terça-feira, 24 de maio de 2016

Bodas de Papel

A porta do quarto ao lado é fechada com força. O grito de madeira batendo contra madeira te sobressalta e um suspiro pesado cai de seus lábios - lá vamos nós mais uma vez. Logo em seguida, berros começam a soar e você prontamente se lembra do quanto odeia esse apartamento com paredes finas como papel, incapazes de abafar as discussões deles, os problemas deles, as angústias deles.

Você vê A Sombra espreitando a entrada do seu quarto, à espera do seu convite para adentrar. Porém não, não haverá convite algum, pois você não a quer aqui dentro. Você sabe muito bem as emoções desagradáveis que ela causa em você (aquela sensação de inutilidade, de lixo humano, que te provoca calafrios porque você teme que haja um fundo de verdade nisso), portanto você a expulsa - este é meuquarto, meu território; aqui você não pode. Mas quantas vezes você já lutou contra ela? Várias. E quantas vezes você venceu essa luta? Nenhuma.

Assim, mesmo sem convite, A Sombra indesejada avança solenemente sobre o cômodo, e tudo o que você pode fazer é observar o abismo que se estende ao longo do seu quarto; suas margens nebulosas aproximando-se cada vez mais da cama sobre a qual você está. Suas mãos tremem de medo pelo que está por vir e você nem se dá ao trabalho de esconder seu receio - afinal, A Sombra é capaz de farejar sua covardia feito um cão treinado.

Quando a colcha de sua cama começa a ser tingida por uma profunda escuridão, você sabe que é game over, you lose. A Sombra sente sua resignação e estende uma mão trêmula e negra que cobre seu rosto, obscurecendo seus olhos e roubando sua visão.

E então você está completamente à deriva num mar tenebroso e sombrio.

Não podendo mais fazer uso de seus olhos, tudo o que resta a você é ouvir seu próprio batimento cardíaco; um pulso frenético sob sua pele porque você sabe, por experiência própria, que estar à mercê dA Sombra é muito mais do que entrar em um mero estado letárgico - está vindo, eu sei que está.

E vem.

Berros de gelar a espinha entram em cena. O agudo contra seus ouvidos é similar a unhas arranhando um quadro negro; os pelos de seus braços arrepiam-se e pálpebras instintivamente se fecham sobre seus olhos inúteis em resposta às agulhas sendo encravadas em seus tímpanos. Mas esse torpor não é o pior - o problema é quando ele se esvanece pouco a pouco, e você é finalmente capaz de entender as palavras gritadas.

Será que dá pra você me ouvir por um instante, por favor? Assim não dá mais! Estou cansada disso, eu vou embora! Qual é a sua incapacidade de me ajudar? Isso daqui é mais do que apenas pagar as contas; tem que me ajudar também. Tem que me entender.

A hipnose dA Sombra é quebrada assim que sua mãe entra em seu quarto. Ela dá passos decididos em sua direção, dá um beijo sobre sua testa (tão terno, tão diferente de seus gritos anteriores) e diz que dará uma volta, mas ela volta logo, tudo bem? Você diz que sim, sem problemas, mãe, apesar de seu coração estar inchando e sufocando seu peito porque você vê de relance, encostada na porta do seu quarto, uma mala de viagem. Ela não voltará.

A porta de casa é fechada com cuidado quando sua mãe vai embora, e você detesta esse apartamento com paredes de papel, incapazes de abafar o choro do seu pai no quarto ao lado.


Cora

13 comentários:

  1. Achei esse texto tão bonito. Admito que demorei um pouco para entender quem brigava com quem e o que estava acontecendo, mas no final tudo fica claro de uma maneira emocionante. Adorei o título e a metáfora feita na crônica com ele. Senti que você alcançou várias pontas da estrela: profundidade, perenidade, rompimento do lead, sem definidores primários. Acho também que foi um dos textos que mais se aproximou do exercício da cidadania (posso estar viajando, mas acho que a partir da briga de um casal e como eles se comportam em relação a isso e em relação ao seu filho também, podem ser feitas várias reflexões abordando o papel do cidadão). Parabéns!

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  2. A Sombra com letra maiúscula aparece como um personagem com identidade própria, e assim constrói-se uma metáfora maravilhosa, com certeza profunda e perene. Como a Helena, também achei que o texto exerce a cidadania, de forma sutil e com grande sensibilidade. Muito bom.

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  3. A Sombra com letra maiúscula aparece como um personagem com identidade própria, e assim constrói-se uma metáfora maravilhosa, com certeza profunda e perene. Como a Helena, também achei que o texto exerce a cidadania, de forma sutil e com grande sensibilidade. Muito bom.

