quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Racismo

 Ser negro num país racista é muito complicado e para mim, não foi diferente. Eu cresci não gostando do meu cabelo, da minha pele, de ser preto. Quando criança, sofrer bullying por causa da sua pele, limparem a mão na sua blusa, ter medo de mudar de colégio e ser pior do que o anterior ou então não ter nenhum preto na sua sala causou traumas a ponto de me questionar se eu realmente queria entrar em uma faculdade e realizar meu sonho. Isso ocorreu por medo de não conseguir me sentir representada ou sofrer coisas parecidas. Além dessas coisas, entrar em lojas e ser confundido com funcionários ou ter medo de ser confundido com ladrão me fazem, hoje em dia, evitar ao máximo entrar sozinho nas lojas para evitar esses tipos de situação, mesmo sabendo que não é normal fazer isso.

- Alexia Morgellas

Bomba-relógio

 Sempre tive muitos medos. Na infância o que mais me assombrava era não saber o que podia estar na escuridão, me lembro de odiar dormir sozinha e sempre terminar a noite na cama da minha mãe. Conforme eu fui crescendo, pude perceber que as piores coisas do mundo nem sempre estão no escuro. Meu medo criou galhos e raízes, cresceu para um novo caminho. Já um pouco maior, iniciei em uma nova escola e o meu maior temor passou a ser não conseguir fazer novos amigos. Tenho guardado na mente ainda hoje o meu primeiro dia de aula do ano de 2010, a timidez estampada no meu rosto enquanto minha tia dizia que estava tudo bem e que me encontraria no mesmo lugar no fim do dia. Isso passou. A ansiedade que tive naquele dia ri de mim nos dias de hoje, pois no final da tarde realmente estava tudo bem.

Quando fiz 11 anos, meu medo premeditado passou a ser a despedida. Nessa idade, eu vi a pessoa que mais me apoiou se esvair e ir embora aos poucos. Vivenciei a dor de ver quem eu amo sentir dor e constatei a minha insignificância ao não poder fazer nada quanto a isso. Vi seu corpo se tornar sua própria bomba-relógio, vi as dezenas de idas e vindas ao hospital e as tentativas frustradas de não conseguir fazer as mesmas coisas de antes. Vi o esquecimento e com ele a dor da certeza de que tinha algo errado. Então, por mais um dia, vi sua ida ao hospital, mas daquela vez não vi a volta. Não a encontrei no mesmo lugar no fim do dia.

Desde então meu medo tomou outra forma. Agora temo a saudade. Descobri na arte, na escrita, em maior parte, uma forma de lidar com partidas e despedidas, esperadas ou não. Coleciono cartas, poemas, versos, parágrafos e memórias de pessoas que foram à terra e de outras que ainda andam na Terra, mas que escolheram, por livre e espontânea vontade, viver para longe de mim. Às vezes me pergunto se também não sou minha própria bomba-relógio. Sigo tendo medos, mas, afinal, acho que é isso que me torna humana. Outrossim, espero que a saudade seja ínfima perto das histórias que vivi – e vivo, enquanto meu cronômetro ainda conta. Que seja linda a vida que antecede à explosão e ao adeus.

- Rory Gilmore

A dor da saudade

 Sabe aquela sensação de querer voltar no tempo e corrigir o passado? Querer mudar algo para não acontecer do jeito que foi escrito para acontecer?

De sentir culpa e achar que poderia ter feito mais? Ter amado mais? Ter curtido mais?

A culpa sufoca.

Mas será que teria feito diferença?

Você nunca sabe quando pode ser o último adeus. O último abraço apertado. O último carinho. O último beijo. O último chamego.

O tempo é injusto. Egoísta. Traiçoeiro. Em um momento você está aproveitando a vida intensamente, e, no outro, pode não estar mais aqui.

A saudade aperta no peito. Dói. O coração também dói.

As lágrimas vão e vem.

E vão e vem.

Repetidamente. Constantemente. Incessantemente.

Olhar a morte bem na sua frente assusta. É de embrulhar o estômago. O mais bizarro é saber que a vida não pode parar e que deve continuar. A rotina continua a mesma. Acordar, tomar banho, comer, escovar os dentes, trabalhar, estudar. Tudo no seu devido normal.

Mas você sabe que não está normal. Você continua vivendo. Mas, ao mesmo tempo, sente como se a vida tivesse parado no tempo e sem propósito.

A primeira fase é a negação. Rejeição. É quando a ficha cai de que aquele ciclo se encerrou e aquela história também.

Mas depois vem vindo a aceitação. De uma forma leve. Aceitação de que aquilo aconteceu como deveria ter acontecido e que não tinha como mudar o destino. A aceitação de que você não tem culpa e de que está tudo bem. Aconteceu. É a lei natural da vida.

Mas a saudade, ela é para sempre. Ela é uma sala de espera que você senta e não sabe quando será atendido. Ela também pode ser boa e gerar belas lembranças. Podem fazer as lágrimas serem substituídas por sorrisos. E os momentos ficam guardados para sempre como recordações.

Ela aperta, mas aprendemos a lidar com ela.

- Wintour

O Menino, A Andorinha e O Guarda-Chuva

 Uma, duas, três, inúmeras andorinhas ensaiam seu espetáculo migratório no céu que, coincidentemente, amanheceu nublado nesta manhã. E, o menino, órfão, desabrigado, sem teto, sem lar, embora aparenta estar abatido, permanece de pé observando o horizonte com calmaria e atenção. O silêncio dele, embora, muitas vezes, pareça sufocante, traz à tona as feridas não curadas da alma, feridas as quais nem os velhos amigos, nem mesmo a falecida mãe dele foram capazes de curar. Enquanto os lábios dele se franzem falsamente em um sorriso, as pupilas se dilatam em um árduo dilema entre permitir-se passar pelo luto ou aprisionar a si mesmo nas antigas memórias de infância de um grande amor que, em menos de um segundo, partiu.

