Embarquei em um avião. Burlei o sistema, sem passagem ou qualquer tipo de documento. Minha bagagem era minha roupa de corpo e uma foto de mim mesma que levava no bolso de trás. Os corredores eram largos, as poltronas confortáveis, e as comissárias de bordo sorriam para mim de modo a me fazer sentir especial. ‘Devo ser a milionésima passageira’, indago.
Por sorte, havia, no fundo do avião, um assento sem dono. Não era grande coisa (estava, inclusive, manchado de café), mas continuava sendo um assento. Resolvo, então, analisar o ambiente ao meu redor. De um em um, os outros passageiros – executivos e dondocas em sua maioria – adentravam a first class com seus narizes empinados e suas malas colossais, sempre com os mesmos traços e trajes finos. A produção da elite já havia sido padronizada há séculos, e só me restava a econômica para espremer minha esqualidez.
Passados alguns minutos, inicia-se todo o ritual da decolagem. O burburinho se aplacava à medida que eram transmitidas todas as informações sobre o voo, na voz de um piloto certamente inveterado. A senhorinha do clichê já rezava o pai-nosso enquanto espremia um terço entre suas mãos. A criança mimada, ora, essa já berrava enquanto a mãe tentava, sem êxito, aquietá-la. Um arquétipo de voo já se encontrava instaurado naquele pássaro de metal enferrujado, e eu já sabia como a história terminaria.
‘Você vem sempre aqui?’, perguntou o homem barrigudo de meia-idade que se expandia para além de sua poltrona. Seu aroma um tanto quanto peculiar me aventava memórias de minha distante infância, quando minhas colegas de classe brincavam de casamento e eu, como sempre, ficava para titia. Jurei, pelo deus que venerava a senhorinha do terço (a qual já passara a navegar no Facebook com o 4G de seu iPhone 6) que, se ainda tivesse dentro de mim a criança que um dia eu ousei ser, soltava um palavrão em nome de minha inocência pueril – um daqueles bem cascudos, de abrir a boca da vovó Creusa e fazer o tiozão do pavê genérico soltar uma gargalhada, seguida de uma série de flatulências e uma eventual diarreia desconcertante. No entanto, limitei-me a virar o rosto para o outro lado, de modo a encarar o muco que escorria do nariz da criança da fileira à minha direita. O garoto, agora silencioso, brincava com um pequeno punhado de meleca que ajuntara enquanto sua mãe fazia uma ligação para algum ente ‘querido’.
‘Qual o propósito de sua viagem?’ - interpelou o mesmo homem à minha esquerda, com uma mão cabeluda acariciando sua região púbica. Repudiaria a cena se pudesse, mas algo visceral em mim fez com que eu jogasse seu joguinho libidinoso como a jovem inconsequente que um dia ousei ser.
‘Vou aonde for o avião’ - disse, parecendo mais interessada do que realmente estava. Concomitantemente ao desenrolar do diálogo acintoso, a ave Dumontiana subia, rasgando os céus enegrecidos por nuvens tempestuosas de um lugar qualquer. Minha vida sempre fora um mar de improvisos, e dar nome a locais, para mim, era dispensável. Nunca sabia, ou queria saber onde me encontrava. “Vou aonde for o avião” poderia ser o lema a rumar minha vida.
E, como num passe de mágica (ou força do acaso, como quiser), fez-se a profecia. No auge de seu voo, a aeronave começou a vacilar no meio de raios e trovões que rugiam repetidamente. O piloto inveterado expressava na sua voz o temor de um iniciante, a senhorinha do terço já desmaiara e a criança berrona chorava nos braços da mãe, que, desesperada, utilizava a própria cria como escudo contra uma eventual-mas-quase-certa queda.
O resto é só um borrão na minha cabeça. Lembro-me da histeria generalizada (a primeira classe – surpresa – era a mais audível), da derrocada em espiral inverso com tripla pirueta do avião, das máscaras de ar que não funcionavam, dos estereótipos que cada vez mais se confirmavam até que um boom ensurdecedor anunciou o fim da queda. O caos deu lugar às chamas, a gritaria ao silêncio e a vida… bem, essa segue.
Algum tempo depois, embarquei em outro avião, sem passagem ou qualquer tipo de documento. O fim da história? Meu quinto sexto divórcio.
S. do Saxofone
Eu AMEI esse texto! Que metáfora maravilhosa! Nele, pude perceber algumas pontas da estrela: a perenidade, pois não é uma obra superficial, pelo contrário, cheia de intensidade; a visão ampla da realidade, já que você não se limitou a um objeto de análise; potencialização dos recursos do Jornalismo, já que enxergo, na obra, uma preocupação com a redação narrativa, a observação atenta aos detalhes das pessoas, das situações etc. Muito bom!
ResponderExcluirQue texto bem escrito e criativo! Até o final, fiquei tentando entender onde entraria uma crônica sobre casal ahahah. Na minha humilde opinião, acho que esse pode ter sido um dos únicos textos com as sete pontas: utilizou e potencializou de recursos jornalísticos (em uma obra cheia de detalhes das pessoas, do ambiente e dos acontecimentos), pegou um evento cotidiano - viajar de avião - e o transformou em algo muito maior, não se utiliza o lead da forma padrão, acho que nos faz refletir sobre a cidadania, já que fica claro a diferença entre a elite e a classe média, etc. Muito bom! Parabéns!
ResponderExcluirQue criatividade! Que escrita! Excelente exposição dos fatos em uma ordem, metáfora genial. Exerce a cidadania, rompe com o LEAD e como é profundo! Parabéns - Melissa C.
ResponderExcluirAdorei a escrita,a profundidade, a riqueza de detalhes, tudo. Excelente metáfora. Seu texto rompe total com o cotidiano, tem uma visão super ampla da realidade, rompe as correntes do LEAD, evita as fonte de sempre e exerce cidadania, pelo fato de explicitar a diferença das classes sociais no avião, como disse a Helena. Parabéns.
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