro de que?


Seguro de que aqui dentro desta casa, neste café que mais me embrulha do que alimenta, me isento da responsabilidade que é minha. E mais ainda, seguro de que sacrifico o progresso do meu país, pela apatia em não lutar por ele. 

Sam Castiel
LUTA 
 
 À forca de Herzog, lágrimas de Clarice. Ao holocausto de Olga, lágrimas de Prestes.  À roda viva que é a política desse país, lágrimas de quem partiu ou morreu. À Rosa Luxemburgo, lágrimas toda segunda segunda-feira de janeiro. Aos filhos da Praça de Maio, lágrimas de suas mães. À Martin Luther King, lágrimas de uma nação.  À picareta na cabeça de Trótski, lágrimas de toda a quarta. À cada uma dos sumiços, lágrimas de quem ama. À cruz de Jesus, lágrimas de suas Marias.  À João de Santo Cristo, lagrimas de toda essa gente que só faz sofrer. Aos tantos que lutaram por mudanças, lágrimas camaradas!  

Ao sangue de Lucas, lágrimas de Júlia. 

Mais uma sonhadora. 

E se sonho que se sonha junto é realidade, pois então que continuemos sonhando. Que as pernas bambas que subiram na plenária e falaram com todo o Brasil continuem a caminhar, junto a tantas outras pernas, até que a gente chegue lá. Que a voz que desafiou o patriarcado ecoe, virando um coral de vozes defendendo o que é nosso por direito. Ao povo, o direito de lutar!  Aos jovens, a tarefa de continuar lutando – em nome dos antigos e pelos próximos, assim como sempre foi.  

As lágrimas vêm pra batizar a luta. 

 
 

Julinho da Adelaide
Desejos e desafios
Falar sobre educação é um desafio. Afinal, comecei e recomecei esta crônica pelo menos umas dez vezes. Sinto que palavras não parecem ser realmente o suficiente. É um desafio bem democrático: acredito que todos têm essa dificuldade. E incluo até mesmo os professores, pois são aqueles que praticam a educação diariamente mesmo em meio aos obstáculos e caos.
Tem uma pergunta que Ana Julia, a estudante secundarista que discursou em defesa das ocupações em escolas públicas na tribuna da Assembléia Legislativa do Paraná em outubro de 2016, que permeia meus pensamentos neste momento: “De quem é a escola? A quem a escola pertence?”. A resposta aparentemente é simples, mas engloba muitas questões. Questões essenciais que motivam e definem um futuro.
O ser humano anseia pelo pertencimento. Em especial, a juventude. A maioria das crises existenciais de um adolescente, gira em torno de uma enorme necessidade de buscar pertencer a um lugar, um grupo. Alguns realmente encontram, outros apenas se iludem, e tem aqueles que nunca conseguem efetivamente. E a escola tem papel essencial neste processo. Seria perfeito se o jovem realmente se sentisse pertencendo a escola para construí-la a partir da sua realidade, com um toque de sua personalidade, enfim, se identificando com ela. Assim, veríamos um empoderamento. Empoderamento do conhecimento.
Admito que falar sobre educação me deixa nervosa. É um tema tão complexo que me dá a sensação que só especialistas devem falar sobre. E que eu devo apenas escutar. Na verdade, esse sentimento de inferioridade é conseqüência de um sistema que possui como fundamento a hierarquia de poderes num mundo acadêmico fechado e nem um pouco igualitário. A educação é pra quem é capaz. E, para o sistema, capacidade, é igual a dinheiro. Assim, o acesso a ela é restrito e cheio de dificuldades.
Eu penso que a educação é a solução de todos os problemas que a sociedade vive. Mas, se eu, uma mera estudante, não consigo nem ao menos desenvolver uma boa crônica sobre o assunto, quando que ela vai realmente resolver todos os males sociais? Eu desejo que me escutem, que escutem meus colegas estudantes e que todas as vozes possam ser ouvidas. Assim, a perfeição de uma escola que pertença ao jovem e que seja para o jovem se tornará realidade.


Lyss 2743 
Uma história que não chegou ao seu fim.


