Março nunca foi tão cinza. Era domingo, meu avô me levava para brincar na pracinha da cidade. Carregávamos minha bicicleta na mala. Não sabia o que estava prestes a acontecer. Na verdade, até hoje, 25 anos depois, não tenho recordações muito claras. Foi um impacto repentino, dizem. Não se sabe ao certo como aconteceu o acidente, mas os resultados foram terríveis; um dia que, apesar de frio, tinha tudo para ser proveitoso. Nosso carro bateu de frente com outro que vinha na mão contrária e, se não fosse por eu estar no banco de trás, corretamente preso – coisa que vovô sempre se preocupava – não sei se o fim teria sido pior. No outro veículo, uma menina com sua avó, traçavam outro caminho, até que algo mais forte cruzou nossas histórias. Paulo e Mariza, meu avô e a avó dela, respectivamente, não suportaram os ferimentos. Posso dizer que ter três anos naquele momento deve ter, de certo modo, me ajudado a lidar com a situação. O fato de eu não ter noção total do que aconteceu me impediu de enfrentar traumas maiores. Mesmo assim, me sinto pronto para contar sobre como a vida sempre arruma formas de nos surpreender.
Chamo-me Pedro. Mudei-me para Califórnia há quatro anos. Tenho 28 anos e trabalho em um hospital, pois sempre me senti apaixonado por medicina. Meu desejo de ver as pessoas bem sempre foi maior do que meu próprio bem estar. Salvar vidas é renovador para a alma e sei que não poderia estar fazendo diferente. Foi em um dia aparentemente “normal” também que encontrei a Luiza. Pra ser sincero, foi um segundo que olhei nos olhos dela, enquanto cruzávamos o corredor comprido por onde todos os médicos passam quase que involuntariamente ao longo do expediente. Algo aconteceu na hora que nossos olhos se encontraram. Eu não sei explicar.
Dias passaram, chegou o final de semana e eu tinhaaula de especialização para a carreira no sábado. Chegando lá, quando percebo, Luiza está sentada no meu lado. Sorrimos. Ali, o mundo pareceu parar para mim. Começamos a conversar e descobrimos tantas coisas em comum, que parecíamos nos conhecer háanos. Ela também nascera no Brasil. Não na mesma cidade que a minha, mas mudou-se para lá ainda quando criança. Trocamos nossos telefones e nos despedimos com a sensação mais inexplicável possível passando por nossas cabeças. Seria coincidência? Só sei que às vezes a vida nos presenteia com pessoas que, à primeira vista, nos remetem um sentimento diferente, uma empatia comum.
A partir de sábado, passamos a nos encontrar. Convidei-a para jantarmos no domingo e continuar o papo do dia anterior. Foi uma noite agradável e relaxante. Nossa afinidade só crescia e foi assim pelo resto dos meses, dos anos... Estamos juntos há fortes três destes. Agora a parte mais impressionante: conversávamos, no início, sobre nossas vidas no Brasil. Descobri que Luiza, similar a mim, perdeu sua avó em um acidente quandopequena. Descobri que Luiza estava no carro com ela.Descobri que foi em março, um dia feio... Frio. Descobri que o motorista do carro oposto também faleceu. Descobri que quem o acompanhava era eu. Descobri que o impacto dos carros fazia sentido com o impacto que senti ao olhar para ela sem a conhecer ainda. Descobri que nossa história se cruzou de novo, por motivos desconhecidos, e que Luiza me conhecia bem mais do que eu pensava. Descobri em Luiza, uma parte que nesses anos todos faltou em mim e sei que, agora, encontrei um lugar seguro para ser feliz.
Lia Mendes
Nossa, que lindo! Parecia que estava lendo o começo de um livro. No final, quando você compara o impacto do carro com o do olhar dela... Tô apaixonada por isso! Seu texto potencializa muito os recursos jornalísticos, dá uma visão ampla da realidade, rompe o lead. Você alcançou essas características com excelência. Parabéns!
ResponderExcluirOlá amiga Lia! Seu texto é lindo e muito lindo! Concordo com nossa colega Helena, por um momento acreditei estar lendo o começo de um livro! Acredito que seu texto rompe o lead, ultrapassa limites do cotidiano, é perene além de nos dar uma visão ampla da realidade. Simplesmente magnífica a sua escrita, parabéns!
ResponderExcluirBeijos perfumados da sua querida Maria Antonieta.
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ResponderExcluirHistória digna de um filme. Gostei bastante da narrativa e dos detalhes como "dia feio... e frio", achei que isso trouxe o leitor pra perto e permitiu a sensação e a criação de uma imagem. Identifiquei nela visão ampla da realidade, devido à contextualização, a fuga do LEAD e perenidade. Parabéns.
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