terça-feira, 24 de maio de 2016

Os olhos castanhos não combinavam com o roxo de suas pálpebras.

Mas o culpado é o vermelho do batom.

Apesar disso, é uma garota bonita. E de sorte, e que sorte! Mesmo com tantos problemas, achou o príncipe encantado.

Ele, moço bonito, forte, trabalhador. Era como o protetor dela. Não deixava ninguém chegar perto.

Ninguém nem sabia porque ele estava com ela. “Com toda essa depressão”, dizia ele, “nenhuma outra pessoa aguentaria você”. Ele aguentava.

Naquele domingo, no bar, todos viram o amor dos dois. Chegaram abraçados, carinhosos. Ele abriu a porta do carro, verdadeiro cavalheiro, e a moçoila desceu em seu vestido rodado. No joelho, é claro, não cai bem uma moça com as pernas de fora. Ele mesmo a havia lembrado disso. As marcas na perna, segundo ele, eram um aviso de onde não poderia ser mostrado.

Certo é que foi uma noite feliz. Sem nenhum motivo, ele pediu o prato preferido dela, acompanhado de um suco. E o merecido chopp gelado para ele, que cumpria seu papel de namorado perfeito levando a dama para jantar. Trocaram carícias, beijinhos comportados e abraços. Ao cair da noite, com o frio chegando, o homem tirou o próprio casaco para envolver a bela amante.

Enquanto isso, as mulheres das outras mesas reclamavam da falta de cavalheirismo de seus respectivos cônjuges. É verdade que seus braços não carregavam marcas, mas asda nossa menina principal eram feitas por amor. Corrigindo, a menina dele. Gostavam do pronome como gesto de carinho.

Entre o prato principal e a sobremesa, levantaram-se para uma dança. Ela não entendia bem o porquê de seus braços doerem tanto com a condução do namorado, mas ele apenas a apertava tão forte para que, solta demais, a menina não ficasse vulgar ao rodar o vestido. Sentaram-se novamente, para que ele pedisse uma grande fatia de torta de chocolate. Para ela, uma pequena porção de salada de frutas sem açúcar. Era para a saúde dela, ele explicava, a garota já estava gorda demais. Na verdade, ele falava muito. Ela era mais quieta, sabia que era um tanto burrinha perto do namorado universitário e alguns anos mais velho.

Ele fecha a porta do carro e vão embora. Por ter abusado do batom mais uma vez, ela acabou voltando com a boca nua.

Termina a noite.

Eram um casal feliz. Desculpe. Ele era um homem feliz. Ela, enquanto não percebia o abuso que a envolvia e a diminuía, apenas acreditava ser.


Pandora

5 comentários:

  1. É um texto bem profundo e tocante, retratando uma situação que infelizmente acontece muito e precisa ser mudada! Já entrando aí uma das pontas da estrela: o exercício de cidadania. Vejo também que o texto rompe com as correntes do lead, garante perenidade e profundidade aos relatos e proporciona uma ampla visão da realidade. Não creio que houve a ponta de ultrapassar os limites do cotidiano, porém acho que a intenção do texto era exatamente essa: mostrar pequenas atitudes do cotidiano que afetam a vida da mulher em questão. De qualquer maneira, gostei do texto!

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  2. Esse texto já começa maravilhoso, com um jogo de palavras sobre cores super bem pensado, e termina maravilhoso também. Arrisco dizer que contempla todas as 7 pontas da estrela, especialmente a parte de exercer a cidadania. Abordei no meu texto a mesma temática dos relacionamentos abusivos, que acho importantíssima... Parabéns!

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  3. Achei muito interessante! Triste saber que essa é a realidade de muita gente. Como a Amelie Poulain disse, acho que foi um dos poucos textos que conseguiu exercer bem a cidadania. Realmente você não se utilizou do lead, ao escrever com profundidade você garantiu também uma visão não limitada da realidade e vejo a marca da perenidade também. Para mim, ultrapassou os acontecimentos cotidianos sim, porque é justamente isso que a crônica faz: pega algo "comum" (no sentido de ser recorrente), como um relacionamento abusivo, e dá profundidade e o analisa com mais detalhe. Isso, para mim, é ir além do cotidiano. Só minha opinião mesmo. Parabéns!

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  4. Seu texto ficou fan-tás-ti-co! Eu achei perfeita a forma como deu pra notar através de insinuações bem subliminares o abuso que a garota sofria do garoto, e foi muito interessante colocar também a questão das aparências nem sempre serem corretas, como deu pra ver na parte em que outras garotas se comparam ao casal e reclamam da suposta falta de cavalheirismo de seus namorados. Acho que sua crônica rompeu com o cotidiano pelo retrato diferente que deu ao relacionamento abusivo, e tem perenidade e evita o senso comum por ter mostrado as justificativas do garoto por agir desse jeito.

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  5. Olá amiga Pandora!
    Sobre o seu texto: MARAVILHOSO! Como nossa companheira Lucy disse, o começo do texto com o jogo de palavras sobre as cores trás para ele uma certa sutileza. Acredito que seu texto contém todas as pontas (posso estar errada, mas realmente acredito nisso). Não tenho outras palavras para colocar aqui a não ser PARABÉNS!
    Beijos perfumados de sua querida Maria Antonieta.

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