    Era madrugada, eu não conseguia dormir e lembro muito bem desse momento. As lâmpadas que iluminavam a rua piscavam em intervalos lentos, era uma noite fria e silenciosa. Um sentimento de tristeza tomava meu corpo por toda a extensão do dia anterior, e não consigo esquecer o olhar de minha filha frente ao caixão, tão triste, que me fez perceber as correntes invisíveis que cercavam as suas mãos. Descia a terra mais um jovem que carregava uma imensidão de sonhos, e em pé com os braços abraçados aos peitos, e um olhar fixo a madeira que cercava o menino, minha filha o envolvia em suas intenções e desejos mais puros.
    Ela era líder de um movimento estudantil e lutava por justiça, mas não conseguia se libertar do fardo que era a responsabilidade por aquela morte tão repentina. As pessoas nas ruas já condenavam o movimento, e parecia que a moral entre os estudantes não era mais a mesma. Os jovens estavam cabisbaixos e as famílias já ordenavam os seus retornos, que já não eram mais respondidas com tanta resistência. Quando voltou para casa só pude perceber o enorme sentimento de derrota que pairava sobre os gestos dela. Dei o apoio que estava ao meu alcance, e lembro bem dessa madrugada, quando no quarto dela, só me restou a afagar com um abraço longo e silencioso.  Ao lado dela, fui julgando os discursos que eram redigidos, e fizemos durante a maior parte da madrugada o treinamento de sua fala, depois disso nada foi dito, parece que ela não quis compartilhar comigo o sentimento de culpa que estava no seu interior, foi quando eu a beijei na testa, e intervi nesse bloqueio, libertando-a de seu sentimento de culpa, com as palavras suaves que só os pais podem dizer aos seus filhos. Quando me despedi tentei acender uma faísca de esperança em seu coração, talvez no meu também. “Encontraremos os verdadeiros responsáveis amanhã filha, até lá, guarde seus sentimentos, e faça sua luta prevalecer sobre todas as injustiças que foram cometidas.” Era o que podia ser dito.
    Ao chegar à assembleia, o movimento estudantil estava retumbante e me parecia que aquela era a batalha mais importante de todas, percebi que minha filha não estava sozinha, e que na verdade eu era apenas mais um na torcida para que ela se sobressaísse além de todo o mal, e de toda corrupção sombria que existia dentro daquele espaço.  Com minha esposa ao lado, todos nós éramos um só, posso dizer que esse era o sentimento daquele momento decisivo, e durante o discurso, percebi que suas pernas tremiam, e sua voz cambaleava, meu coração estava apertado, e por um momento fechei fortemente os olhos e supliquei com todas as forças, para que minha esperança fosse transferida para ela. Minha filha se encontrava como uma pequena rosa que resistia sobre a adversidade do inverno tenebroso. Mas ela lutou até o fim, e emocionou a todos com seu discurso. Todos podiam perceber que suas palavras penetravam o coração dos que eram mais insensíveis, e seus sentimentos foram alcançados por todos. Era uma vitória, no dia seguinte o mundo inteiro estaria divulgando a luta de minha filha, aquela história, ainda não tinha acabado. A educação ainda poderia resistir, porque o movimento, ainda estava vivo.