    O céu assume cores escuras. Tons cinzentos escondem o azul celeste. As nuvens ganham espaço e os trovões são um prelúdio de que mais um dia chuvoso está por vir. As andorinhas se organizam em uma fileira bem desenhada para partir e, à medida que elas batem as asas rumo ao destino previsto, o menino observa com mais intensidade o percurso rítmico e padronizado seguido pelas aves no céu. Logo, ele nota uma diferença na locomoção de uma das andorinhas e, como um bom observador, sentiu os instintos atraírem o olhar dele diretamente para o bater das asas do animal. Seria uma andorinha ferida que precisava de ajuda? Bom... ele nunca havia dito isso para ninguém além de sua mãe antes, mas ele sempre sonhou em ser veterinário. É. Parece um sonho bobo de criança, um desejo inconcebível e trivial para uma criança tão simples, um ser tão pequeno, tão insignificante quanto ele. Afinal, quem ele pensava que era? Uma criança pobre, nascida em lugar precário?! Um pobre coitado sem família que perdeu a mãe em um incêndio na própria casa, casa da qual não restou nada para contar história?! Quem era ele, afinal? Apenas um menino curioso que vivia se metendo em encrencas como no exato momento em que fugiu pela janela semiaberta do quarto do orfanato para contemplar a migração dos pássaros que sobrevoam o rio Danúbio todos os verões. No inverno, eles partem de volta para suas terras de origem onde podem encontrar condições mais favoráveis à sobrevivência como alimento e abrigo. No entanto, aquela andorinha não. Aquela andorinha não estava voando na direção correta. Ela não estava voando junto ao seu bando. Ela não parecia estar em busca de alimento ou abrigo. Ela nem, ao menos, aparentava saber o que deveria fazer. Ela parecia apenas deslocada. Exatamente como ele se sentia.
    

     Ele sente um peso leve sobre suas mãos. Era ela. A andorinha. Então, ele resolve se sentar para averiguar com mais delicadeza a condição da ave. Cada olhar era profundamente meticuloso e cada toque ou gesto era milimetricamente calculado para tentar desvendar a origem do problema. Alguns minutos depois, após uma análise cuidadosa do físico do animal, o menino nota que não havia nada de errado com a andorinha, afinal. Mas, se não havia nada de errado, nem sequer uma única asa quebrada, então, qual era o problema da ave? O que está a impedindo de voar?   

     As lembranças daquela noite assombram os pensamentos dele. A ferida aberta que elas deixaram em contrate com a dor da partida inesperada o deixam histérico quase todas as vezes que ele se recorda do fogo que consumiu a casa. A mãe dele, na tentativa de acalmá-lo, afirmou que tudo ficaria bem. No entanto, isso não procedeu. Um estrondoso som entoa na sala, o teto cai e as chamas se propagam, separando mãe e filho. As mãos do menino tremiam de forma inconsciente, o corpo sofria com tremores involuntários. Ouvia-se as batidas do coração somente. Da boca não saia nenhuma palavra, nem sequer gritos de desespero e, quando as lágrimas cessaram, de repente, uma paralisia. O corpo para. Não há nada mais, somente o barulho das chamas consumindo a morada e, em um ímpeto de segundo, a dor sussurra aos ouvidos da pobre criança que viu a mãe ser envolvida pelas brasas ardentes do fogo e, quando o corpo volta a se mover, aquele doce olhar se transforma em temor e solidão. O toque ensurdecedor de uma sirene toca, mas ele não ouve nada. Os bombeiros tentam salvar o menino que, em profunda angústia, começa a se debater contra os profissionais. Então, ouve-se um único grito, um grito silencioso e melancólico antes que o menino desmaiasse nos braços de um dos profissionais. Noite fatídica, mas ela o salvou. Ela soltou as mãos do filho para que ele tivesse a chance de escapar, de ter uma vida. Por amor, o menino está vivo e agora vive se culpando pela morte da mãe.

     Um enorme trovão o desperta de seus devaneios. Ele sente as minúsculas gotículas de chuva caírem sobre a sua face. O menino senta-se rapidamente, põe a andorinha sobre o colo, abre a mochila e pega um guarda-chuva. Ele observa o objeto antes de abri-lo e, logo depois, levanta-se novamente com a andorinha em mãos. Ao realizar esse movimento, o menino notou que a ave ficou agitada e se estremeceu como se estivesse com medo de altura. Pensativo, ele se perguntou se o animal havia tido problemas para aprender a voar. Bem, muitos diriam que, sendo um ser humano, comparar-se com uma ave seria um ato de insanidade ou de muita baixa autoestima, mas ele não. Ele se vê no olhar daquela ave, na atitude fracassada de tentar superar um trauma do passado. Ele se vê preso nesse vazio sem rumo como aquela pequena andorinha.

     Até que o ponto de vista dele muda. A andorinha para de se debater e algo o instiga. Ela não desiste de tentar voar. Ela insiste em bater as asas mesmo que isso lhe desperte medo e lhe custe toda a energia. O menino, que há muito tempo não sorria com sinceridade, finalmente sorriu. Foi nesse momento que ele compreendeu que, se até mesmo uma pequena ave é capaz de persistir no caminho em direção à cura, ele também é capaz de se curar das feridas não cicatrizadas da alma. Afinal, aquela andorinha não fugia do passado, nem vivia nele. Ela seguiu em frente, mesmo com temor, ela tentou e ele também tentaria. Ele persistiria na cura até que o guarda-chuva dele se tornasse um mero acessório estilístico no visual e não um objeto que o protegesse da chuva, porque a chuva também cura a dor e, pela primeira vez em muito tempo, o menino sentia-se livre dançando na chuva.

     Ele não é culpado pela morte da mãe dele. Agora, ele sabe disso. Então, o menino acaricia a ave, encosta o guarda chuva nos ombros e caminha de volta em direção ao orfanato. A andorinha o recordou do que realmente era viver e, mesmo que ele ainda não esteja totalmente curado, ele sabe, ele confia plenamente que as coisas vão melhorar daqui para frente e não importa mais como a história será escrita, o importante é que agora ele tem uma companhia e sabe que, apesar de tudo que ele já viveu, tudo ficaria bem, exatamente como a mãe dele dizia: "...acalme-se, pois tudo ficará bem".

