NOVENTA
Hoje faço noventa anos.
Meus cabelos
brancos, minhas rugas, minhas costas curvas – tudo em mim
é testemunha de cada um dos meus 32850 dias de vida. Meus olhos estão cansados, minhas mãos cobertas de
manchas... ah, minhas mãos! Mãos que sentiram o tato de José pela primeira vez aos 17 e depois, por cinco vezes, seguraram também nossos filhos que chegavam ao mundo,
pulsando vida. Mãos que
fizeram cócegas, enrolaram brigadeiros, fizeram bala de leite
todo natal. Mãos que, assim como as de José, foram envelhecendo sem que
sequer pudéssemos nos dar conta. Até
que um dia, sem menos esperar, sentiram
o frio da despedida, tremeram de medo da solidão, se encontraram sem as
digitais de José.
Eu podia
chorar por isso, mas não vou. Hoje faço noventa anos.
E assim como meus dias foram passando, os dias de meus filhos também passaram.
Entre altares e festas de formatura, tive a certeza de que o tempo não para. Vi a vida renascer 14 vezes, encontrando
um pouco de mim mesma em
cada uma daquelas crianças que corriam pela casa, exatamente como seus pais também fizeram. Enquanto alguns chegavam, outros partiam.
Mais de uma dúzia de vezes vesti preto e senti o assombro do revés de vida.
Eu podia
chorar por isso, mas não vou. Hoje faço noventa anos.
Junto com cada um que partiu,
foi uma parte de mim. Junto de cada um que nasceu, ficou uma parte de mim. E
assim eu, minhas histórias e meu segredos fomos nos diluindo. Deixei de ser moça, virei dona,
acabei senhora - senhora de mim,
mas também senhorinha. Daquelas de óculos
e cabelo branco, que não entende muito bem essas coisas de que tanto falam hoje
em dia. Mais um corpo antigo que tem que ir ao médico e tomar remédio. Virei a
visita semanal que cada um dos cinco pedaços de mim e suas proles sentem-se obrigados a fazer. Tornei-me mais
uma daquelas que espera A hora chegar.
Só que a minha
hora ainda não chegou. Hoje faço noventa anos.
E mais tarde,
quando a casa estiver cheia com gritinhos dos netos de meus filhos e preenchida
com saudosas risadas ao falar em José, sei que vou estar completa. Ali, bem ao
meu lado, estarão todos os pedaços de mim que andam pelo mundo. Por minha causa, cada um deles recebeu a vida.
Agora, sem que nem percebam, me retribuem, me dando a alegria que me mantém viva.
Não haverá nenhum
arrependimento, nenhuma preocupação. Só vida.
Hoje faço
noventa anos.
Para
escutar depois de ler: https://www.youtube.com/watch?v=unjfi5vN0-M
Julinho da
Adelaide
Bom uso da repetiçao. Seu texto me trouxe coisas boas, sentimentos, sei la.. Achei gostoso de ler. Talvez a gratidao pudesse ficar um pouco mais explicita
ResponderExcluirA estratégia narrativa da repetição foi muito bem usada e as situações escolhidas para entrarem no texto são muito boas e causam reconhecimento e uma boa sensação em quem lê.
ResponderExcluirque texto lindo, Parabéns!!! o jogo de palavras enriqueceu o texto, esta muito bem feito!
ResponderExcluirBom texto, passa uma mensagem positiva. Pessoalmente, não curti muito o uso da repetição no texto.
ResponderExcluirQue lindo! Pra mim a gratidão tá bem clara, em relação a tudo que a personagem viveu ao longo da vida, bom ou ruim, e que culminou naquele momento, nos noventa anos e nela, que espera A hora chegar, cheia de vida... E a ideia de recomendar uma musiquinha pra ouvir depois, adorei. E que musiquinha <3
ResponderExcluirTexto lindíssimo. Muito interessante a maneira como o autor constrói uma escrita bastante poética e imagética atendendo ao tema e com um pov bem definido. Ao relacionar um personagem que já passou por diversas etapas da vida, observa-se o caráter antropológico fundido cm o psicológico de uma pessoa que olha pra trás e se anima com isso. A linguagem utilizada também mostrou-se eficaz na leitura e interpretação do texto à medida em que se percebe uma riqueza de vocabulário. Parabéns!!!
ResponderExcluirPov maravilhoso!!! O modo simples e cativante da escrita e como cada pessoa que lê pode se identificar (não com o pov em si) deu ao texto a dinâmica perfeita. A repetição no texto marcou muito bem a gratidão e foi uma das coisas que eu mais gostei! Parabéns! E a música no final, só reverência!
ResponderExcluirMe emocionei muito com o texto. Acho muito legal a ideia de inserir uma outra mídia (o áudio) na leitura, principalmente pelo fato de escrever para um blog, o que permite o acesso a outras plataformas. A música é linda, já ouvia e amava e acho muito legal a forma como pode-se atribuir novos significados. É bem perceptível o POV que atinge um nível psicológico e analisa diversas fases e sentimentaliza a vida. A gratidão simplista do simples retribuir e viver, da idade. Muito lindo a levada do texto, é muito definido, é possível ver uma personagem falando.
ResponderExcluirAchei o texto muito bem escrito. O POV é fácil de identificar e que por ser tão bem escrito, com informações sobre a vida e o íntimo da senhora, fazem os leitores se criarem empatia. As repetições marcam no texto um certo ritmo porque ao fim de cada parágrafo, os leitores sabem que terá algum "comentário".
ResponderExcluirMuito bom, texto muito bonito! Acho que a repetição foi muito bem feita e a gratidão, apesar de implícita, ficou bem clara. Foi uma história gostosa de ler e que me emocional, talvez por me relacionar com a situação. Parabéns!
ResponderExcluirMuito bom, texto muito bonito! Acho que a repetição foi muito bem feita e a gratidão, apesar de implícita, ficou bem clara. Foi uma história gostosa de ler e que me emocional, talvez por me relacionar com a situação. Parabéns!
ResponderExcluirMeu deus do céu, que texto lindo, trouxe bem forte a ideia de gratidão, com essa música ainda...
ResponderExcluirMuito bom começar e terminar a crônica com uma frase que representa algo atual, mas com o conteúdo fazendo toda uma retrospectiva emocionante sobre a vida a partir do POV.
ResponderExcluirUm texto surpreendente e muito lindo! A gratidão foi demonstrada de forma exemplar!
ResponderExcluirÉ um belo texto!Faz o uso inteligente de repetições, não fica massante, na minha opinião, e prende bem o público.
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