Piper Chapman

Cálice

shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!!!
Gasto uma linha em reprodução ao que se ouve todo dia. Ou em memória do que se poderia ter ouvido, de fato. Começou com uma aula em que indagamos a Revolução Francesa, segunda feira, primeira horário. Já estava beeeem acordada - perco o sono às cinco, meu sono leve me permite sentir a hora chegar. Sala cheia e eles olhando com certo medo transpassado pelo respeito e por tudo mais que falam de mim pelos corredores. Falamos de Revolução, das não datadas nos livros. Cada um de nós tem que fazer a sua própria revolução, dentro de si. Em silêncio, via cada um repensar minha fala umas duas vezes. Dois ou três anotaram na lateral da página. Eles já sabiam, porque está na mocidade.
Quando tentaram nos fechar como escola eu os vi chamando um por um para a luta. Acompanhei com minhas passadas demoradas suas revoluções ideológicas, as auroras e suas vozes cheias de vida e esperança. Sua mãos, leves, seguravam cartazes e toda a construção que fizeram, sozinhos, me fazia acreditar. Me faz. E quando mais uma vez se faz necessário voltar a unir vozes, as deles, que não se separam, entoam o que pode ser liberdade no futuro e, então, fundem-se a sua segunda casa e de lá chamam e gritam por educação. Não mais alinhados, em grandes quadrados e cabeças baixas e pulsos cansados.
Hoje, mais uma vez, estou ao lado deles. E, enquanto de medo e nervoso tremem com sua juventude ao tentar desbravar o que aflora revolução e pede por voz, perde-se ela meio a repreensões de microfones dominados pelos duros que representam a censura. As vozes e votos são de acordos deles para o futuro nosso. E nossa luta é por cada um que foi em luta. Luto. Deles foge a culpa e deles sai a responsabilidade. E se não é tua a responsabilidade do sangue que escorre, pergunte de quem é. Te ensino isso enquanto o tempo em sala me permite, enquanto minha idade gasta ou eles não me impedem. Porque de tanto escorrer está se enchendo e fadadas de silêncio as gotas ressoam o transbordar de todo esse
Cálice.
Derrube-o! Enquanto tua boca ainda é livre.
Ou restará bebê-lo.


- Oliver Fagundes

domingo, 16 de outubro de 2016


Entre patas e beijos
Olha, como o dia tá quente hoje hein! O calor é tanto que eu tenho que beber água toda hora e mesmo assim não consigo fechar a boca por um segundo sequer. Enfim, tava aqui olhando para trás e percebi que tudo passou muito rápido né. Afinal as coisas sempre passam voando quando são marcantes, principalmente no lado positivo. Bom, você que está lendo não deve saber nada sobre mim (pelo menos eu acho), então vou lhes contar brevemente a minha história. Vou começar voltando no tempo em um determinado dia a mais ou menos sete anos, quando o conheci. Naquele dia, que me lembro como se fosse hoje, ontem ou qualquer outro recente, o famoso e tão comum 'inesperado' aconteceu. Na verdade, sendo mais específico, foi a noite daquele dia (sem nenhum tipo de trocadilho) que fica na minha memória, e de outros também, até o presente momento.
Eu estava vagando pelas ruas, inocente que era (ainda sou, mas nem tanto), procurando alguma coisa pra comer, até o momento em que fui atropelado perto da minha atual casa. Até hoje eu tenho sequelas disso. Meu pai (não o biológico, mas o adotivo) foi quem viu a cena. E o grito\choro de dor que eu dei na hora foi tão alto que alguns dos vizinhos ouviram de dentro de suas casas.
A partir de então eu fui levado pelo meu pai (adotivo) pra casa, onde resido atualmente e sou muito feliz. Sei que apronto demais às vezes, fugindo do banho e fazendo coisas onde não se deve fazer, mas sou muito grato por eles terem me adotado e sinto que todos gostam muito de mim. Sinto que sou parte deles, dessa família. Eles cuidam  de mim com muito carinho, tanto quando estou doente como quando não estou, e isso me faz sentir bem.  
Eu só queria que meus colegas tivessem a mesma sorte que eu tive. Não é qualquer um que tem a família que eu tenho. Muitos não tem nenhuma e estão sós por aí como eu estive antigamente. Quem sabe um dia eles consigam um lar, onde sejam felizes e gratos como eu sou. E também para que possam abanar o rabo para algúem pois isso faz bem pra gente, além de ser legal demais. É, quem sabe né...

