quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Plath

 “Se ela fizer isso de novo é direto para a ala psiquiátrica”. Essa foi a primeira coisa que ouvi naquele dia, depois de acordar em um sala toda branca com luzes fortes. Nesse dia pensei em Sylvia e sobre como não queria mais viver sendo lentamente cozida em uma redoma de vidro, sobre como existiam diversos figos que eu nunca poderia comer, sobre a vida que eu mesma criei pra mim. Traumas são presentes na vida de qualquer pessoa, mas nunca soube lidar com os meus não soube lidar com o fato de crescer com uma mãe doente e um pai exigente. Via os dois presos sob suas próprias redomas, vi os figos de minha mãe apodrecerem enquanto ela cuidava de mim e nunca pude evitar de me sentir culpada por deixar isso acontecer. Já os do meu pai, assim como os meus, foram desperdiçados, poderiam ter sido usados, mas graças aos nossos problemas nunca nos achamos dignos deles, então apenas deixávamos que eles caíssem diante de nós.

Minha figueira passou anos escondida atrás das outras, vivi uma vida para agradar e ajudar as outras pessoas a colherem seus figos e saírem de suas redomas, mas nunca sai da minha. O constante medo de decepcionar não deixou, se eu saísse daquele cozimento eu poderia começar a tirar notas baixas e decepcionar meu pai, minha mãe poderia me odiar ainda mais e despejar mais de seus problemas em mim, eu estaria exposta a desaprovação das outras pessoas. Então comecei a me fechar, minha redoma já não me incomodava mais e lá eu estaria segura dos julgamentos. Mas um dia o ar começou a queimar as narinas e a sufocar, não conseguia mais ficar lá dentro, criei um ambiente hostil para mim mesma e não tinha como sair de lá. A solução mais plausível era, talvez, respirar o ar que saia do forno e assim como Sylvia me cozinhar, porém não mais no sentido figurado.


- Carrie Grant

 

 Confesso que tenho dificuldade de entender a morte, em principal, a sua. 

A sensação que tenho é de que você saiu e já vai voltar, portanto, costumo não me preocupar ou pensar sobre a demora. 

 

E de quem é a culpa? 

Sua? 

De suas escolhas?

Ou de um “Presidente” incapaz de lidar com a realidade e seriedade de uma doença? 

 

As vezes sinto seu cheiro, uma mistura de cigarro com velhice.

Suas “bugigangas” ainda estão espalhadas pela casa e fazem parte da nossa vida.  

Você ainda é mencionado nas conversas de família como personagem de alguma história. 

 

Reafirmo, com alguns exemplos simples, minha dificuldade de entender sua partida repentina, uma vez que involuntariamente você continua aqui.


- Aurora Boreal

O aprender sem você.

É mãe, foi muito difícil quando o lhe perdi. Entretanto eu sei que a senhora sempre irá me acompanhar, até mesmo nos pequenos detalhes que a vida nos proporciona a conhecer e enfrentar. Já fazem 12 anos de sua partida, tenho certeza que mesmo eu tão pequena entendia sua perda e o que ela significaria dali pra frente. Obviamente o início sempre é mais dolorido, mas a senhora deixou fortes companheiras que me acolheram nesse momento árduo e triste. Você sempre contou com a sua melhor amiga…, ela estava contigo até os últimos dias e a senhora a fez prometer que cuidaria de mim independente de qualquer coisa. Assim ela fez, e se tornou a mãe que eu não tinha mais aqui neste plano, e me apoiou em todas as minhas decisões, sempre lembrando a mim: Sua mãe gostaria de ver você fazendo isso ou aquilo. Hoje eu lembro da senhora assim como lembrava em 2011, uma heroína que planejou toda minha caminhada. Até mesmo se esta caminhada fosse sem a senhora, eu te amo eternamente mãe.


- Zulema Hernandez

carta para ninguém

 

olho-me no espelho. não acho que eu reconheça qualquer coisa que vejo. vejo fraturas de muitos amores.

pedaços de mim que se foram com outras pessoas, deixando aqui apenas um amontoado

de coisas.

um amontoado de sentimentos sem sentido que eu não consigo compreender, me

deixando preso, preso naquele mesmo estado de espírito o qual eu sempre temi: o nada.

tantas coisas juntas acabam virando o nada, assim como todas as cores viram o branco.

eu tenho tanto que a imensidão vira o vazio, ausência.

vejo teu sorriso em todos os cantos do meu quarto. teus olhos? eles aparecem para mim

no escuro. 

se eu fechar os olhos ainda posso sentir a maciez de sua derme ao meu lado, segurando

a minha mão, naquelas nossas noites de insônia. mas eu odeio fazer isso.

odeio. 

quando eu abro os olhos você não está aqui.

e tudo o que eu queria mesmo era a sua presença.

mas só me restou a saudade.

ao menos tenho diversas memórias boas para me divertir enquanto penso em ti.

sinto falta do que poderíamos ter tido, assim como sinto falta do que tivemos.

e pensando em ti, esqueço de mim. esqueço de quem sou, quem fui e que algum dia

poderei ser algo a mais.

mas por agora está tudo bem. 

esquecer de ti seria esquecer um pouco de mim também.

e enquanto essa dor ecoar em meu peito, sei que meu coração ainda será teu por inteiro.


