quarta-feira, 25 de maio de 2016

FÁCIL COMO UM FILME


     São 17h de uma tarde chuvosa de outono. Me encontro naquela inércia de final de filme. Começo a me questionar, quem sabe pela octogésima terceira vez, sobre o porquê eu gosto tanto de comédias românticas, com o mesmo enredo tipicamente idiota e o desfecho facilmente previsível. Se eu fosse assim, bem menininha, faria mais sentido, porém, esse não é o caso. Acho que o que eu queria era que as coisas fossem simples como num filme hollywoodiano. 
     Como um rio em busca de um mar, meus pensamentos sempre acabam de alguma forma desaguando em você. Então percebo que você não tem nada dos filmes que vejo na Netflix. Incerteza é seu sobrenome. E pego a pensar como é intrigante o fato de parecermos um casal. Conversamos com a frequência de um casal, confiamos um no outro como um casal, até discutimos como um casal. Em tese, deveríamos ser um casal, mas não somos. 
     Se nós fossemos um casal, eu poderia ir a sua casa e assistiríamos juntos uma das muitas séries que você fez despertar a minha curiosidade. 
     Se nós fossemos um casal, poderia dizer para minha mãe que chego tarde no domingo porque fico horas conversando com você.
     Se nós fossemos um casal, você poderia encostar na minha perna por mais de 3 segundos, sem que ficasse desconfortável.
     Se nós fossemos um casal, faria sentido eu me sentir mal por achar alguém interessante.
     Se nós fossemos um casal, eu não precisaria esconder o meu ciúme, e me torturar ao guardar isso só pra mim.
     Se nós fossemos um casal, eu poderia te dizer que escutei tal música e lembrei de você. 
     Se nós fossemos um casal, eu poderia tirar foto com você sempre que quisesse.
     Se nós fossemos um casal, eu ia poder brincar com o seu óculos sem que parecesse estranho. 
     Se nós fossemos um casal, eu ia fingir que me irrito quando você bagunçasse meu cabelo. 
     Se nós fossemos um casal, eu ia te convencer que assistir filme no cinema tem uma magia diferente.
     Se nós fossemos um casal, eu poderia te abraçar incontáveis vezes, não só na despedida.
     Se nós fossemos um casal, eu poderia te dizer que sei quando você está chegando, pois sinto seu perfume de longe.
     Se nós fossemos um casal, eu poderia te contar que sonhei com você.
     Mas nada disso pode acontecer. 
     Vai fazer um ano, sabia? Eu só não sei bem de quê, porque a gente não é um casal, mas também não somos amigos. Não ficamos à vontade como amigos, não brincamos como amigos, nem sequer nos cumprimentamos como amigos. Então, por todos os deuses gregos,que diabos nós somos?! 
     Gostaria de poder me livrar disso que me prende a você. Mas é que você é o tipo de pessoa que vicia,entende? Com isso, comprovo que por trás das câmeras, fácil mesmo seria ser fria como pedra. Mas aí eu lembro da primeira vez que seu sorriso despertou algo em mim. Não dá, não consigo. Você tem uma coisa que me deixa sem equilíbrio. Você é um desafio,

Maleficient000

terça-feira, 24 de maio de 2016

Aquilo que une

Ela gosta de rock

Ele gosta de pagode

Ela gosta de dancar

Ele gosta de olhar

 

Ela odeia calmaria

Ele odeia agitação

Ela odeia julgamento

Ele odeia hesitação

 

Ela gosta de vôlei

Ele, de futebol

Ela gosta de pintar

Ele, de desenhar

 

Ela odeia o Vasco

Ele odeia o Flamengo

Ela odeia Matemática

Ele odeia Português

 

Ela gosta de ler

Ele gosta de escrever

Ela gosta de humor

Ele gosta de terror

 

Ela odeia brincadeira

Ele, seriedade

Ela odeia o campo

Ele, a cidade

 

 

Ela gosta de doce

Ele gosta de salgado

Ela gosta de curtir

Ele gosta de dormir

 

Ela gosta dele

Ele gosta dela

Amor não é semelhança

Amor é aliança

 

Severo P.