- Daphyinne

A Família Tradicional Brasileira

Pedro, um jovem como muitos do Brasil, vive em mais uma família vista como um exemplo da “família tradicional brasileira”. Seus pais, casados há muito tempo, vivem em uma aparente relação estável, quem os vê pensam que eles são um grande exemplo de casal perfeito. A família de Pedro é bastante religiosa, frequentam a igreja com uma grande frequência, igreja esta com traços bastante conservadores assim como a família de Pedro. Ao longo de seu crescimento, Pedro aprendeu que ser feliz é formar sua família com uma esposa e filhos além de sempre estarem servindo a igreja. Seus pais sempre o protegem bastante evitando muito o contato com outras esferas da sociedade. Porém, Pedro queria ser mais livre e independente e durante sua adolescência, Pedro começou a sair com uns amigos e tudo parecia ir muito bem. Pedro sempre voltava feliz de suas saídas, sorridente e bastante empolgado mas ao mesmo tempo, apreensivo, um de seus amigos despertou um  sentimento diferente nele, um sentimento que ele nunca tinha sentido. Pedro estava apaixonado por esse amigo mas ele se lembrou de todos os ensinamentos que o aprendeu, que isto era algo errado e que ele estava cometendo um pecado apenas por amar.


Pedro não quis levar a sério este sentimento, porém, certo dia acabou não resistindo e acabou tendo uma noite romântica com esse amigo em sua casa. Infelizmente Pedro acabou sendo descoberto por seu pai que o retrucou com bastante violência, chegando a agredir o seu filho. Pedro acabou entendendo que ele estava sendo um grande pecador e se sentiu muito culpado,desde então, passou a não sair mais com os seus amigos, algo que o fazia muito feliz, e passou a frequentar mais a igreja, em sua faculdade, conheceu uma menina que com o passar dos tempos acabou se tornando a sua esposa com quem teve duas filhas. 


Agora Pedro estava no padrão de felicidade o qual foi ensinado, tinha uma esposa, duas filhas e frequentava bastante a igreja. Mas será mesmo que ele estava feliz? Pedro tinha tudo que falava que ele deveria ter para ser feliz, mas faltava uma coisa, a felicidade. Certo dia, Pedro estava brincando com suas filhas, nesse momento ele se divertiu bastante e passou uma forte reflexão por ele, ele estava sendo feliz de verdade nesse pequeno instante e se lembrou de tudo que ele vivia nos tempos os quais saía com os amigos. A partir desta reflexão, Pedro passou a ler e estudar bastante vários aspectos sociais além da igreja e se tocou que a religião não é um estatuto que controla toda a sociedade e que as igrejas, muitas vezes, não estão passando necessariamente a mensagem de Deus para pessoas mas sim passando uma visão de mundo que um grupo específico acredita e como este grupo foi historicamente privilegiado socialmente ele detém o poder da informação e de passar uma mensagem com uma aparente veracidade incontestável. Os pastores são vistos como mensageiros de Deus, mas quem disse que eles são? 


Foram muitos questionamentos, mas o estopim para Pedro foi quando ele descobriu que seu pai tinha traído sua mãe e viu o “casamento perfeito” ficar muito abalado. Pedro então pensou “Como pode eu ser um pecador apenas por amar e o meu pai ser um santo sendo que o mesmo agride o seu filho e machuca mentalmente a sua esposa?” A partir desse momento Pedro decidiu apenas ser feliz, ele percebeu que o mais importante da vida é ser feliz com ele mesmo e que não tem nada de errado em ser feliz, a felicidade nunca pode ser um problema para alguém e que todas as formas de amor genuínos são lindos. Ter uma fé também é lindo, todas as formas de fé são muito bem vindas, porém ninguém nunca pode ditar a sua fé para outra pessoa.


Após uma conversa com sua esposa, Pedro decidiu se separar e seguir atrás de sua felicidade. Hoje Pedro se encontra muito feliz com a sua família, com suas duas filhas e o seu marido, os dois paizões de suas filhas.


- Jô Tenório

Amor incondicional

 Amar, um sentimento de carinho e afeto. Tão simples mas tão escasso no mundo.

Antes mesmo de tomar consciência do que era viver, meus pais já tinham me levado à igreja. Lugar onde se pregam boas-novas, prosperidade, redenção e… amor!

Louvores sobre comunhão eram entoados todos os domingos de manhã onde eu estava antes mesmo de poder dar bom dia para minha pobre alma infantil que só queria mais uns minutos de sono, afinal, que criança quer ouvir um coral no lugar de um bom desenho animado? Sequencialmente liam versículos que precedem as pregações com os mesmos discursos, mas mudando apenas quem falava. Chega a ser clichê citar o famigerado “Ame ao próximo como a ti mesmo”, mas aparentemente na igreja dá a sensação de amor profundo ao seu irmão se você ler isso em voz alta (ainda que não praticando).

Passei toda minha infância e adolescência nessa igreja, era amado por todos. Sempre fui uma criança cativante e por isso conquistei diversos espaços na igreja. Me amaram quando eu cantei nos cultos, me amaram quando eu participei de bazares beneficentes, me amaram quando eu vendia doces para arrecadar dinheiro para a igreja, me amavam quando eu era quem eu não era de verdade. A igreja amava o fantoche doutrinado que servia sem contestar nem andar com as próprias pernas.

Eu sempre soube quem eu era. Era doloroso sentir atração pelo mesmo sexo num ambiente que trata como escória quem nasce assim, mas até então eu era querido por todos… nada disso importa, eles me amam! Amam?

Me odiava e me culpava todos os dias por ser quem eu era, fui à retiros torcendo para Deus me livrar dessa “sujeira” que me levaria para o inferno. “Deus, tira de mim essa vontade, eu te imploro, sou seu filho” essa era minha oração por toda minha infância e adolescência. Eu me odiava por conta daqueles que deveriam me amar. Me punia toda vez que sentia atração pelo mesmo sexo: me cortava, me batia, ficava sem comer e cometia homofobia achando que ajudaria em alguma coisa. Eu odiava ser eu, sentia nojo da minha pessoa por conta de doutrinas religiosas.