Senhoralguém

Obrigado

Um dia cotidiano de trabalho, o sol nasce frio, os ventos são calmos e o clima ainda é de uma cidade que está acordando, os passarinhos ainda estão dormindo e apenas alguns cantam, não há carros na cidade, apenas os ônibus passam, cheios, mas as pessoas mesmo em situação de desconforto por alguma razão encontram-se solidárias e felizes, embora sonolentas. 
Candelária, 5:40 da manhã, centro da cidade do Rio de janeiro, na rua Buenos Aires, algumas ruas depois da igreja, o jornaleiro abre sua banca e começa a limpeza da calçada que estava repleta de sujeira, esse não era o trabalho dele, mas o lugar ainda estava vazio, não havia ninguém espiando, então ele não via problemas em fazer um pouquinho do que vai além do seu ofício, ele varreu toda a calçada que é grande, e então depois disso ele voltou a banca e começou a destacar os jornais. A padeira chega cerca de 5 minutos depois e compra um jornal, cumprimenta amistosamente o homem, abre a padaria e começa a fazer os pães, então com muito afago ela já costumeiramente pega um pão e passa a manteiga, esquenta o café e leva até o Padeiro que muito agradecido toma o seu primeiro café, isso se repete sempre.
No ônibus o motorista cumprimenta os passageiros com um sorriso muito bonito, embora faltem alguns dentes, e mesmo que inapropriado um passageiro que era advogado senta próximo ao painel do veículo, e começa a conversar amistosamente com o trabalhador. Nas ruas, o mendigo entrega suas latinhas ao ferro velho que fica próximo a Providência, e recebe seu trocado, que logo gasta justamente na Rua Buenos Aires, aonde tem o seu velho amigo o jornaleiro que lhe vende a raspadinha, após o advertir sobre o gasto excessivo do dinheiro nesse vício, e com suavidade o morador de rua agradece, e logo atrás dele um toque de uma mão cheia de calos envolve seu ombro, uma voz nordestina lhe cumprimenta com um bom dia, é o motorista, que acabará de chegar ao ponto final e fazia sua parada de descanso. 
Com um pão fresco na mão, o motorista o estende ao pobre homem, a padeira observa feliz de longe a atitude do motorista. De repente todos olham pra trás, era o Advogado desligando o telefone, e então cumprimenta todos, e compra mais um jornal, e então começa a conversar sobre futebol com o motorista e o homem de rua, era mais uma goleada do flamengo sobre o fluminense de 4 a 1, e todos brincavam com o advogado tricolor e padeira logo se aproximou para participar da rodinha. 
No dia anterior, a padeira tinha arrumado a casa inteira, ela estava muito cansada, e pensar que o jornaleiro tinha varrido o chão e adiantado o serviço dela, foi maravilhoso, um verdadeiro alívio. Obrigado... O jornaleiro sempre acorda atrasado e nunca toma café em casa, entretanto a padeira sempre lhe entrega seu pãozinho com café e mata sua fome. Obrigado... O motorista tem uma rotina estressante, mas dirigir de manhã com os passageiros mais simpáticos reduz o seu nível de stress, ele agradece. O mendigo passou fome a noite, e está agradecido pelo pão que comeu graças ao motorista. O advogado estava triste pela derrota do seu time, mas ficou feliz porque seus amigos animaram o começo do seu dia. 
Mais um dia no Rio de Janeiro, a cidade que todos se lembram pela sua violência, desigualdade, sofrimento. E que todos se esquecem da sua solidariedade, da gratidão do carioca. 

Piper Chapman
NOVENTA

Hoje faço noventa anos. 
Meus cabelos brancos, minhas rugas, minhas costas curvas – tudo em mim é testemunha de cada um dos meus 32850 dias de vida. Meus olhos estão cansados, minhas mãos cobertas de manchas... ah, minhas mãos! Mãos que sentiram o tato de José pela primeira vez aos 17 e depois, por cinco vezes, seguraram também nossos filhos que chegavam ao mundo, pulsando vida. Mãos que fizeram cócegas, enrolaram brigadeiros, fizeram bala de leite todo natal. Mãos que, assim como as de José, foram envelhecendo sem que sequer pudéssemos nos dar conta. Até que um dia, sem menos esperar, sentiram o frio da despedida, tremeram de medo da solidão, se encontraram sem as digitais de José.   
Eu podia chorar por isso, mas não vou. Hoje faço noventa anos. 
E assim como meus dias foram passando, os dias de meus filhos também passaram. Entre altares e festas de formatura, tive a certeza de que o tempo não para. Vi a vida renascer 14 vezes, encontrando um pouco de mim mesma em cada uma daquelas crianças que corriam pela casa, exatamente como seus pais também fizeram. Enquanto alguns chegavam, outros partiam. Mais de uma dúzia de vezes vesti preto e senti o assombro do revés de vida. 
Eu podia chorar por isso, mas não vou. Hoje faço noventa anos. 
Junto com cada um que partiu, foi uma parte de mim. Junto de cada um que nasceu, ficou uma parte de mim. E assim eu, minhas histórias e meu segredos fomos nos diluindo. Deixei de ser moça, virei dona, acabei senhora - senhora de mim, mas também senhorinha. Daquelas de óculos e cabelo branco, que não entende muito bem essas coisas de que tanto falam hoje em dia. Mais um corpo antigo que tem que ir ao médico e tomar remédio. Virei a visita semanal que cada um dos cinco pedaços de mim e suas proles sentem-se obrigados a fazer. Tornei-me mais uma daquelas que espera A hora chegar. 
Só que a minha hora ainda não chegou. Hoje faço noventa anos. 
E mais tarde, quando a casa estiver cheia com gritinhos dos netos de meus filhos e preenchida com saudosas risadas ao falar em José, sei que vou estar completa. Ali, bem ao meu lado, estarão todos os pedaços de mim que andam pelo mundo. Por minha causa, cada um deles recebeu a vida. Agora, sem que nem percebam, me retribuem, me dando a alegria que me mantém viva.  Não haverá nenhum arrependimento, nenhuma preocupação. Só vida. 
Hoje faço noventa anos. 