Diário de um detento

Rio de Janeiro, dia 3 de maio de 2016, 8h da manhã. Aqui estou, mais um dia. Sob o olhar sanguinário do vigia. Mas esse vigia não usa farda, nem arma (quer dizer, arma até tem, mas não é um revólver, e sim um controle remoto). “Já estava acordada tão cedo?” – pensei. Vesti meu paletó, tomei o último gole do café. Era mais um dia rotineiro em minha vida, em nossas vidas e nem um “Bom dia” recebo, nem um abraço ou um beijo na bochecha. Não vem de hoje tamanha frieza, qual a última vez que andamos de mãos dadas por aí? Quando foi a última vez que saímos pra jantar fora? Ou que comemoramos aquele simples “mêsversário”, que ela fazia questão de lembrar a data? Sinto-me encarcerado, mas não tem jaulas aqui, apenas um “até que a morte nos separe” ditos a 30 pessoas numa simples capela que me prende, esse contrato vitalício do qual me arrependo de assinar. Bom, tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá... Tanto faz, os dias aqui são todos iguais.  
Chego a casa, o mesmo olhar distante, sem me encarar, olhando para o nada. Nem precisamos trocar três palavras para perceber que está tudo errado entre nós. Ela sabe o que eu desejo, sabe o que eu penso. Um não suporta mais a cara do outro, o outro não quer mais sentar ao lado de um, nem sequer respirar o mesmo oxigênio. O dia tá chuvoso, o clima tá tenso, o yin dela não mais coordenava com meu yang, não dá mais. Eu quero mudar, eu quero sair, não aguento mais esse silêncio ensurdecedor. Ah sei lá, não sei mais o que pensar. Acendo um cigarro, vejo a noite passar. Mato o tempo para ele não me matar. 
Um novo dia, mas o resto sempre igual.  Quer dizer, nem tudo, por que hoje é meu aniversário, mais um outono de vida, será que ela vai ao menos dar os parabéns? É, vou ter que saber pelo jeito mais difícil, vou perguntá-la. “Lívia, minha querida, sabe que dia é hoje?” – perguntei. Ela me olhou com toda a certeza do mundo e retrucou: “Claro né, hoje é o dia que vence a conta do banco, seu imbecil”. Peguei minhas coisas e fui direto ao trabalho, nem tomei o meu café sagrado de todo dia, fiquei com tanta raiva com aquela cena que esqueci totalmente de mim. Além de todo aquele clima frio como a Cordilheira dos Andes, ainda ousa esquecer o dia do meu aniversário? Ah, é hoje que essa história acaba de uma vez por todas, essa pena em cárcere privado acabará neste 4 de maio, sem volta. Assim que chegar em casa, falarei com ela, não aguento mais essa pressão em meus ombros, tantas brigas, tantos dias sem amor, um casamento não pode ser uma prisão, estou me sentindo preso nessa vida. Deixa pra lá, isso só vou resolver em casa, encararei mais essa jornada de trabalho até resolver esse dilema.  
Mais um dia de trabalho terminado, despachei todos os processos que tinha, preenchi todos os fichários, é hora de ir. A decisão mais difícil em minha vida, mas inadiável, vou acabar com ela e ir embora daquela casa no mesmo dia, estava decidido. Entrei com o carro na garagem, abri a porta, tudo escuro. Acendo o interruptor para poder assistir um pouco de TV, mas assim que a luz se acende, vejo a imagem da minha mãe, meus irmãos, sobrinhos, primos, todos estavam lá cantando “Parabéns pra você”. Impossível não desmoronar de alegria e cair no choro, lá ao fundo está ela segurando o bolo repleto de velas – 32, pra ser mais exato. “Achou que eu ia esquecer, bobinho?” – respondeu me dando um beijo. Tão simples, mas o mais singelo beijo de todos, acho que posso ficar detido. Quem sabe por mais um ano, três meses e uns dias?! 
Dia 4 de maio, diário de um detento

Régis Júnior

Bodas de Papel

A porta do quarto ao lado é fechada com força. O grito de madeira batendo contra madeira te sobressalta e um suspiro pesado cai de seus lábios - lá vamos nós mais uma vez. Logo em seguida, berros começam a soar e você prontamente se lembra do quanto odeia esse apartamento com paredes finas como papel, incapazes de abafar as discussões deles, os problemas deles, as angústias deles.

Você vê A Sombra espreitando a entrada do seu quarto, à espera do seu convite para adentrar. Porém não, não haverá convite algum, pois você não a quer aqui dentro. Você sabe muito bem as emoções desagradáveis que ela causa em você (aquela sensação de inutilidade, de lixo humano, que te provoca calafrios porque você teme que haja um fundo de verdade nisso), portanto você a expulsa - este é meuquarto, meu território; aqui você não pode. Mas quantas vezes você já lutou contra ela? Várias. E quantas vezes você venceu essa luta? Nenhuma.

Assim, mesmo sem convite, A Sombra indesejada avança solenemente sobre o cômodo, e tudo o que você pode fazer é observar o abismo que se estende ao longo do seu quarto; suas margens nebulosas aproximando-se cada vez mais da cama sobre a qual você está. Suas mãos tremem de medo pelo que está por vir e você nem se dá ao trabalho de esconder seu receio - afinal, A Sombra é capaz de farejar sua covardia feito um cão treinado.

Quando a colcha de sua cama começa a ser tingida por uma profunda escuridão, você sabe que é game over, you lose. A Sombra sente sua resignação e estende uma mão trêmula e negra que cobre seu rosto, obscurecendo seus olhos e roubando sua visão.

E então você está completamente à deriva num mar tenebroso e sombrio.

Não podendo mais fazer uso de seus olhos, tudo o que resta a você é ouvir seu próprio batimento cardíaco; um pulso frenético sob sua pele porque você sabe, por experiência própria, que estar à mercê dA Sombra é muito mais do que entrar em um mero estado letárgico - está vindo, eu sei que está.

E vem.