Resolvi ser eu. Uma escolha que eu acreditava não ser tão difícil por me sentir amado, mas era tudo falácia, eles só amavam o meu eu servo, submisso e infeliz. Como pode alguém te amar e querer sua infelicidade? Sendo eu mesmo, eu vivo e sobrevivo. “Filho do diabo, enviado de satanás, maldição…” Foram coisas que ouvi no lugar em que eu podia jurar que me amavam.

Hoje eu me amo, sou do jeito que eu deveria ser! Não tenho mais nojo ou vergonha da minha pessoa. Não somos pecadores nem aberrações, somos humanos com sonhos e desejos. Desejo de ser amado.

- Vixen Rox

Crônica

 Essas palavras são sobre a falta. São sobre aquela espécie de vazio que eu sinto quando penso sobre você e em todas as possibilidades que poderiam ter acontecido. 
Eu não desejaria que nada fosse diferente, ou eu não seria eu, mas é impossível negar que eu já me peguei imaginando muitas vezes como as coisas seriam se você fosse presente. 
Porque a falta da qual eu escrevo aqui não é aquela que você sente quando não tem mais a pessoa com você, mas sim quando você convive com ela e mesmo assim ela não se faz presente. 
E o que é estar presente? É estar junto, viver os bons e maus momentos, compartilhar uma história e uma conexão. Isso é o que nós, humanos, somos: um embaralho de conexões. 
Infelizmente, mesmo que o sangue que corre em minhas veias seja o mesmo que o seu, eu acho que essa é a única conexão que compartilhamos. 
Eu te vejo todos os dias e nós nos cumprimentamos, mas nunca conversamos de verdade sobre nada. 
Eu não sei sobre a sua vida antes de eu nascer, você nunca me contou. Eu não sei o que te move ou quais são seus sonhos. E da mesma maneira, você nunca perguntou os meus. 
Você não interfere nas minhas escolhas, o que eu agradeço, mas muitas vezes você não está lá para comemorar comigo ou emprestar seu ombro para que eu chore. E se eu for ser franca, eu prefiro esconder meu choro do que me mostrar vulnerável na sua frente. 
Eu não sei se um dia já foi diferente, se foi eu não lembro, e das minhas lembranças eu não tenho abertura com você e não entendo as suas alterações de humor bruscas ou porque você parece dar mais importância para outras pessoas do que pra sua própria família, pai. 
E eu estaria mentindo se dissesse que não guardo rancor ou que as datas que te envolvem são tranquilas para mim. Mesmo assim, eu espero que eu consiga entender. 
E principalmente, que eu consiga te perdoar e perdoar a mim mesma.  
Espero que você se desculpe assim como eu faço agora neste compilado de palavras. 
Eu peço desculpas por não conseguir te entender. 
E que mesmo que nós não sejamos como nos comerciais, que ainda possamos construir algo bom e que a palavra “pai” não continue sendo tão amarga.


- Motoserra

Traumas

 Aos 10 anos, Mya apanha de seu pai pelo seu “jeito masculino”. Mya, criança, não sabia da profundidade social que existia em uma menina amar jogar futebol. Seu pai, pastor, a proíbe de brincar com meninos.

 Aos 15 anos, no auge da adolescência, Mya se olha no espelho e não se reconhece. O vestido e os cabelos igualmente longos refletem a longevidade de sua repressão vivida dentro da igreja. A verdadeira Mya não existe, ou melhor, ela é escondida.

 Aos 20, com o cabelo raspado e usando “roupas masculinas”, Mya se sente Mya. A sua verdadeira essência exposta teve como consequência o afastamento dos pais. Afastamento dos pais ou de seu trauma? Ou ambos? Mya não quer saber, apenas viver jogando futebol.

- Mya Hill


Trauma

Trauma uma palavra tão pequena mas que significa muito,uma palavra que pode levar a gatilhos,gatilhos como a situação de um menino recusado pelo seu amor, um menino apaixonado por uma amada ,uma amada que parecia ser ser uma pessoa boa,mas que causou traumas ,por que ao invés de dizer o não você precisou humilhar, humilhar ao ponto de dizer : "Eu jamais ficaria com alguém como você?". Qual o sentido de quebrar em pedaços todo o amor que ele tinha por ti, qual a necessidade de magoar ao extremo uma pessoa que só queria lhe dar o amor? Mas esse não é apenas um Trauma, é um coração, uma vontade , um sonho morto por apenas uma única facada. Passamos por diversos traumas na nossa vida, muitos irão nos ensinar a ser um humano melhor,mas muitos mereciam ser evitados

- Chapeleiro Intelectual

E nessa, eu me perdi

 Família. Nosso primeiro contato com a sociedade e muitas das vezes o pior que poderíamos ter. Cresci assistindo desenhos, filmes e séries onde famílias felizes comiam na mesa e as figuras paternas reforçavam o amor e admiração pelos filhos. Mas depois, depois de um tempo, descobri que essa arte não copiava a vida, descobri que fora da ficção as figuras paternas não veem a necessidade de uma presença mais constante, justificando tal ausência com “excesso de trabalho” ou simplesmente “cansaço”.

Acredito que depois de um tempo eu entendi o que me assombrava, após o nascimento do meu irmão na verdade. Antes atribuía a “falta” ao meu pai, depois entendi que a falta que sustentava essa distância, não estava no trabalho e nem no cansaço, estava em mim ou nas expectativas que ele criou sobre mim. Meu irmão trouxe uma lucidez que talvez eu não fosse conquistar sozinho. Eu o vi se tornar a personificação dos sonhos do meu pai. E eu? me tornava a ruptura, eu era a falha do masculino, masculino esse admirado e constantemente destacado por ele, nos que o tinha.

O medo de frustar, decepcionar ou romper com as expectativas de alguém novamente, me fez assumir a passividade, a anulação dos meus sentimentos em cuidado ao do outro. Por muitos anos assumi uma figura não minha, por muitos anos fingi ser, fingi vestir. Eu consegui agradar…a ele.

e nessa, eu me perdi.

Hoje, deixo de me anular para viver expectativas não minhas. Hoje, anulo expectativas não minhas.

- Agenor de Miranda

20 de agosto

 Sentado neste quarto tomado pela penumbra de uma madrugada silenciosa, após um dia cansativo que durou mais do que deveria, penso em minhas dores. Feridas da alma que ainda não se fecharam e quase permitem que eu escape de mim mesmo. 