Para escutar depois de ler: https://www.youtube.com/watch?v=unjfi5vN0-M 


Julinho da Adelaide 

Além de auaus: onomatopeia traduzida

Parece que foi ontem quando a fome me atormentava e me fazia querer revirar tudo. Era loucura! Muitos cheiros misturados, poucas cores. Cada viela suja e longa e cheia de sacolas me parecia um banquete. Eu adorava! Comida! Tinha cheiro de coisa gostosa e ao afogar a cabeça ali eu sentia ainda mais forte o cheiro do resto de carne do restaurante que fica na esquina. Barbecue! Aí você veio na minha direção, passos largos, postura armada, braço esticado e eu corria pensando que iria me atacar como os outros grandes da rua. Foi quando me conquistou, ao ficar na minha altura e me passar a mão, delicadamente, olhando bem no meu olho. Teu cheiro era doce e ainda é. Eu sentia o calor das suas mãos grossas passar pelo meu pescoço e chegar bem perto daquela coceirinha, na orelha. Eu acelerei, por dentro. Minha pata esquerda sempre debate quando alguém encosta nessa orelha.
Parece que toda vez que eu como escondido aquele saco barulhento cheio de coisas miúdas que tem um sabor doce e muito alegre ou quando penso que seu chinelo tem o mesmo sabor daquela comida que você deixa de comer, você vai chegar falando muito alto e bem acima da minha cabeça e eu penso que vou ter que voltar para viela. Lembro do frio, me rebaixo, retraio e deito. Mas eu sinto seu cheiro chegando eu sei que vai ser muito legal e vai ter comida e você vai me chamar para dormir nessa coisa macia e branca que você deita sempre e vai me apertar e soltar uns sons que eu não entendo mas sei que é carinhoso e eu vou querer te devolver tudo. Eu te devo, e devolvo.
Parece que você fica bravo quando me chama para dormir na sua maciez e eu não olho e nem vou. Às vezes eu queria te cercar e ficar bem aquecido ouvindo seu rosnar engasgado e grosso que você faz ao dormir e virar um pouco pra não sentir o ar quente da sua boca meio azedo. Mas hoje eu não posso, porque tem um barulho lá fora e quem cuida disso sou eu, porque de mim cuida você e amanhã quando você acordar eu vou saber que você está bem e vou até sua cama. Aí eu começo a te falar tudo o que aconteceu e fico feliz e balanço o rabo e corro pela casa e pulo em você. Porque eu adoro muito você. E por amor, eu te devo. E quando eu não puder mais, lembre-se disso.