Berros de gelar a espinha entram em cena. O agudo contra seus ouvidos é similar a unhas arranhando um quadro negro; os pelos de seus braços arrepiam-se e pálpebras instintivamente se fecham sobre seus olhos inúteis em resposta às agulhas sendo encravadas em seus tímpanos. Mas esse torpor não é o pior - o problema é quando ele se esvanece pouco a pouco, e você é finalmente capaz de entender as palavras gritadas.

Será que dá pra você me ouvir por um instante, por favor? Assim não dá mais! Estou cansada disso, eu vou embora! Qual é a sua incapacidade de me ajudar? Isso daqui é mais do que apenas pagar as contas; tem que me ajudar também. Tem que me entender.

A hipnose dA Sombra é quebrada assim que sua mãe entra em seu quarto. Ela dá passos decididos em sua direção, dá um beijo sobre sua testa (tão terno, tão diferente de seus gritos anteriores) e diz que dará uma volta, mas ela volta logo, tudo bem? Você diz que sim, sem problemas, mãe, apesar de seu coração estar inchando e sufocando seu peito porque você vê de relance, encostada na porta do seu quarto, uma mala de viagem. Ela não voltará.

A porta de casa é fechada com cuidado quando sua mãe vai embora, e você detesta esse apartamento com paredes de papel, incapazes de abafar o choro do seu pai no quarto ao lado.


Cora

Só em conto de fadas

             Era uma vez, em um lugar tão tão distante, o Reino de Bangu. Neste local, conhecido por suas baixas temperaturas, morava uma princesa chamada Suzane von Richthofen.

      A história da moça não é muito diferente das outras princesas. Passou anos procurando pelo príncipe encantado. Até que um dia encontrou o amor verdadeiro. Bem, não era um príncipe, mas sem dúvida nasceram um para o outro.

      O nome do homem era Fernandinho Beira-Mar. Apesar de não ser membro da nobreza local, era conhecido por todos. Era guarda de trânsito, um dos cabeças do TRÁFEGO do reino onde nasceu. Além disso, era líder de uma das organizações mais importantes da região, conhecida como C.V(Coma Vegetais!), responsável por incentivar as crianças e adolescentes a se alimentarem melhor.

      Enfim, depois desta pequena grande apresentação dos nossos personagens, vamos à historia que realmente importa. Após se conhecerem, Suzane e Fernandinho decidiram morar juntos. A princesa foi quem mais sofreu com a decisão, visto que ainda morava com os pais e amava-lhes incondicionalmente. Contudo, foi convencida por seu novo marido, que propôs que eles se estabelecessem no reino de origem da moça.

      Não era uma mansão nem um castelo de conto de fadas, mas aos poucos iam se acostumando com o novo lar. Meses depois tiveram o primeiro filho. Chamava-se Rafael Ilha e era uma criança agitava além de muito PILHADA.

      Nessa vida nova, Suzane e Fernandinho acabaram abandonando as funções de princesa e guarda de trânsito, respectivamente, que possuíam anteriormente. Ela saía cedo para trabalhar e só voltava à noite. Havia se formado em direito e começou a trabalhar como advogada. Tornou-se a provedora da família. Já o rapaz se tornou dono de casa. Cozinhava, limpava os móveis, passava a roupa... Enfim, essas tarefas típicas de homem. Já o pequeno Rafael ia aprendendo com o pai sobre os afazeres domésticos.

      Essa foi uma história como qualquer outra. Porém, agora você pode perguntar: E como estão os nossos personagens nos dias de hoje? Rafael Ilha deixou para trás o vício/amor pelo ofício de dono de casa e se tornou repórter de um programa na televisão. Já Suzane von Richthofen e Fernandinho Beira-Mar continuam presos – de amor um pelo outro. Talvez alguém que tenha lido possa até ter pensado em alguém ou em algo que tenha acontecido nos últimos tempos. Todavia, lembre-se que esse é apenas um conto e que qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência. Por último, não pode faltar aquela clássica frase de final de história: “E viveram felizes para sempre ”.

                                                                                                                                                                    FIM


Júnior West

Enquanto eu tinha você

Desde jovem sempre zelei pela minha independência, pelo desapego. Gostava da sensação de ser livre, da minha individualidade, de não estar preso a nada, mas você apareceu e eu não estava pronto para isso. 

No começo tudo era leve, sem cobranças, sem defeitos. Logo depois, as coisas foram ficando mais sérias e eu estava incerto sobre o rumo que nós íamos levar. Eu sempre fui muito pé no chão e muito durão com meus sentimentos, não planejava o futuro nem nada do tipo. Você se entregou e se dedicou muito mais a nós do que eu o fiz. Com o tempo isso foi ficando bem claro. Era sempre você quem me ligava, quem me lembrava do nosso aniversário de namoro, dos nossos problemas, do nosso apartamento, enquanto eu estava estressado com a minha rotina, com os meus projetos, os meus problemas e a minha vida.

Acho que no fundo nunca acreditei que você fosse realmente se cansar, eu estava muito seguro sobre os seus sentimentos, pensava que sua cobrança de rotina era só da boca para fora, mas minha prepotência me impedira de ver que a cada dia você já estava mais longe de mim.