Existem eventos traumáticos em nossas vidas que permanecem à espreita, aguardando o momento oportuno para se manifestarem novamente. A fazer com que reconheçamos nossa fragilidade. Expondo que não estamos curados, apenas distraídos.

No dia 20 de agosto me senti minúsculo. Como se não houvesse uma barreira que separava a minha existência do resto do mundo. Uma criança perdida nas ruas de uma cidade grande demais para ela, a chamar por sua mãe. Esta, por sua vez, embriagada demais para reconhecer sua voz, tropeçava em suas próprias pernas e desmaiava no concreto gélido. 

Naquele domingo, voltei a ter 8 anos. Vivi todas as brigas novamente, ouvi seus gritos como se nunca houvessem cessado, lavei seu sangue como se jamais tivesse estancado. Meu coração acelerou da mesma forma que acelerava há uma década atrás, e eu chorei como se não tivesse envelhecido um dia sequer.

No entanto, não me calei como de costume. Esbravejei. Da minha boca saíram palavras profanas das quais não me arrependo, enquanto  – diferente do que meu eu indefeso costumava ouvir da sua – você se desculpava.

Disse, com sua língua embolada, que eu era o único acerto de sua vida e que precisava do meu perdão para continuar existindo.

Não perdoei. 

A carreguei por quatro lances de escada com dificuldade. Troquei suas roupas sujas. A coloquei na cama e esperei até o sono (ou álcool) dominar seu corpo por inteiro. Me sentei, ao lado da cama, para checar sua respiração a cada dez minutos.

Naquele dia, prometi duas coisas a mim mesmo: não vou me perder como minha mãe se perdeu; Vou carregar suas dores quando suas pernas fraquejarem, para não procurar escapes destrutivos.

Vou ajudar a curar quem me traumatizou.

- Dante

Cobertura no bolo cru

Até onde o medo, o receio, as angustias podem levar alguém ao limite?, seus comentários e suas ações intimamente ligados ao ponto do fio que liga ambos enrijecer? Fora nítido a mim e as minhas ações que estava cego diante de minhas dores, preocupações, receios do abandono de pais, amigos e da própria existência. Que soube entender o mínimo aceno de cabeça como um sinal de irrelevância para os outros, de sentir um punhal cortando veias e artérias do coração imaginário das nossas emoções, passados quase dez anos da minha juventude, vejo que minhas ações não são tal qual diferentes do eu de onze anos de idade, e sim a versão madura das mesmas ações, antecipando tudo o que se pode fazer para evitar o máximo trauma do abuso que o pequeno menino viveu sob uma literal chuva de pedras por outros moradores da mesma rua apenas por ser “incomum”, sob esses detalhes, vivo que ando a colocar a cobertura sobre bolos crus, a antecipar coisas que desejo que aconteça para evitar a parte ruim da convivência humana, a ansiedade social de ser um estranho em algum local, a sensação do vazio, estando cercado por tantas futuras memorias.

- Charles Jr.

Oitava

 14 de fevereiro de 1996, nunca esquecerei do dia em que você partiu, simplesmente partiu, virou as costas para sua responsabilidade, para quem devia receber a sua atenção, para o que devia receber o seu amor. Você preferiu a covardia, ser o vilão, o meu vilão, num mundo onde não existem heróis, existe apenas coragem e arrependimento, coisas que você jamais poderá entender o que são.

9 de agosto de 2006, meu aniversário de 12 anos, uma década desde que você me deixou, tinham seu endereço, me perguntavam se eu queria te encontrar, se eu queria te ver pela primeira vez, pelo menos para eu guardar teu rosto em minhas memórias, decidi que não, eu não precisava de você, nem ao menos sabia quem você era.

12 de maio de 2007, como uma boa criança curiosa, eu vasculhava por caixas e mais caixas em minha casa à procura de lembranças gravadas no mundo físico: fotos, documentos, o que for. Numa caixa velha no fundo de um armário, acho um envelope, tem seu endereço, uma foto sua e um nome gravado.

19 de julho, ainda em 2007, faltavam 21 dias pro meu aniversário, você sabia, né, Frederico? Eu me perguntava se você ainda lembrava do dia que eu nasci, hoje eu sei que não tinha o porquê de imaginar isso, você escolheu me esquecer, eu tentava te esquecer também, mas não conseguia, você era como uma parte faltando de mim.

30 de novembro de 2012, meu último dia como estudante, o primeiro dia do resto da minha vida, eu desejava todos os dias que você fizesse parte dessa vida, eu desejava que você estivesse lá, que dissesse coisas como “Parabéns, filho”, “Estou orgulhoso de você” e “Hoje começamos sua jornada”. Eu queria que você me amasse.

25 de janeiro de 2019, meu primeiro emprego na área que eu sempre sonhei, era apenas um estágio, mas eu não me importava, eu agia com paixão. Coincidentemente, também era a sua área, quem diria que eu seria a cara de meu pai, porém eu não morreria sozinho com meu rancor, eu não estava predestinado a ser um merda.

6 de outubro de 2021, foi o dia em que eu decidi começar a escrever pra você, usei o endereço que achei com meus 12 anos, escolhi as cartas pois foi o que eu achei em 2007: uma carta com lágrimas. Escolhi os anos e os dias, lembrei do que pude, tudo o que eu queria era te informar sobre o que eu vivi, sobre o que eu passei.

2 de março de 2028, lembro exatamente do momento em que recebi o telefonema, uma mulher, voz rouca, chorosa, perguntava se eu era quem eu era, ela precisava me contar. Me deu cada detalhe, me disse tudo sobre o momento de sua morte. Escrevo para ti a oitava carta, mesmo sabendo que você nunca vai ler, contando do meu filho, Fernando, fui o pai que nunca tive pra ele, não cometi os mesmos erros, vivi a vida com ele, auxiliei, não virei as costas, amei. Hoje, 13 de março, eu entrego a última carta, ela será colocada em seu caixão junto das outras, você correu de mim no início de minha vida, porém ficarei com você no fim da sua.

