Uma, duas, três, inúmeras andorinhas ensaiam seu espetáculo migratório no céu que, coincidentemente, amanheceu nublado nesta manhã. E, o menino, órfão, desabrigado, sem teto, sem lar, embora aparenta estar abatido, permanece de pé observando o horizonte com calmaria e atenção. O silêncio dele, embora, muitas vezes, pareça sufocante, traz à tona as feridas não curadas da alma, feridas as quais nem os velhos amigos, nem mesmo a falecida mãe dele foram capazes de curar. Enquanto os lábios dele se franzem falsamente em um sorriso, as pupilas se dilatam em um árduo dilema entre permitir-se passar pelo luto ou aprisionar a si mesmo nas antigas memórias de infância de um grande amor que, em menos de um segundo, partiu.
O céu assume cores escuras. Tons cinzentos escondem o azul celeste. As nuvens ganham espaço e os trovões são um prelúdio de que mais um dia chuvoso está por vir. As andorinhas se organizam em uma fileira bem desenhada para partir e, à medida que elas batem as asas rumo ao destino previsto, o menino observa com mais intensidade o percurso rítmico e padronizado seguido pelas aves no céu. Logo, ele nota uma diferença na locomoção de uma das andorinhas e, como um bom observador, sentiu os instintos atraírem o olhar dele diretamente para o bater das asas do animal. Seria uma andorinha ferida que precisava de ajuda? Bom... ele nunca havia dito isso para ninguém além de sua mãe antes, mas ele sempre sonhou em ser veterinário. É. Parece um sonho bobo de criança, um desejo inconcebível e trivial para uma criança tão simples, um ser tão pequeno, tão insignificante quanto ele. Afinal, quem ele pensava que era? Uma criança pobre, nascida em lugar precário?! Um pobre coitado sem família que perdeu a mãe em um incêndio na própria casa, casa da qual não restou nada para contar história?! Quem era ele, afinal? Apenas um menino curioso que vivia se metendo em encrencas como no exato momento em que fugiu pela janela semiaberta do quarto do orfanato para contemplar a migração dos pássaros que sobrevoam o rio Danúbio todos os verões. No inverno, eles partem de volta para suas terras de origem onde podem encontrar condições mais favoráveis à sobrevivência como alimento e abrigo. No entanto, aquela andorinha não. Aquela andorinha não estava voando na direção correta. Ela não estava voando junto ao seu bando. Ela não parecia estar em busca de alimento ou abrigo. Ela nem, ao menos, aparentava saber o que deveria fazer. Ela parecia apenas deslocada. Exatamente como ele se sentia.
Ele sente um peso leve sobre suas mãos. Era ela. A andorinha. Então, ele resolve se sentar para averiguar com mais delicadeza a condição da ave. Cada olhar era profundamente meticuloso e cada toque ou gesto era milimetricamente calculado para tentar desvendar a origem do problema. Alguns minutos depois, após uma análise cuidadosa do físico do animal, o menino nota que não havia nada de errado com a andorinha, afinal. Mas, se não havia nada de errado, nem sequer uma única asa quebrada, então, qual era o problema da ave? O que está a impedindo de voar?
As lembranças daquela noite assombram os pensamentos dele. A ferida aberta que elas deixaram em contrate com a dor da partida inesperada o deixam histérico quase todas as vezes que ele se recorda do fogo que consumiu a casa. A mãe dele, na tentativa de acalmá-lo, afirmou que tudo ficaria bem. No entanto, isso não procedeu. Um estrondoso som entoa na sala, o teto cai e as chamas se propagam, separando mãe e filho. As mãos do menino tremiam de forma inconsciente, o corpo sofria com tremores involuntários. Ouvia-se as batidas do coração somente. Da boca não saia nenhuma palavra, nem sequer gritos de desespero e, quando as lágrimas cessaram, de repente, uma paralisia. O corpo para. Não há nada mais, somente o barulho das chamas consumindo a morada e, em um ímpeto de segundo, a dor sussurra aos ouvidos da pobre criança que viu a mãe ser envolvida pelas brasas ardentes do fogo e, quando o corpo volta a se mover, aquele doce olhar se transforma em temor e solidão. O toque ensurdecedor de uma sirene toca, mas ele não ouve nada. Os bombeiros tentam salvar o menino que, em profunda angústia, começa a se debater contra os profissionais. Então, ouve-se um único grito, um grito silencioso e melancólico antes que o menino desmaiasse nos braços de um dos profissionais. Noite fatídica, mas ela o salvou. Ela soltou as mãos do filho para que ele tivesse a chance de escapar, de ter uma vida. Por amor, o menino está vivo e agora vive se culpando pela morte da mãe.
Um enorme trovão o desperta de seus devaneios. Ele sente as minúsculas gotículas de chuva caírem sobre a sua face. O menino senta-se rapidamente, põe a andorinha sobre o colo, abre a mochila e pega um guarda-chuva. Ele observa o objeto antes de abri-lo e, logo depois, levanta-se novamente com a andorinha em mãos. Ao realizar esse movimento, o menino notou que a ave ficou agitada e se estremeceu como se estivesse com medo de altura. Pensativo, ele se perguntou se o animal havia tido problemas para aprender a voar. Bem, muitos diriam que, sendo um ser humano, comparar-se com uma ave seria um ato de insanidade ou de muita baixa autoestima, mas ele não. Ele se vê no olhar daquela ave, na atitude fracassada de tentar superar um trauma do passado. Ele se vê preso nesse vazio sem rumo como aquela pequena andorinha.
Até que o ponto de vista dele muda. A andorinha para de se debater e algo o instiga. Ela não desiste de tentar voar. Ela insiste em bater as asas mesmo que isso lhe desperte medo e lhe custe toda a energia. O menino, que há muito tempo não sorria com sinceridade, finalmente sorriu. Foi nesse momento que ele compreendeu que, se até mesmo uma pequena ave é capaz de persistir no caminho em direção à cura, ele também é capaz de se curar das feridas não cicatrizadas da alma. Afinal, aquela andorinha não fugia do passado, nem vivia nele. Ela seguiu em frente, mesmo com temor, ela tentou e ele também tentaria. Ele persistiria na cura até que o guarda-chuva dele se tornasse um mero acessório estilístico no visual e não um objeto que o protegesse da chuva, porque a chuva também cura a dor e, pela primeira vez em muito tempo, o menino sentia-se livre dançando na chuva.
Ele não é culpado pela morte da mãe dele. Agora, ele sabe disso. Então, o menino acaricia a ave, encosta o guarda chuva nos ombros e caminha de volta em direção ao orfanato. A andorinha o recordou do que realmente era viver e, mesmo que ele ainda não esteja totalmente curado, ele sabe, ele confia plenamente que as coisas vão melhorar daqui para frente e não importa mais como a história será escrita, o importante é que agora ele tem uma companhia e sabe que, apesar de tudo que ele já viveu, tudo ficaria bem, exatamente como a mãe dele dizia: "...acalme-se, pois tudo ficará bem".
- Daphyinne