Até que você foi embora de repente, aquela foi a nossa última briga, foi quando eu vi você sair por aquela porta sem dizer mais nada. Eu me senti tão impotente e inseguro em perceber pelo seu rosto que era tarde demais, você já não era mais a mesma, e nesse dia eu tive medo do que aconteceria dali para frente, sem saber ao certo como parar esse sentimento.

Os primeiros meses foram os piores. Essa foi a forma mais dolorosa de perceber que não ter você era muito mais do que eu estava preparado. Tentei preencher minha solidão das formas mais estúpidas, mas sabia que nada seria igual. Fiquei por horas buscando coragem em frente ao telefone para dizer que me arrependi, te pedir para voltar e dizer que eu não estava bem sozinho. Queria ouvir sua voz calma, como antigamente, me dizendo que no final tudo ia acabar bem, queira chegar a noite e desabafar todo o meu dia, queria te ver de manhã reclamando por acordar cedo, quis seus beijos, seu carinho, mas eu não tinha nada além do meu orgulho. No fundo, eu já sabia que tinha esgotado todas as minhas chances e que deveria ter te amado da mesma forma como você se entregou a mim, mas tudo o que fiz foi colocar meus problemas e meus desejos efêmeros acima de tudo. De forma tão egoísta e imatura, transformei todo esse amor em mágoas.

Sinto, depois de tudo, que aquela era a chance que eu tinha recebido da vida para encontrar a minha felicidade e eu simplesmente a recusei. Não sei como está sua vida agora, mas algumas coisas ainda são as mesmas por aqui. Eu continuo caindo no sono no sofá da sala de frente para o laptop quase toda a noite, e ainda não me desfiz daquela camisa que você odeia. Só que agora está tudo estranho, me sinto perdido, é como se você ainda estivesse aqui, reclamando das minhas manias e esse vazio me machuca às vezes. Por quanto tempo eu vivi sem saber que era você quem sempre esteve ali, buscando o melhor de mim, no meio de toda essa bagunça que me define?

Hoje estou aqui, sozinho, pensando nas coisas que eu poderia ser com você e em tudo que eu poderia mudar, mas eu só me pergunto por que eu escolhi todos esses meus erros enquanto eu tinha você?


Lemos, Dante.

Falei pro meu terapeuta de você

As páginas brancas e frias do papel não me tranquilizavam mais. Nem meus amigos, ouvintes carinhosos, queriam saber da minha vida monótona. Foi quando tomei uma decisão que nunca esperei tomar: decidi falar pro meu terapeuta de você.

Espero que não entenda errado, a questão nunca foi se seu nome valia ou não a pena ser citado. Sempre soube que valia. E minha resistência de mencioná-lo vinha exatamente disso: a partir do momento em que falasse de você, era um caminho sem volta. Minha sessão, tão rara e cara, seria sobre um tema só. 

E eu tenho outros problemas. Problemas sérios. Estou desanimada com o trabalho, minha série preferida foi cancelada e tenho quase certeza que meu cachorro não gosta mais de mim. Mas falar de você é tão melhor, tão mais fácil. Você é um problema e uma solução ao mesmo tempo.

Não me lembro da última vez que passei um dia inteiro sem pensar em você. Em coisas que aconteceram, coisas que gostaria que tivessem acontecido, coisas que espero que aconteçam. Quando uma pessoa entra na sua vida desse jeito e te faz questionar até as maiores certezas existentes, é natural que ela seja um tópico recorrente nas suas conversas. 

Mas justo eu, que sempre acreditei que o amor não deveria ser o foco principal na vida, tenho hoje você como uma das minhas maiores prioridades e fonte de felicidade. Tantos filmes, livros e músicas tentaram me alertar sobre isso, mas nunca dei ouvidos. Até porque a arte, na maioria das vezes, representa o relacionamento amoroso de maneira bem estereotipada. Ou é a melhor coisa do mundo ou vai destruir você. Gosto mais das artes que ficam no meio termo: estar com alguém vai ser, em alguns momentos, a coisa mais fácil e natural de todas. Em outros, a mais difícil. 

Não poderia ser de outro jeito.  Se às vezes eu não consigo lidar comigo mesma e minhas ansiedades, dúvidas e inseguranças, como seria tranquilo duplicar todos esses problemas e decidir, conscientemente, juntar sua vida com a de alguém que também tem todas essas ansiedades, dúvidas e inseguranças? Olhando do ponto de vista prático parece uma escolha bem ruim. A questão é que o ser humano não é só razão. Ele é complicado, estranho e acha felicidade em coisas que aparentemente não fazem sentido. Porque vale a pena. E é isso que me faz te amar: você vale muito a pena. 

Quando percebo que a sessão já está quase acabando e a cabeça do meu terapeuta já se desviou para as compras desupermercado que ele faria mais tarde, encerro a conversa. Despeço-me e saio para rua, respirando o ar fresco, com uma pequena ponta de felicidade no peito. Porque eu sei que eu tenho você. 

Dias mais tarde, quando ligo para marcar o horário da próxima consulta, tomo outra decisão que nunca esperei tomar: decidi falar de novo pro meu terapeuta de você.