- Abebe Sant'Clair

Reflexos do Passado

  Para se saber da beleza da vida, tem que se conhecer suas escuridões. Ao contrário de quem tenta de todas as formas escapar das incertezas e tristezas que passamos de tempos em tempos, eu prefiro passar por essas dificuldades sempre pensando no que as mesmas podem me ajudar a ser mais forte no futuro.

              Na teoria, essa linha de raciocínio pode ser muito madura, porém nada que planejo acontece exatamente igual como eu espero. Não se consegue prever o amanhã e muito menos controlar o que um dia sentimos e não lembramos, mais conhecido como gatilhos.

             Ele se manifesta de diversas maneiras, mas certamente uma de suas piores formas é a convivência com a pessoa que te traz essa sensação ruim. E  como no meu caso, esse indivíduo ser do núcleo familiar só torna as coisas mais difíceis e me encaminha para o costume com algo que nunca me fez bem. Natal, aniversários, redes sociais, festas. Tudo se torna um caminho para aflorar tudo que eu já sofri no passado, porque hoje mais maduro consigo controlar a convivência já mencionada.

              Porém, nada apaga a total desatenção e falta de carinho que só essa pessoa conseguiu me demonstrar sem motivo algum. Desde o meu nascimento até a adolescência eu era apenas um número para esse parente. E tudo se torna mais evidente e triste quando o tratamento com os outros integrantes do meio familiar é exatamente o oposto e que em questões de segundos uma áurea de violência psicológica se torna uma ação em palavras. E com um detalhe chave : sempre quando ninguém vê.

                O medo toma conta e a ameaça para que não se saiba disso acabava sobressaindo no meu psicológico, já que eu ainda não entendia o que realmente eram essas falas agressivas sem motivo algum. Ao longo dos anos, entendi o jogo mental praticado e ameaças não ocorrem mais, porém certas palavras nunca vão ter mais o mesmo sentido para mim.

- Cronista de Niterói

O telefonema

 Existe aquele telefonema que as pessoas odeiam ter que dar, mas odeiam mais ainda receber. Pensam nas melhores maneiras de amenizar, procuram os mais diversos eufemismos possíveis, mas, na maioria dos casos, não foge muito de “seu/sua”, o parentesco e o famoso “se foi”. Seu avô.
     E é assim, depois de uma curta ligação que o mundo se torna infinitamente mais pesado. É mais difícil prestar atenção no que falam contigo. É mais difícil segurar o copo d’água ou digitar no celular sem esbarrar em outras teclas pela tremedeira. É mais difícil se imaginar saindo daquela situação. É mais difícil sorrir sem sentir culpa. Tudo por causa de uma chamada telefônica. 
     Dormir se torna uma tarefa impossível. A mistura de sentimentos aparece: vontade de ver o rosto da pessoa pela última vez e o medo de ver o rosto da pessoa que você sabe que nunca mais verá. A única solução possível é travar uma batalha contra o sono até não poder mais, e o medo se tornar realidade.
     E é neste momento, ao deitar a cabeça no travesseiro para dormir, que você se lembra. A sensação volta como um arrepio pelo corpo. Minutos antes da ligação, a “mão” que cuidadosamente deslizou pelo seu ombro. A “mão”, aparentemente sem dono, que te fez imaginar que era coisa da sua cabeça o sentimento de despedida. A “mão” que traz aquela sensação de conforto e empatia. A “mão” que finalmente te faz conseguir pegar no sono, depois daquele terrível telefonema. A “mão” que nunca existiu fisicamente, mas que confortou seu coração nos piores momentos.

- Isadora Carvalho

Plath

 “Se ela fizer isso de novo é direto para a ala psiquiátrica”. Essa foi a primeira coisa que ouvi naquele dia, depois de acordar em um sala toda branca com luzes fortes. Nesse dia pensei em Sylvia e sobre como não queria mais viver sendo lentamente cozida em uma redoma de vidro, sobre como existiam diversos figos que eu nunca poderia comer, sobre a vida que eu mesma criei pra mim. Traumas são presentes na vida de qualquer pessoa, mas nunca soube lidar com os meus não soube lidar com o fato de crescer com uma mãe doente e um pai exigente. Via os dois presos sob suas próprias redomas, vi os figos de minha mãe apodrecerem enquanto ela cuidava de mim e nunca pude evitar de me sentir culpada por deixar isso acontecer. Já os do meu pai, assim como os meus, foram desperdiçados, poderiam ter sido usados, mas graças aos nossos problemas nunca nos achamos dignos deles, então apenas deixávamos que eles caíssem diante de nós.

Minha figueira passou anos escondida atrás das outras, vivi uma vida para agradar e ajudar as outras pessoas a colherem seus figos e saírem de suas redomas, mas nunca sai da minha. O constante medo de decepcionar não deixou, se eu saísse daquele cozimento eu poderia começar a tirar notas baixas e decepcionar meu pai, minha mãe poderia me odiar ainda mais e despejar mais de seus problemas em mim, eu estaria exposta a desaprovação das outras pessoas. Então comecei a me fechar, minha redoma já não me incomodava mais e lá eu estaria segura dos julgamentos. Mas um dia o ar começou a queimar as narinas e a sufocar, não conseguia mais ficar lá dentro, criei um ambiente hostil para mim mesma e não tinha como sair de lá. A solução mais plausível era, talvez, respirar o ar que saia do forno e assim como Sylvia me cozinhar, porém não mais no sentido figurado.


- Carrie Grant

 

 Confesso que tenho dificuldade de entender a morte, em principal, a sua. 

A sensação que tenho é de que você saiu e já vai voltar, portanto, costumo não me preocupar ou pensar sobre a demora. 

 

E de quem é a culpa? 

Sua? 

De suas escolhas?

Ou de um “Presidente” incapaz de lidar com a realidade e seriedade de uma doença? 

 

As vezes sinto seu cheiro, uma mistura de cigarro com velhice.

Suas “bugigangas” ainda estão espalhadas pela casa e fazem parte da nossa vida.  

Você ainda é mencionado nas conversas de família como personagem de alguma história. 

 

Reafirmo, com alguns exemplos simples, minha dificuldade de entender sua partida repentina, uma vez que involuntariamente você continua aqui.