Oliver Fagundes

NHAMANDU JOGWERU

O sol nasce. Desperto e meus irmãos já estão a postos para iniciar o ritual de pintura. Hoje é dia de celebrar à mãe Terra, agradecer ao pai Sol por toda diversidade e ao sucesso da colheita. Desde de curumim aprendi que o bicho homem veio do verde e o verde dissolverá sua carcaça quando seu universo singular vier a findar-se. Aprendi também que a prática de duas palavras é fundamental para a nossa permanência nesse espaço físico: respeito e equilíbrio.
A cerimonia sagrada se inicia e com ela nosso ritual pulsado. Todos em ordem com seus maracás chocalhando. Um pé batendo mais forte no chão em um compasso binário para marcar o ritmo da dança e da música. O uso do corpo como barulho e a voz feminina em consonância com a voz masculina concede um contraste musical que nos basta. A fogueira complementa o culto à natureza, juntamente com os curumins da tribo, signo máximo de perpetuidade.
Me sinto mais uma vez vivo. Vivo por respirar desse ar purificado. Vivo por beber dessa água ungida. E vivo, principalmente, por todos aqueles ao meu redor que me permitem transcender do meu jeito próprio, longe de toda aquela poluição e deturpação de valores que eu vi na cidade grande, longe do homem branco. Enquanto reflito sobre o quão abençoado sou, continuo a dançar. Bato o pé direito com mais leveza, depois o esquerdo cm maior força, em minha mão o maricá soa. Me sinto parte da natureza.
A natureza, minha tribo e eu somos um só. Por isso a necessidade de agradecer por esse vínculo tão refinado. Tudo que eu tenho veio da mãe terra, e tudo que eu emito vai para mãe terra. União agraciada pelo pai sol que emana sua energia para selar essa ligação. A fogueira continua a queimar e o maricá a soar.


Nina Meneses

A culpa não é das estrelas, é das células

Eu tinha 12 anos quando fui diagnosticada com Carcinoma de Células Grandes, câncer no pulmão, estágio IV.  Aquilo definitivamente não foi esperado, foi um baque, um choque, um soco bem na boca do estômago, sabe? Daqueles que doem à beça. Minha mãe chorou durante dias e meu pai ficava repetindo que aquilo não estava acontecendo. Não com a menininha dele. E eu só tentava ser forte, o mais forte que eu podia ser. Por eles. No fundo, eu sabia que ia morrer. Eu só não pensei que ia demorar tanto.
Comecei o tratamento assim que descobri que tinha uma doença que estava me matando aos pouquinhos. Minha vida acontecia dentro de hospitais com agulhas espetadas por todo o meu corpo, eu não ia mais à escola, nem ao cinema, nem brincava com as minhas amigas. Eu só ia para os hospitais e esperava ansiosamente o dia em que eu não precisaria mais ir. Meus pais também não aguentavam mais esperar por esse dia. Mas acho que eu e eles tínhamos uma noção diferente de como ia ser quando esse dia finalmente chegasse.
Veja bem, eu não sou suicida. Mas eu já não tinha cabelo, amigos, diversão. Eu só tinha uma careca e minhas amigas eram as enfermeiras que aplicavam drogas todos os dias em mim sabendo que aquilo não estava funcionando. Eu tinha pais que estavam gastando mais do que podiam com um tratamento que não ia me curar. Eu tinha uma esperança que a velha amiga Morte me buscaria logo. Eu tinha só essa esperança.
E ela veio.
Dois meses depois, faltando uma semana para o meu aniversário de 13 anos, ela veio. Eu a senti chegando, meus pais também. Minha mãe me abraçou até o fim e meu pai segurou minha mão até ela ficar gelada igual a um picolé. E aí eu morri. Aceitei a morte como uma velha amiga e parti desse mundo junto a ela. E finalmente, eu estava livre.