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  4. A Sombra com letra maiúscula aparece como um personagem com identidade própria, e assim constrói-se uma metáfora maravilhosa, com certeza profunda e perene. Como a Helena, também achei que o texto exerce a cidadania, de forma sutil e com grande sensibilidade. Muito bom.

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  5. Belíssima escrita. Um texto todo trabalhado em metáforas, e personagens escondidos, o que mostra que foi muito bem pensado. Consegui encontrar quase todas as sete pontas da estrela. Os mais visíveis, como profundidade e perenidade aos relatos, ampla visão da realidade, ultrapassagem dos acontecimentos cotidianos e rompimento das correntes do LEAD. E aqueles mais implícitos, como a não presença de definidores primários, e um dos poucos que consta o exercício da cidadania, ao relatar fatos que envolvem, não só o relacionamento de um casal, mas também uma estrutura familiar. Só não consegui observar o uso dos recursos jornalístico, o que é cabível, visto que se trata de uma crônica. E como dito anteriormente, tudo feito com muita sutileza e sensibilidade.

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  6. Ótimo texto! Não esperava por esse final que optou, considero perene e com profundidade, além de uma ampla visão da realidade. Vejo que ainda há considerações a se fazer pois em alguns momentos não ficou muito claro para mim o que estava ocorrendo, no entanto é uma excelente obra. Parabéns

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  7. Achei a narrativa intrigante, à princípio misteriosa para em seguida esclarecer aos poucos os elementos ao longo do texto! Consigo observar a perenidade, a ausência de definidores primários, uma visão ampla da realidade, na medida em que traz uma abordagem em um contexto diferente, assumindo uma nova forma de interpretação. Além disso, o texto rompe com a fórmula do lead, e como citado pela Helena Seixas, é possível perceber uma preocupação com a questão do ambiente familiar, aproximando-se do exercício da cidadania! Bom texto!

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  8. Que texto maravilhoso, Cora! Você realmente me prendeu de uma forma que até o final fiquei pensando: Quem é essa maldita sombra? hahaha. Você abordou de uma maneira tão detalhada, cheia de metáforas, que me senti inserido na história. Enfim, quanto às sete pontas, é como já falaram acima, foi perene e profundo, rompeu totalmente as correntes do Lead, ultrapassou a abordagem cotidiana, possuindo até o exercício de cidadania ( o primeiro que eu vi que consta). Parabéns pelo texto


    Um aperto de mão do seu amigo Régis Jr.

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    1. Desculpa por não ter definido A Sombra direito, mas minha intenção mesmo foi que ela adotasse uma forma diferente para cada pessoa que lesse a crônica. Por isso que a narrativa é toda "você", porque /você/ é o filho ouvindo os pais brigarem. Obrigada pelo comentário =)

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  9. Bem, acho que no texto você alcançou alguma das pontas como foi dita pelos colegas acima. Acompanho relator, profundidade, perenidade e cidadania.

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  10. Olá amiga Cora! Preciso lhe confessar, seu texto me trouxe uma certa angústia no peito. Ao ler pude acreditar que de fato, eu Mariazinha, estava sentindo tudo aquilo. Magnífico! Acredito que você alcançou seu objetivo, pois o uso da segunda pessoa acabou de fato me aproximando do texto. Sobre as sete pontas em minha opinião você conseguiu alcançar quase todas. Potencializou os recursos do Jornalismo, ultrapassou os limites do acontecimento cotidiano, proporcionou uma visão ampla da realidade e obteve a perenidade no texto. Parabéns pelo trabalho!
    Beijos perfumados de sua querida Maria Antonieta.

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  11. Que texto maravilhoso! Sério, estou sem palavras! Por enquanto, entre todos que eu li, esse me parece ser o mais completo em relação à estrela de 7 pontas. Você potencializou os recursos do jornalismo e ultrapassou totalmente os limites do cotidiano quando abordou de uma forma tão intensa e profunda uma "simples" briga de casal; proporcionou a nós uma visão ampla da situação por ter narrado a briga pelos olhos de um terceiro; teve a cidadania exercida através da forma sutil que a mãe transmite a situação ao filho; rompeu com lead (sem querer repetir o que os colegas disseram mas já repetindo, me prendeu até o final para saber o desfecho); evitou os definidores primários quando decidiu abordar uma família comum; por último, transborda perenidade. Parabéns!

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  12. Confesso que, assim como a Helena, demorei um pouquinho a entender haha. Achei excelente a construção do texto e tamanha criatividade! Ele rompe as correntes do LEAD; é perene, profundo; ultrapassa os limites do acontecimento cotidiano. Por fim, relata a realidade de muitas famílias.

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