- Aurora Boreal

O aprender sem você.

É mãe, foi muito difícil quando o lhe perdi. Entretanto eu sei que a senhora sempre irá me acompanhar, até mesmo nos pequenos detalhes que a vida nos proporciona a conhecer e enfrentar. Já fazem 12 anos de sua partida, tenho certeza que mesmo eu tão pequena entendia sua perda e o que ela significaria dali pra frente. Obviamente o início sempre é mais dolorido, mas a senhora deixou fortes companheiras que me acolheram nesse momento árduo e triste. Você sempre contou com a sua melhor amiga…, ela estava contigo até os últimos dias e a senhora a fez prometer que cuidaria de mim independente de qualquer coisa. Assim ela fez, e se tornou a mãe que eu não tinha mais aqui neste plano, e me apoiou em todas as minhas decisões, sempre lembrando a mim: Sua mãe gostaria de ver você fazendo isso ou aquilo. Hoje eu lembro da senhora assim como lembrava em 2011, uma heroína que planejou toda minha caminhada. Até mesmo se esta caminhada fosse sem a senhora, eu te amo eternamente mãe.


- Zulema Hernandez

carta para ninguém

 

olho-me no espelho. não acho que eu reconheça qualquer coisa que vejo. vejo fraturas de muitos amores.

pedaços de mim que se foram com outras pessoas, deixando aqui apenas um amontoado

de coisas.

um amontoado de sentimentos sem sentido que eu não consigo compreender, me

deixando preso, preso naquele mesmo estado de espírito o qual eu sempre temi: o nada.

tantas coisas juntas acabam virando o nada, assim como todas as cores viram o branco.

eu tenho tanto que a imensidão vira o vazio, ausência.

vejo teu sorriso em todos os cantos do meu quarto. teus olhos? eles aparecem para mim

no escuro. 

se eu fechar os olhos ainda posso sentir a maciez de sua derme ao meu lado, segurando

a minha mão, naquelas nossas noites de insônia. mas eu odeio fazer isso.

odeio. 

quando eu abro os olhos você não está aqui.

e tudo o que eu queria mesmo era a sua presença.

mas só me restou a saudade.

ao menos tenho diversas memórias boas para me divertir enquanto penso em ti.

sinto falta do que poderíamos ter tido, assim como sinto falta do que tivemos.

e pensando em ti, esqueço de mim. esqueço de quem sou, quem fui e que algum dia

poderei ser algo a mais.

mas por agora está tudo bem. 

esquecer de ti seria esquecer um pouco de mim também.

e enquanto essa dor ecoar em meu peito, sei que meu coração ainda será teu por inteiro.


- Coraline Blues

Véspera de feriado

O número 6 é assombrado. Não porque dizem por aí que ele pode ser demoníaco ou por

seu significado na numerologia, mas porque, coincidentemente, há 6 anos atrás ele se

tornou o dia mais dolorido do meu calendário.

Quarta feira, 6 de setembro de 2017.Lembro perfeitamente de cada detalhe. Véspera do

feriado da Independência. Terminando de me arrumar para viajar, meus pais entraram no

meu quarto pra me alertar sobre os cuidados que deveria tomar na viagem, mas foram

interrompidos por uma ligação da minha melhor amiga. Nós deveríamos estar no curso de

inglês que fazíamos juntas. Não fui por causa da viagem, não daria tempo. “Por que ela

também não foi? O que será que aconteceu?”, pensei. Atendi na mesma hora. “Eu não

tenho mais mãe”, foi a resposta que ela me deu. Oi? Como assim? Devo ter entendido

errado. “A minha mãe morreu. Ela se matou”. Foram essas as palavras que amaldiçoaram

os dias 6 pra sempre.

Tínhamos 12 anos, nossas preocupações eram que caneta usar pra anotar uma matéria

qualquer de Ciências ou Matemática no caderno e qual tênis usar pra ir combinando na

festinha do final de semana. De um dia pro outro se tornaram como seria pra ela terminar a

escola, já que seu pai morava na Barra e sua mãe era sua única familiar em Niterói.

Praticamente adotada pela minha família, moramos juntas por 4 meses e nossa relação se

tornou uma irmandade. A dor da perda da sua mãe era minha dor também. Seu luto

também era o meu. Vê-la sofrer e não poder fazer nada era o pior castigo que eu poderia

receber. Chorávamos juntas, sofríamos juntas, tudo que doía nela, doía em mim, quase que

por telepatia. Mas o tempo foi passando, no final do ano letivo ela foi morar com pai e eu

agora tinha uma irmã à distância.

A gente sabe que, apesar da Ponte Rio-Niteroi entre nós e dos rumos na vida totalmente

diferentes, o coração dela sempre teria o meu pra acolhê-lo quando a lembrança do trauma

viesse à tona. E não há nenhuma distância capaz de impedir que a gente esteja perto todo

dia 6 de setembro pra se proteger da solidão específica que esse dia causou nas nossas vidas.


- Juno Lino

Paixão que dói

Caro Jonas,

Naquele ano, você se aproximou de mim tão rápido quanto um raio tocando o chão, aquelas

brincadeiras bobas e seus sorrisos maliciosos pelos corredores da escola eram um prato

cheio pra eu me entregar sem pensar, minha cabeça se perguntava o que estava

acontecendo e meu coração só queria ser seu.

A cada dia, eu só estava mais confuso e apreensivo, “mas ele namora, por que está

brincando comigo”. Fiquei mais e mais obcecado, pensava em você em meus braços 24

horas por dia, entre sonhos e desejos.

Até que o dia chegou, você descobriu meu amor, não te deixei em paz e o inevitável

ocorreu: você surtou. Me disse coisas que eu precisava ouvir e outras que me machucaram,

algumas palavras foram como facas, outras como afagos. Isso só me deixou mais preso a

você, como o planeta Terra orbita o Sol.

Mas a tempestade se dissipou aos poucos, fui entendendo que aquele mundo de sonhos

não se passava de uma realidade dura e fria e finalmente entendi o que tinha acontecido:

que minha obsessão e paixão por você, resumidas a uma atração, eram algo que eu não

tinha vivenciado ainda.