- Coraline Blues

Véspera de feriado

O número 6 é assombrado. Não porque dizem por aí que ele pode ser demoníaco ou por

seu significado na numerologia, mas porque, coincidentemente, há 6 anos atrás ele se

tornou o dia mais dolorido do meu calendário.

Quarta feira, 6 de setembro de 2017.Lembro perfeitamente de cada detalhe. Véspera do

feriado da Independência. Terminando de me arrumar para viajar, meus pais entraram no

meu quarto pra me alertar sobre os cuidados que deveria tomar na viagem, mas foram

interrompidos por uma ligação da minha melhor amiga. Nós deveríamos estar no curso de

inglês que fazíamos juntas. Não fui por causa da viagem, não daria tempo. “Por que ela

também não foi? O que será que aconteceu?”, pensei. Atendi na mesma hora. “Eu não

tenho mais mãe”, foi a resposta que ela me deu. Oi? Como assim? Devo ter entendido

errado. “A minha mãe morreu. Ela se matou”. Foram essas as palavras que amaldiçoaram

os dias 6 pra sempre.

Tínhamos 12 anos, nossas preocupações eram que caneta usar pra anotar uma matéria

qualquer de Ciências ou Matemática no caderno e qual tênis usar pra ir combinando na

festinha do final de semana. De um dia pro outro se tornaram como seria pra ela terminar a

escola, já que seu pai morava na Barra e sua mãe era sua única familiar em Niterói.

Praticamente adotada pela minha família, moramos juntas por 4 meses e nossa relação se

tornou uma irmandade. A dor da perda da sua mãe era minha dor também. Seu luto

também era o meu. Vê-la sofrer e não poder fazer nada era o pior castigo que eu poderia

receber. Chorávamos juntas, sofríamos juntas, tudo que doía nela, doía em mim, quase que

por telepatia. Mas o tempo foi passando, no final do ano letivo ela foi morar com pai e eu

agora tinha uma irmã à distância.

A gente sabe que, apesar da Ponte Rio-Niteroi entre nós e dos rumos na vida totalmente

diferentes, o coração dela sempre teria o meu pra acolhê-lo quando a lembrança do trauma

viesse à tona. E não há nenhuma distância capaz de impedir que a gente esteja perto todo

dia 6 de setembro pra se proteger da solidão específica que esse dia causou nas nossas vidas.


- Juno Lino

Paixão que dói

Caro Jonas,

Naquele ano, você se aproximou de mim tão rápido quanto um raio tocando o chão, aquelas

brincadeiras bobas e seus sorrisos maliciosos pelos corredores da escola eram um prato

cheio pra eu me entregar sem pensar, minha cabeça se perguntava o que estava

acontecendo e meu coração só queria ser seu.

A cada dia, eu só estava mais confuso e apreensivo, “mas ele namora, por que está

brincando comigo”. Fiquei mais e mais obcecado, pensava em você em meus braços 24

horas por dia, entre sonhos e desejos.

Até que o dia chegou, você descobriu meu amor, não te deixei em paz e o inevitável

ocorreu: você surtou. Me disse coisas que eu precisava ouvir e outras que me machucaram,

algumas palavras foram como facas, outras como afagos. Isso só me deixou mais preso a

você, como o planeta Terra orbita o Sol.

Mas a tempestade se dissipou aos poucos, fui entendendo que aquele mundo de sonhos

não se passava de uma realidade dura e fria e finalmente entendi o que tinha acontecido:

que minha obsessão e paixão por você, resumidas a uma atração, eram algo que eu não

tinha vivenciado ainda.

Tendo passado esses anos, compreendi que precisava passar por isso para me formar

como o ser que sou hoje: muito mais resiliente e confiante, sem me jogar de cabeça no mar da incerteza.


- Gabriel Capistrano

Uma carta para o Anthony do passado

 Querido eu,

Nós conseguimos. Você pode não achar nesse momento, mas somos mais fortes do que pensávamos ser.

Sei que vai discordar, mas eu me inspiro muito em você, quando as coisas parecem muito difíceis lembro que já passamos por coisas piores e sobrevivemos. Então, percebo que não há motivo para se preocupar.


Eu tenho tentado lembrar como tudo começou, mas minhas memórias dessa época são meio confusas, ou talvez eu só me force a não lembrar.


Talvez o pontapé inicial não tenha sido aí, mas acredito que as coisas tenham começado a piorar depois da morte do vovô.

Ainda lembro da mãe dizendo: “O vovô não vai mais voltar para casa, meu amor. Porque o coraçãozinho dele parou de bater”.