Helena Seixas

Nem tudo será perfeito. Nem todas as brigas serão simples como brigar pela toalha molhada esquecida sobre a cama.  Nem todas as discussões serão por uma foto curtida em uma rede social. Existirão momentos realmente difíceis em que pensaremos se realmente vale a pena continuar nisso, ou desistir de tudo. Momentos onde discutiremos, gritaremos, perderemos a razão e causaremos um grande silêncio na relação.  Serão após esses momentos, quando o orgulho já tiver tomado conta de nós, que sentiremos falta um do outro. E após alguns minutos de silêncio, vamos nos olhar com um semblante de arrependimento e enfim repousaremos nossos corpos um no outro. Haverá dias ensolarados para nós. Dias onde acordaremos de manhã cedo, prepararemos um café da manhã ao som de Jack Johnson e trocaremos beijos demorados celebrando mais um dia juntos. Iremos caminhar pela orla da Praia e depois prometo que terei paciência enquanto estiver sentada na areia olhando você surfar, e ainda que irei vibrar a cada tubo de backside completo.  Haverá dias em que iremos simplesmente preferir o “clichê” dos relacionamentos. Dias que preferiremos  ficar em casa juntos, aquecendo um ao outro enquanto assistimos algum filme. E não pense que por isso seremos o tipo de casal que vemos na televisão. Pois provavelmente vamos discutir por causa da pipoca, ou por causa da escolha do filme, já que com grande possibilidade escolherei um filme bem água com açúcar para nós dois.  E ao irmos em alguma livraria, eu lhe prometo que não irei fazer escândalos ao achar algum livro que estava procurando a tempos, ou quando encontrar livros novos de algum autor favorito. Durante a noite, iremos finalmente poder olhar o céu juntos, e lembraremos ainda de quantas noites passamos a quilômetros de distância separados, sonhando com esse momento. E ao deitarmos deixaremos que o silêncio fale por nós, estaremos com os rostos colados, sentindo o calor da respiração do outro e quando nos dermos conta teremos adormecido. Nos outros dias, imaginaremos como serão nossos filhos.  Iremos nos divertir tentando adivinhar com quem eles irão parecer, se terão o meu sorriso, ou se terão os seus olhos. Ainda iremos discutir ao criar uma lista de possíveis nomes, quando ouvirmos o outro dizer que os  futuros filhos terão o nome de algum personagem de livro, ou de algum surfista famoso.  Mas até isso tudo acontecer teremos muito tempo pela frente. Teremos muitas discussões, teremos muitas brigas, muitas reconciliações, muitas noites separados pela distância e muitas histórias para planejar. E tudo isso eu imaginava mentalmente enquanto escutava você me fazer o pedido. Enquanto esperava o momento em que te olhei nos olhos e lhe disse sim. Mas essa história é melhor deixar para contar em uma próxima carta, até porque você com certeza vai querer me ouvir contar muitas outras histórias sobre nós dois. 

 Maria Antonieta 

Três palavras, sete letras

Eu te amo.
Eu te amo.
Eu te amo.
Eu te amo tanto que sei que ninguém poderá te amar mais do que eu. Ninguém poderá te fazer feliz como eu te faço. Ninguém poderá cuidar de você como eu cuido. Ninguém.
Eu te amo tanto que me preocupo com o que vão pensar de você. Com essa roupa curta e  esse batom vermelho, você pode passar a imagem errada, meu amor. 
Eu te amo tanto que não quero que você beba. Você pode acabar fazendo besteira, se arrependendo e depois vai ficar choramingando no meu ouvido. Mas e eu? Eu posso, corpo de homem é preparado pra receber álcool.
Eu te amo tanto que não suporto a ideia de você se divertir sem mim. Afinal, amo tanto seu sorriso que quero presenciar todos eles.
Eu te amo tanto que não conseguiria viver sem você. Se você me deixar sozinho, eu simplesmente vou me jogar na frente de algum carro. Desculpa, mas é a única opção, meu amor.
Eu te amo tanto que não gosto de ver você com esses amigos. Eu confio em você, meu amor, é neles que não confio. Homem é um bicho ruim, que não sabe se controlar. É por isso que eu faço besteira de vez em quando... Você não entende porque é mulher.
Eu te amo tanto que não gosto de ver você com essas amigas. Eu confio em você, meu amor, é nelas que não confio. Todas soltas, abrem as pernas pra qualquer um. Podem ser uma péssima influência pra você.
Eu te amo tanto que meu corpo não aguenta ficar longe do seu. Desculpa se eu forço a barra pra transar de vez em quando, mas é que seu sexo é tão bom que vicia, meu amor.
Eu te amo tanto que quero que você confie em mim de olhos fechados. Quero que confie o suficiente pra me dar a senha do seu Facebook. Afinal, quem não deve, não teme.
Eu te amo tanto que não me aguento de saudades. Preciso que você arranje tempo pra mim antes da sua família, seus amigos, seu trabalho. Preciso que você durma comigo todos os dias. Preciso.
Eu te amo tanto, mas só te amo enquanto você for minha.
Só minha.