Afrodite

Fuga pela Vida

Yusra Mardini, treinava natação desde os 3 anos de idade, já disputou e ganhou mundias por isso. Em agosto de 2015 viu sua casa ser destruída por uma bomba, uma bomba como muitas outras que já caíram e destruí muitas outras casas em seu país. Um pais arraso por uma guerra civil que já dura 5 anos. Mardini, em seus 17 anos na época, sem casa e sem país decidiu fazer igual muitas pessoas cansada da guerra e querendo viver com o mínimo de paz. Decidiu então se juntar a um grupo de refugiados e atravessar o Mar Mediterrâneo em direção a Europa.
Mardini e sua irmã embarcaram em um bote com capacidade apenas para 6 pessoas, com outras 18. No caminho de sua travessia em direção a um futuro ainda inserto Mardini e seu grupo sofreram um acidente no percurso, seu bote com superlotação virou em mar aberto. Mardini, nadadora desde a infância ajudou a salvar não só sua vida, mas a de todas que ali estavam com ela. Nadando por 3 horas em mar aberto, lutando pela vida que podia afundar junto com aquele bote.
Meses após todo esse percurso Mardini agora residindo na Alemanha com sua irmã continua sua viagem, treinando para que um dia possa competir, mesmo convivendo com a incerteza de que isso será possível, agora sem uma nação a qual defender tudo isso se tona mais difícil. Até que em junho de 2016 ela e mais 9 atletas foram convidados a participar de um time de refugiados do COI. Um time olímpico que visa apoiar e dar a oportunidade que foi perdida com a Guerra.
Em agosto de 2016, no Rio de Janeiro, quase um ano após começar a travessia em direção a Europa, Mardini competia os 200m rasos representando o time dos refugiados. Não só aos atletas, mas a todas a pessoas que saíram de seu país natal deixando para trás família, amigos e memórias. Mardini não ganhou medalhas, chegou nem perto de subir ao pódio, ficou em 41° lugar de 45°. Mas Mardini se diz grata. Grata pela vida. Grata pela oportunidade de representar pessoas em situação venerável igual a dela. Grata pelo apoio dos atletas. Grata pelo apoio da confederação. E mais grata ainda a todos que junto a ela lutou para atravessar o mar aberto. Mas a viagem não para por aí, para Mardini e sonho de conquistar um pódio não foi perdido, e ela espera ter a oportunidade de dar esperança a outros refugiados de continuar a ter um sonho.


Sabina Kundera

11 de setembro de 2001. Sim, eu estava lá. Tinha acabado de completar 28 anos e trabalhava no World Trade Center, mais conhecido por torres gêmeas, em Manhattan. Parecia um dia normal, fui na cafeteria de sempre, tomar meu expresso duplo de sempre, e depois parti para o escritório. A manhã corria, papeladas e relatórios para preencher, cobranças do chefe... E então aconteceu. Ouvimos um estrondo por volta das 10 AM e nos disseram que a Torre Norte havia sido atingida por um avião entre os andares 93 e 99. Eu, que trabalhava na sul, me apavorei, como todo mundo. Ninguém entendia muito bem o que estava acontecendo, mas o conselho de segurança nos mandou voltar a nossos postos, pois nosso edifício estava seguro.
Alguns minutos depois ouço novamente um barulho muito alto e logo em seguida veio um cheiro insuportável de queimado. Os andares acima do meu também haviam sido atingidos. O prédio ficou em chamas por um tempo – não sei dizer ao certo – enquanto o caos se instalava por toda parte. Ficamos desesperados, mas da nossa localização não tínhamos como sair, era muita fumaça. Senti uma tremedeira, quase como um terremoto e então percebi que a torre estava desabando. E depois escuridão.
Quando acordei, a vista demorou para se acostumar. Devem ter se passado horas, que mais pareciam dias, nas quais só sentia fome, e sede, e dor. Muita dor. Quando tive consciência de que estava no meio dos destroços de um prédio que havia acabado de cair, quis gritar, mas não consegui. Estava prestes a desmaiar de novo, ou quem sabe morrer, mas tentei me manter firme. No resto do tempo comecei a pensar muito: sobre o que será que tinha acontecido, como estariam meus amigos, meus colegas de trabalho, minha família. De repente senti uma saudade imensa de todos eles e tive diversas daquelas reflexões existenciais.
E então chegou meu milagre. Ouvi vozes, uma em especial se sobressaindo, e senti os destroços do minúsculo espaço em que me encontrava remexendo, até que veio um clarão e uma mão, que pertencia a voz. Depois disso foi tudo um borrão. Fiquei semiconsciente e a voz se identificou como o bombeiro Tom do FDNY, e falou frases inspiradoras e motivacionais.
Dizem que a primeira coisa de uma pessoa que a gente esquece é a voz. Mas eu nunca me esqueci daquela que me salvou dessa experiência traumática. E que até hoje me leva a ser uma pessoa melhor.


Esquerdogata Felinazi