Acho que foi aí, aos 8 anos, que a nossa visão inocente de mundo começou a se romper. A percepção da mortalidade é algo que muda tudo e ,no nosso caso, pode parecer destruir tudo… 


A ideia de que não somos eternos nos dilacerou e um pânico se instalou em nós. Aquela verdadeira sensação de que não há para onde fugir, mesmo que você possa correr…

Logo, perderíamos as pessoas que amávamos e perderíamos a nós mesmos. Então, qual era o ponto em viver afinal?


Me lembro de chorar no banho, chorar escondida na escola, chorar em casa, e chorar caso a mãe dissesse que chegaria em 5 minutos e não chegasse. Será que ela tinha morrido no caminho?

Então o pânico recomeçava…


Logo, o choro se tornou algo a mais e no momento em que nos lembrávamos da finitude da vida, e parávamos para perceber que a visão daquele momento um dia acabaria, ficava mais difícil respirar enquanto a visão ia se tornando panorâmica.


E não sei como, mas se passaram 2 anos sem que as pessoas soubessem a profundidade daqueles sentimentos.

Lembro do dia que tudo mudou.

Estávamos exaustos, cansados de viver daquela forma. O pânico consumia toda a nossa energia.

Estávamos a caminho da escola, a mãe estava nos levando, e aquele nó na garganta simplesmente explodiu. Contamos tudo e choramos até não poder mais.


Minha próxima memória é em um consultório médico. A doutora me perguntando se eu escutava vozes, e eu achando que a maluca era ela.

Ela me explicou :“tem uma pecinha do seu cérebro que não está funcionando direito. Quando você brinca ele volta a funcionar e você não sente medo, mas quando para, o medo volta”.

Então pensamos, se a solução é brincar, então porque não podemos ser simplesmente crianças normais e só nos preocupar em brincar? Porque temos que nos preocupar com o que acontece depois da morte?

Não queríamos nos sentir daquela maneira, mas o que poderíamos fazer? Não tinha como evitar!


Começamos a tomar remédios e fazer terapia. Mas a mãe não achou que era saudável para uma criança de 10 anos achar que precisava de remédio para se sentir melhor. No começo as coisas melhoraram, mas não demorou muito para que voltássemos a nos sentir da mesma forma…


Nos sentíamos esgotados. A terapia já não ajudava tanto. E nós queria dar um nome a aquele pânico que sentíamos. Queríamos tirar aquela sensação do peito. Queríamos parar de chorar. Queríamos aproveitar os almoços de domingo sem sentir que nossa cabeça estava em outro lugar.

As coisas chegaram no seu limite. Nós chegamos no nosso limite. Sentíamos que iríamos explodir. 


Só queríamos que tudo aquilo acabasse…



Depois do terceiro ou quarto ano de morte do vovô, não lembro exatamente, foi quando começamos a ver a luz no fim do túnel.

Mudamos de terapeuta e ela disse algo que mudou toda a visão da morte que vínhamos construindo naqueles longos e exaustivos 4 anos. 


“Você pode passar por todos os terapeutas que existem, pode pedir para eles que te digam o que existe depois da morte. O que acontece Anthony, é que ninguém vai poder te dar uma resposta, porque ninguém sabe”.


Caímos na real. Poderíamos passar 80 anos da nossa vida pensando sobre nossa morte, um milésimo de segundo diante da imensidão de uma vida inteira. Ou poderíamos viver nossa vida e nos preocupar quando o dia chegasse, e foi o que decidimos fazer.

Decidimos parar de sentir pena de nós mesmos e percebemos que só tínhamos aquela oportunidade de aproveitar todas as experiências que o mundo e a vida tinha a nos oferecer. Então, qual o ponto em não viver tudo isso afinal?


Sempre fomos uma pessoa realista, curiosa e que exige respostas, mas percebemos que nunca conseguiríamos uma para essa pergunta. Não uma que não deixasse dúvidas…

Passei a tentar olhar o copo meio cheio ao meio vazio. A mudança de perspectiva era pouco, mas a mudança de vida era gigante.


Quantos aos ataques? Algum tempo depois, conversando com um amigo ele nos contou que tinha sido diagnosticado com ataques de pânico. Ele começava a pensar na morte e então sua visão ficava panorâmica, seu coração batia forte e ficava difícil respirar. Estão, soubemos, e pudemos dar um nome a tudo aquilo que eu sentíamos.


Desde então aprendemos a lidar com os ataques e eles se tornaram raros. Eles ainda existem, mas decidimos que não deixaríamos isso tomar conta da nossa vida.


O “Porque?” se tornou “Porque não?”. O medo de morrer se tornou a certeza de que vamos morrer e que por isso devemos nos entregar a cada minuto. Nos tornamos mais fortes. E a vergonha de falar sobre isso se tornou um orgulho de tudo que passamos e o quão longe temos chegado.


Te confesso que a vida é linda daqui da frente e morro de medo do que o futuro aguarda, mas não vejo a hora de enfrentar o que vier…


Nossos problemas parecem pequenos demais perto da imensidão do mundo. Afinal, o pior já passou…


Com carinho,

           Anthony Serra!


- Anthony Serra