Lucy in The Shy

Dia cinza de março

Março nunca foi tão cinza. Era domingo, meu avô me levava para brincar na pracinha da cidade. Carregávamos minha bicicleta na mala. Não sabia o que estava prestes a acontecer. Na verdade, até hoje, 25 anos depois, não tenho recordações muito claras. Foi um impacto repentino, dizem. Não se sabe ao certo como aconteceu o acidente, mas os resultados foram terríveis; um dia que, apesar de frio, tinha tudo para ser proveitoso. Nosso carro bateu de frente com outro que vinha na mão contrária e, se não fosse por eu estar no banco de trás, corretamente preso – coisa que vovô sempre se preocupava  não sei se o fim teria sido pior. No outro veículo, uma menina com sua avó, traçavam outro caminho, até que algo mais forte cruzou nossas histórias. Paulo e Mariza, meu avô e a avó dela, respectivamente, não suportaram os ferimentos. Posso dizer que ter três anos naquele momento deve ter, de certo modo, me ajudado a lidar com a situação. O fato de eu não ter noção total do que aconteceu me impediu de enfrentar traumas maiores. Mesmo assim, me sinto pronto para contar sobre como a vida sempre arruma formas de nos surpreender.

Chamo-me Pedro. Mudei-me para Califórnia há quatro anos. Tenho 28 anos e trabalho em um hospital, pois sempre me senti apaixonado por medicina. Meu desejo de ver as pessoas bem sempre foi maior do que meu próprio bem estar. Salvar vidas é renovador para a alma e sei que não poderia estar fazendo diferente. Foi em um dia aparentemente “normal” também que encontrei a Luiza. Pra ser sincero, foi um segundo que olhei nos olhos dela, enquanto cruzávamos o corredor comprido por onde todos os médicos passam quase que involuntariamente ao longo do expediente. Algo aconteceu na hora que nossos olhos se encontraram. Eu não sei explicar.

Dias passaram, chegou o final de semana e eu tinhaaula de especialização para a carreira no sábado. Chegando lá, quando percebo, Luiza está sentada no meu lado. Sorrimos. Ali, o mundo pareceu parar para mim. Começamos a conversar e descobrimos tantas coisas em comum, que parecíamos nos conhecer anos. Ela também nascera no Brasil. Não na mesma cidade que a minha, mas mudou-se para lá ainda quando criança. Trocamos nossos telefones e nos despedimos com a sensação mais inexplicável possível passando por nossas cabeças. Seria coincidência? Só sei que às vezes a vida nos presenteia com pessoas que, à primeira vista, nos remetem um sentimento diferente, uma empatia comum. 

A partir de sábado, passamos a nos encontrar. Convidei-a para jantarmos no domingo e continuar o papo do dia anterior. Foi uma noite agradável e relaxante. Nossa afinidade só crescia e foi assim pelo resto dos meses, dos anos... Estamos juntos há fortes três destes. Agora a parte mais impressionante: conversávamos, no início, sobre nossas vidas no Brasil. Descobri que Luiza, similar a mim, perdeu sua avó em um acidente quandopequena. Descobri que Luiza estava no carro com ela.Descobri que foi em março, um dia feio... Frio. Descobri que o motorista do carro oposto também faleceu. Descobri que quem o acompanhava era eu. Descobri que o impacto dos carros fazia sentido com o impacto que senti ao olhar para ela sem a conhecer ainda. Descobri que nossa história se cruzou de novo, por motivos desconhecidos, e que Luiza me conhecia bem mais do que eu pensava. Descobri em Luiza, uma parte que nesses anos todos faltou em mim e sei que, agora, encontrei um lugar seguro para ser feliz.


Lia Mendes

"Ela é tão flor
que quando passa
tudo em volta
vira primavera.


Ele é tão luz
que quando chega
toda escuridão
clareia.


Num café da vida
Se encontraram
Namoraram
Casaram.


O amor deles é coisa
bonita de se ver
é um show 
de Caetano e Gil.


O amor deles é 
uma tarde de outono
no Arpoador
vendo o sol se pôr.


O amor deles é 
um livro de Machado
lido embaixo do edredom
num dia chuvoso.


O amor deles é
domingo com futebol 
feijão com arroz
prosa e poesia.


O amor deles
nos dá vontade de amar."