Tendo passado esses anos, compreendi que precisava passar por isso para me formar

como o ser que sou hoje: muito mais resiliente e confiante, sem me jogar de cabeça no mar da incerteza.


- Gabriel Capistrano

Uma carta para o Anthony do passado

 Querido eu,

Nós conseguimos. Você pode não achar nesse momento, mas somos mais fortes do que pensávamos ser.

Sei que vai discordar, mas eu me inspiro muito em você, quando as coisas parecem muito difíceis lembro que já passamos por coisas piores e sobrevivemos. Então, percebo que não há motivo para se preocupar.


Eu tenho tentado lembrar como tudo começou, mas minhas memórias dessa época são meio confusas, ou talvez eu só me force a não lembrar.


Talvez o pontapé inicial não tenha sido aí, mas acredito que as coisas tenham começado a piorar depois da morte do vovô.

Ainda lembro da mãe dizendo: “O vovô não vai mais voltar para casa, meu amor. Porque o coraçãozinho dele parou de bater”.


Acho que foi aí, aos 8 anos, que a nossa visão inocente de mundo começou a se romper. A percepção da mortalidade é algo que muda tudo e ,no nosso caso, pode parecer destruir tudo… 


A ideia de que não somos eternos nos dilacerou e um pânico se instalou em nós. Aquela verdadeira sensação de que não há para onde fugir, mesmo que você possa correr…

Logo, perderíamos as pessoas que amávamos e perderíamos a nós mesmos. Então, qual era o ponto em viver afinal?


Me lembro de chorar no banho, chorar escondida na escola, chorar em casa, e chorar caso a mãe dissesse que chegaria em 5 minutos e não chegasse. Será que ela tinha morrido no caminho?

Então o pânico recomeçava…


Logo, o choro se tornou algo a mais e no momento em que nos lembrávamos da finitude da vida, e parávamos para perceber que a visão daquele momento um dia acabaria, ficava mais difícil respirar enquanto a visão ia se tornando panorâmica.


E não sei como, mas se passaram 2 anos sem que as pessoas soubessem a profundidade daqueles sentimentos.

Lembro do dia que tudo mudou.

Estávamos exaustos, cansados de viver daquela forma. O pânico consumia toda a nossa energia.

Estávamos a caminho da escola, a mãe estava nos levando, e aquele nó na garganta simplesmente explodiu. Contamos tudo e choramos até não poder mais.


Minha próxima memória é em um consultório médico. A doutora me perguntando se eu escutava vozes, e eu achando que a maluca era ela.

Ela me explicou :“tem uma pecinha do seu cérebro que não está funcionando direito. Quando você brinca ele volta a funcionar e você não sente medo, mas quando para, o medo volta”.

Então pensamos, se a solução é brincar, então porque não podemos ser simplesmente crianças normais e só nos preocupar em brincar? Porque temos que nos preocupar com o que acontece depois da morte?

Não queríamos nos sentir daquela maneira, mas o que poderíamos fazer? Não tinha como evitar!


Começamos a tomar remédios e fazer terapia. Mas a mãe não achou que era saudável para uma criança de 10 anos achar que precisava de remédio para se sentir melhor. No começo as coisas melhoraram, mas não demorou muito para que voltássemos a nos sentir da mesma forma…


Nos sentíamos esgotados. A terapia já não ajudava tanto. E nós queria dar um nome a aquele pânico que sentíamos. Queríamos tirar aquela sensação do peito. Queríamos parar de chorar. Queríamos aproveitar os almoços de domingo sem sentir que nossa cabeça estava em outro lugar.

As coisas chegaram no seu limite. Nós chegamos no nosso limite. Sentíamos que iríamos explodir. 


Só queríamos que tudo aquilo acabasse…



Depois do terceiro ou quarto ano de morte do vovô, não lembro exatamente, foi quando começamos a ver a luz no fim do túnel.

Mudamos de terapeuta e ela disse algo que mudou toda a visão da morte que vínhamos construindo naqueles longos e exaustivos 4 anos. 


“Você pode passar por todos os terapeutas que existem, pode pedir para eles que te digam o que existe depois da morte. O que acontece Anthony, é que ninguém vai poder te dar uma resposta, porque ninguém sabe”.


Caímos na real. Poderíamos passar 80 anos da nossa vida pensando sobre nossa morte, um milésimo de segundo diante da imensidão de uma vida inteira. Ou poderíamos viver nossa vida e nos preocupar quando o dia chegasse, e foi o que decidimos fazer.

Decidimos parar de sentir pena de nós mesmos e percebemos que só tínhamos aquela oportunidade de aproveitar todas as experiências que o mundo e a vida tinha a nos oferecer. Então, qual o ponto em não viver tudo isso afinal?


Sempre fomos uma pessoa realista, curiosa e que exige respostas, mas percebemos que nunca conseguiríamos uma para essa pergunta. Não uma que não deixasse dúvidas…

Passei a tentar olhar o copo meio cheio ao meio vazio. A mudança de perspectiva era pouco, mas a mudança de vida era gigante.


Quantos aos ataques? Algum tempo depois, conversando com um amigo ele nos contou que tinha sido diagnosticado com ataques de pânico. Ele começava a pensar na morte e então sua visão ficava panorâmica, seu coração batia forte e ficava difícil respirar. Estão, soubemos, e pudemos dar um nome a tudo aquilo que eu sentíamos.


Desde então aprendemos a lidar com os ataques e eles se tornaram raros. Eles ainda existem, mas decidimos que não deixaríamos isso tomar conta da nossa vida.


O “Porque?” se tornou “Porque não?”. O medo de morrer se tornou a certeza de que vamos morrer e que por isso devemos nos entregar a cada minuto. Nos tornamos mais fortes. E a vergonha de falar sobre isso se tornou um orgulho de tudo que passamos e o quão longe temos chegado.


Te confesso que a vida é linda daqui da frente e morro de medo do que o futuro aguarda, mas não vejo a hora de enfrentar o que vier…


Nossos problemas parecem pequenos demais perto da imensidão do mundo. Afinal, o pior já passou…


Com carinho,

           Anthony Serra!


- Anthony Serra