Querido eu,
Nós conseguimos. Você pode não achar nesse momento, mas somos mais fortes do que pensávamos ser.
Sei que vai discordar, mas eu me inspiro muito em você, quando as coisas parecem muito difíceis lembro que já passamos por coisas piores e sobrevivemos. Então, percebo que não há motivo para se preocupar.
Eu tenho tentado lembrar como tudo começou, mas minhas memórias dessa época são meio confusas, ou talvez eu só me force a não lembrar.
Talvez o pontapé inicial não tenha sido aí, mas acredito que as coisas tenham começado a piorar depois da morte do vovô.
Ainda lembro da mãe dizendo: “O vovô não vai mais voltar para casa, meu amor. Porque o coraçãozinho dele parou de bater”.
Acho que foi aí, aos 8 anos, que a nossa visão inocente de mundo começou a se romper. A percepção da mortalidade é algo que muda tudo e ,no nosso caso, pode parecer destruir tudo…
A ideia de que não somos eternos nos dilacerou e um pânico se instalou em nós. Aquela verdadeira sensação de que não há para onde fugir, mesmo que você possa correr…
Logo, perderíamos as pessoas que amávamos e perderíamos a nós mesmos. Então, qual era o ponto em viver afinal?
Me lembro de chorar no banho, chorar escondida na escola, chorar em casa, e chorar caso a mãe dissesse que chegaria em 5 minutos e não chegasse. Será que ela tinha morrido no caminho?
Então o pânico recomeçava…
Logo, o choro se tornou algo a mais e no momento em que nos lembrávamos da finitude da vida, e parávamos para perceber que a visão daquele momento um dia acabaria, ficava mais difícil respirar enquanto a visão ia se tornando panorâmica.
E não sei como, mas se passaram 2 anos sem que as pessoas soubessem a profundidade daqueles sentimentos.
Lembro do dia que tudo mudou.
Estávamos exaustos, cansados de viver daquela forma. O pânico consumia toda a nossa energia.
Estávamos a caminho da escola, a mãe estava nos levando, e aquele nó na garganta simplesmente explodiu. Contamos tudo e choramos até não poder mais.
Minha próxima memória é em um consultório médico. A doutora me perguntando se eu escutava vozes, e eu achando que a maluca era ela.
Ela me explicou :“tem uma pecinha do seu cérebro que não está funcionando direito. Quando você brinca ele volta a funcionar e você não sente medo, mas quando para, o medo volta”.
Então pensamos, se a solução é brincar, então porque não podemos ser simplesmente crianças normais e só nos preocupar em brincar? Porque temos que nos preocupar com o que acontece depois da morte?
Não queríamos nos sentir daquela maneira, mas o que poderíamos fazer? Não tinha como evitar!
Começamos a tomar remédios e fazer terapia. Mas a mãe não achou que era saudável para uma criança de 10 anos achar que precisava de remédio para se sentir melhor. No começo as coisas melhoraram, mas não demorou muito para que voltássemos a nos sentir da mesma forma…
Nos sentíamos esgotados. A terapia já não ajudava tanto. E nós queria dar um nome a aquele pânico que sentíamos. Queríamos tirar aquela sensação do peito. Queríamos parar de chorar. Queríamos aproveitar os almoços de domingo sem sentir que nossa cabeça estava em outro lugar.
As coisas chegaram no seu limite. Nós chegamos no nosso limite. Sentíamos que iríamos explodir.
Só queríamos que tudo aquilo acabasse…
Depois do terceiro ou quarto ano de morte do vovô, não lembro exatamente, foi quando começamos a ver a luz no fim do túnel.
Mudamos de terapeuta e ela disse algo que mudou toda a visão da morte que vínhamos construindo naqueles longos e exaustivos 4 anos.
“Você pode passar por todos os terapeutas que existem, pode pedir para eles que te digam o que existe depois da morte. O que acontece Anthony, é que ninguém vai poder te dar uma resposta, porque ninguém sabe”.
Caímos na real. Poderíamos passar 80 anos da nossa vida pensando sobre nossa morte, um milésimo de segundo diante da imensidão de uma vida inteira. Ou poderíamos viver nossa vida e nos preocupar quando o dia chegasse, e foi o que decidimos fazer.
Decidimos parar de sentir pena de nós mesmos e percebemos que só tínhamos aquela oportunidade de aproveitar todas as experiências que o mundo e a vida tinha a nos oferecer. Então, qual o ponto em não viver tudo isso afinal?
Sempre fomos uma pessoa realista, curiosa e que exige respostas, mas percebemos que nunca conseguiríamos uma para essa pergunta. Não uma que não deixasse dúvidas…
Passei a tentar olhar o copo meio cheio ao meio vazio. A mudança de perspectiva era pouco, mas a mudança de vida era gigante.
Quantos aos ataques? Algum tempo depois, conversando com um amigo ele nos contou que tinha sido diagnosticado com ataques de pânico. Ele começava a pensar na morte e então sua visão ficava panorâmica, seu coração batia forte e ficava difícil respirar. Estão, soubemos, e pudemos dar um nome a tudo aquilo que eu sentíamos.
Desde então aprendemos a lidar com os ataques e eles se tornaram raros. Eles ainda existem, mas decidimos que não deixaríamos isso tomar conta da nossa vida.
O “Porque?” se tornou “Porque não?”. O medo de morrer se tornou a certeza de que vamos morrer e que por isso devemos nos entregar a cada minuto. Nos tornamos mais fortes. E a vergonha de falar sobre isso se tornou um orgulho de tudo que passamos e o quão longe temos chegado.
Te confesso que a vida é linda daqui da frente e morro de medo do que o futuro aguarda, mas não vejo a hora de enfrentar o que vier…
Nossos problemas parecem pequenos demais perto da imensidão do mundo. Afinal, o pior já passou…
Com carinho,
Anthony Serra!
- Anthony Serra