 Spencer Reid

Saudade do que era

Chovia e fazia frio quando ficamos juntos pela primeira vez. Dentro daquele carro, no final daquela rua, porque ninguém podia saber. Me sentia envolta pelos teus braços, protegida pelo teu abraço e aquecida pela tua alma. Ficamos horas entre os olhares e os melhores beijos do mundo, como se nada mais importasse, só nós dois, ali, juntos.
E foram assim todos os nossos fascinantes encontros. Cada vez mais apaixonantes, cada vez mais envolvidos, cada vez mais querendo mais. Até que nos vimos amantes, nos vimos amados. Completados um pelo outro. Todos já haviam percebido, todos, agora, deveriam saber.
Recebia tuas mensagens todos os dias - aquelas mesmo de bobo apaixonado - me desejando um lindo dia como eu, uma ótima noite me mandando sonhar com você e até aquelas repentinas só pra dizer que estava com saudade ou perguntar como eu estava. Ligações todos os dias à noite, contando como foi o dia e dizendo o quanto queria que chegasse logo o próximo dia de nos vermos. 
E foi assim por meses. Conversas intermináveis, abraços apertados e intensos, sorrisos soltos, risada alegre, amor. Aquele amor que você quer que jamais acabe, aquele amor que você jamais se vê sem. Aquele amor que você só via em filme e agora estava vivendo, pela primeira vez. Me sentia realizada, feliz, repleta, transbordante. 
Uma pena que, aos poucos, tudo isso foi mudando... Uma pena que todas essa frases tiveram que ser iniciadas no passado. Uma pena que nada mais é assim. Uma pena que não vejo mais, no olhar, aquela alegria e vontade de estarmos juntos. Que não vejo mais demonstração de carinho e preocupação como antes. Mensagens se tornaram raras; conversas, rasas; abraços, secos; encontros cada vez mais sem graça, indiferentes. Ontem fez frio e choveu, mas, diferente daquele primeiro encontro, senti ausência do teu abraço, do teu calor, me senti vazia. E pior que sentir falta de alguém que está longe, é sentir de alguém que está ao meu lado.
Uma pena, maior ainda, que só eu sinto falta. Sou boba - literalmente - apaixonada que ainda espera que tudo volte a ser como no começo. Amor? Talvez ainda exista, mas parece que todo aquele sentimento esbraseante, apaixonado, vivo, entusiasmado e aceso se tornou apenas uma chama serena, prestes a apagar. 

Frida Kahlo

Minúcias

Tem umas coisas que só olhando bem de perto para notar o quanto são enormes, gritantes, vastas. Eu poderia dizer que você é a personificação da amplitude. Extenso. Denso. Intenso. Para mim, um casal é movido por detalhes, detalhes esses que nem um fotógrafo aspirante a Salgado é capaz de captar e acho que é justamente isso que faz os duetos apaixonados serem tão singulares. 

Seria alguém apto a reparar sua pinta do lado esquerdo do queixo que aumenta de tamanho conforme o movimento do seu maxilar? Ou o jeito que você ri quando se sente sob pressão? Como olha no relógio repetidas vezes quando está ansioso. Ou, quando vamos a praia do Leme, como mistura o mate com a limonada milimetricamente para que fique de acordo com o seu gosto. O jeitinho de abrir a porta para que não faça barulho. Como escova os dentes de costas para o espelho. A maneira de abotoar as camisas sociais – sempre tão amarrotadas. Ou o estalar dos dedos para se poupar de um nervosismo repentino. 

Foi você que insistiu para que eu experimentasse açaí depois de uma prova de física cuja matéria eu te ensinei na noite anterior. E foi você que me levou ao show daquele sujeito num feriado chuvoso.... Não me lembro bem do artista, mas me recordo do resfriado que peguei. Com você, fiz uma viagem à Itaipava, sob tensão, pois a gasolina estava acabando. Não acabou e tive que escutar a respeito da minha neurose durante os dias que passamos lá. Com você, também, chorei por causa da bronca que levei de meu chefe e tive seu esmero sob forma de afago nos meus cabelos. Vi você ir de havaianas para um jantar de sua família enquanto eu usava um salto caro parcelado no cartão. Ouvi você dizer que fico linda sem maquiagem quando, na verdade, eu estava de corretivo e havia sofrido para usar o curvex. Você nem sabe o que é curvex. Lembro quando decorou alguns personagens da minha série favorita. Era Drew, não Drake, mas eu sorri consentindo com a cabeça porque eu sabia que você havia se esforçado.

Nada se compara ao que é – só – meu e seu e é exatamente isso que faz a Laura e Gustavo diferentes do Paulo e Júlia, da Luana e Raquel, do Daniel e Lorena, do Alexandre e Antônio ou da Débora e Marcelo. As coisas pequenas, na verdade, são gigantes e, pensando melhor, não nos torna singular. Nos torna plural.

 

Valentina 

Terminou, como tudo termina. Não abruptamente, como um piscar de olhos. Pelo contrário, se arrastou, gerando meses de melancolia por saber o que está por vir. Meses aproveitando a dor de cada encontro, a saudade antecipada, o pesar de saber que em breve esses momentos seriam apenas lembranças.

Os sorrisos, os abraços e os beijos escondidos de todos os dias se tornariam menos frequentes e por isso eu me agarrei naqueles últimos meses como se minha vida dependesse de passar cada segundo ao seu lado.

1h15 não é um vôo particularmente longo, mas nossa vida jamais permitiria visitas regulares. E dói não poder fazer nada. Eu fui buscar a felicidade que havia me deixado há muito, mas não tinha a intenção de trazer a tua comigo. 

Parados no portão de embarque, vestindo uma máscara cuidadosamente construída, tentávamos ao máximo parecer fortes. Ambos sabíamos que no momento em que eu embarcasse, nós dois desabaríamos em lagrimas. Ambos sabíamos que as próximas vitórias não teriam o mesmo gosto. E nos perguntávamos por que tinha que ser assim, mas também sabíamos a resposta: tudo termina.

E nesse ultimo momento sentimos como se os últimos meses tivessem passado num piscar de olhos. E ao mesmo tempo em que desejamos ter mais tempo, desejamos que nada disso tivesse acontecido. Que nunca tivéssemos nos apaixonado, porque era errado, porque esse relacionamento começou fadado ao fracasso e nos deixamos iludir nos últimos 5 anos.

Os próximos dias vazios seriam preenchidos pelas nossas lembranças. Músicas, filmes, comidas, cheiros e sensações que agora vêm acompanhadas de tristeza. Tristeza que já é parte de mim; está nos meus dias, nos meus atos e no meu coração... e eu me visto de saudade do que já não somos nós.


Peter Parker

Nas asas do amor

Embarquei em um avião. Burlei o sistema, sem passagem ou qualquer tipo de documento. Minha bagagem era minha roupa de corpo e uma foto de mim mesma que levava no bolso de trás. Os corredores eram largos, as poltronas confortáveis, e as comissárias de bordo sorriam para mim de modo a me fazer sentir especial. ‘Devo ser a milionésima passageira’, indago.

Por sorte, havia, no fundo do avião, um assento sem dono. Não era grande coisa (estava, inclusive, manchado de café), mas continuava sendo um assento. Resolvo, então, analisar o ambiente ao meu redor. De um em um, os outros passageiros – executivos e dondocas em sua maioria – adentravam a first class com seus narizes empinados e suas malas colossais, sempre com os mesmos traços e trajes finos. A produção da elite já havia sido padronizada há séculos, e só me restava a econômica para espremer minha esqualidez. 

Passados alguns minutos, inicia-se todo o ritual da decolagem. O burburinho se aplacava à medida que eram transmitidas todas as informações sobre o voo, na voz de um piloto certamente inveterado. A senhorinha do clichê já rezava o pai-nosso enquanto espremia um terço entre suas mãos. A criança mimada, ora, essa já berrava enquanto a mãe tentava, sem êxito, aquietá-la. Um arquétipo de voo já se encontrava instaurado naquele pássaro de metal enferrujado, e eu já sabia como a história terminaria.

Você vem sempre aqui?, perguntou o homem barrigudo de meia-idade que se expandia para além de sua poltrona. Seu aroma um tanto quanto peculiar me aventava memórias de minha distante infância, quando minhas colegas de classe brincavam de casamento e eu, como sempre, ficava para titia. Jurei, pelo deus que venerava a senhorinha do terço (a qual já passara a navegar no Facebook com o 4G de seu iPhone 6) que, se ainda tivesse dentro de mim a criança que um dia eu ousei ser, soltava um palavrão em nome de minha inocência pueril – um daqueles bem cascudos, de abrir a boca da vovó Creusa e fazer o tiozão do pavê genérico soltar uma gargalhada, seguida de uma série de flatulências e uma eventual diarreia desconcertante. No entanto, limitei-me a virar o rosto para o outro lado, de modo a encarar o muco que escorria do nariz da criança da fileira à minha direita. O garoto, agora silencioso, brincava com um pequeno punhado de meleca que ajuntara enquanto sua mãe fazia uma ligação para algum ente ‘querido’.

Qual o propósito de sua viagem? - interpelou o mesmo homem à minha esquerda, com uma mão cabeluda acariciando sua região púbica. Repudiaria a cena se pudesse, mas algo visceral em mim fez com que eu jogasse seu joguinho libidinoso como a jovem inconsequente que um dia ousei ser. 

Vou aonde for o avião - disse, parecendo mais interessada do que realmente estava. Concomitantemente ao desenrolar do diálogo acintoso, a ave Dumontiana subia, rasgando os céus enegrecidos por nuvens tempestuosas de um lugar qualquer. Minha vida sempre fora um mar de improvisos, e dar nome a locais, para mim, era dispensável. Nunca sabia, ou queria saber onde me encontrava. “Vou aonde for o avião” poderia ser o lema a rumar minha vida.

E, como num passe de mágica (ou força do acaso, como quiser), fez-se a profecia. No auge de seu voo, a aeronave começou a vacilar no meio de raios e trovões que rugiam repetidamente. O piloto inveterado expressava na sua voz o temor de um iniciante, a senhorinha do terço já desmaiara e a criança berrona chorava nos braços da mãe, que, desesperada, utilizava a própria cria como escudo contra uma eventual-mas-quase-certa queda.

O resto é só um borrão na minha cabeça. Lembro-me da histeria generalizada (a primeira classe – surpresa – era a mais audível), da derrocada em espiral inverso com tripla pirueta do avião, das máscaras de ar que não funcionavam, dos estereótipos que cada vez mais se confirmavam até que um boom ensurdecedor anunciou o fim da queda. O caos deu lugar às chamas, a gritaria ao silêncio e a vida… bem, essa segue. 

Algum tempo depois, embarquei em outro avião, sem passagem ou qualquer tipo de documento. O fim da história? Meu quinto sexto divórcio.


S. do Saxofone