sexta-feira, 8 de julho de 2022

Apocalipse dos defuntos

Quando eu era criança, zumbis me apavoravam. Aterrorizava-me o fato de que aquelas criaturas canibais eram quase imparáveis e não sentiam dor. Não tinham sentidos, motivações. Não sei nem se cabe o termo monstro, porque acho que os verdadeiros monstros são aqueles que causam o mal com plena consciência, enquanto os zumbis têm carência total desta. Não perseguem mulheres brancas de aparência aprazível porque tem uma espécie de instinto carnal que os motive a isso. Não tem razão, não tem cérebro. São os seres mais rejeitados que o homem pôde criar, porque são pessoas que a Morte regurgitou e condenou a um destino mais triste do que o Fim: o Nada. De todas as abominações de filme de terror, a única que nunca desejei me tornar era um zumbi, mas foi justamente isso no que me transformei.

É difícil dizer se me contaminaram, se alguém me mordeu ou se eu carregava o vírus dentro de mim. De uma coisa eu sei, participei do apocalipse dos defuntos, e não foi do lado dos mocinhos que sobrevivem, mas do lado dos personagens secundários que são infectados. Por alguns anos, vivi na pele da criatura que foi a razão dos meus pesadelos de infância, mas por algum motivo eu não tinha mais medo. Apenas vaguei inconscientemente, sem determinação, dignidade ou noção. Um pedaço de nada, preenchido de nada, movido por nada, que não sentia nada e que nada sonhava. Como um zumbi, andei trôpego, incerto e morto. Uma casca vazia, esperando a podridão me corroer. Não foi nada parecido com o horror dançante de Thriller.

Não estava dopado, mas acho que seria incapaz de ficar, dada a minha dormência. Muitas vezes duvidei que meu coração ainda batesse, então passei longas horas sentado em silêncio ouvindo ele pulsar de maneira fraca e lenta, quase inexistente. Eu desejava que ele parasse. Confinado na prisão de um corpo cuja alma havia desistido de vibrar, meu coração era meu algoz, batendo insistentemente contra as grades da sua óssea gaiola torácica. Como um aviso latente, ele me lembrava que não estava morto, nem estava vivo, mas era um defunto de sangue quente. A Vida me descartou, e a Morte não quis me tirar pra dançar, então segui nas pegadas dos outros 300 milhões de zumbis espalhados por aí.

Muitas vezes tentei comer o cérebro das pessoas à minha volta. Tinta tanta inveja de suas capacidades de sentir, sorrir, chorar. Eu tinha perdido tudo isso. Não tinha dor, alegria, tristeza, raiva, angústia. Não tinha nada dentro de mim. Eu não queria tirar o que era delas, não queria roubar suas vidas e condená-las ao mesmo suplício que me encontrava, apenas esperava que pudesse aprender novamente a ser humano se segurasse seus cérebros mornos na ponta dos meus dedos gélidos. O que eu não entendia era que, diferente de mim, elas ainda sentiam dor, e toda vez que eu me aproximava pra tentar aprender, eu acabava machucado alguém. Não era intencional. Já tinha sido machucado tantas vezes que, involuntariamente, me tornei um espelho de quem me maltratou. Era perigoso demais pra estar perto das pessoas, mas odiava a solidão acompanhada de estar com meus semelhantes. Por isso, preferi o exílio.

Com minhas magras, anêmicas, esqueléticas e doentes pernas de zumbi, me arrastei para o mais distante que pude, esperando o tempo fazer o trabalho dele e terminar de putrefar minha carne decadente. O tempo, porém, não tinha pressa de me matar. Eu, por outro lado, tinha muita pressa de morrer. Por isso, resolvi dar um fim à minha maldição e lançar minha existência no limbo cósmico. Não me importava se reencarnaria em outra vida, se simplesmente pararia de existir, ou se seria lançado numa espécie de inferno como punição. Qualquer coisa soaria melhor do que aquela falsa vida que me deram pra viver.

No entanto, minha visão inebriada e meu ser entorpecido não tinham mais aptidão e precisão. Ao invés de me separarem de tudo e de todos, eles me levaram de volta para mim mesmo. Não sei quando me dei conta, mas num momento de clareza, me dei de cara com minha situação. Talvez tenha sido quando olhei o reflexo machucado no espelho segurando a enorme faca de chef que meu pai escondia pra ocasiões especiais. O fio estava a poucos centímetros do meu pomo de adão, e se eu tivesse um pouco mais de coragem, talvez estivesse realmente me arrastando atrás de você pra devorar suas tripas. Nunca fui tão grato por ser covarde. Você também deveria agradecer. Ser comido vivo não parece o melhor dos finais, não é mesmo?

Ali, estatelado e petrificado, eu chorei. Chorei sem convite, aquele pranto que você não percebe que está se formando, mas que te toma de surpresa. Depois de meses, ouvi minha própria voz porque eu gritava enquanto soluçava. Eu estava tão maltratado. Até os cadáveres que vão ser enterrados tinham uma aparência mais digna do que eu. Não fui capaz de processar o que sentia. Era um misto de culpa, arrependimento e... pena. Eu tive pena de mim mesmo. Por Deus, como eu fui parar nesse estado? Por que eu deixei isso acontecer comigo? Se minha mãe enxergar o estado que eu estou... Eu ainda tenho mãe. Eu ainda tenho família. Eu tenho um nome!

Ainda com a arma em meu pescoço, me lembrei de todas as coisas que me constituíam como ser vivente. Não sei como fui me deixei enganar, porque elas eram muito mais numerosas do que as que me faziam defunto. Pouco a pouco, abaixei o braço. Sem palavras, foi naquele gesto que assumi o compromisso de estar vivo novamente, e de cuidar muito bem da nova vida. Sou grato por não ter tido a coragem de tantos outros zumbis que não tiveram um espelho para encarar antes do fim. O mundo colapsa num apocalipse digno de The Walking Dead, mas, porque na vida real os mortos não arrancam a jugular de criancinhas a dentadas, nada se faz pra achar a cura. Abandonados, os zumbis são excluídos, os leprosos dos quais ninguém quer proximidade, mas que todos querem estar no funeral. Os renegados que não recebem um pingo de atenção dos amigos, mas cujos perfis lotam de homenagens depois que vão até as últimas consequências. A pior parte de ser um zumbi é que parece que só estivemos vivos depois que morremos.

Acredito que não há quem culpar por me tornar um zumbi. Não tenho marcas de mordida, porque as únicas cicatrizes que marcam meu ser são as que eu mesmo deixei de lembrança. Eu aprendi a gostar delas. Como um eterno lembrete da existência, são as únicas tatuagens que preciso, e vão ficar pra sempre gravadas no meu coração. Coração este que escuto com mais cuidado agora. Por vezes ainda sento calado para ouvi-lo bater, mas ao invés de um tic toc robótico, no estalar de suas batidas eu ouço uma sintonia de vida. Essa não é a história de um menino incapaz que se transformou em morto-vivo, mas a história de um zumbi que (re)aprendeu a ser humano.

Eu ainda mordo, não se engane. Meus dentes estão armados e prontos pra abocanhar qualquer um que tente roubar aquilo que construí. Vou proteger minha vida a todo custo e com a ferocidade de uma fera que agora tem um cérebro funcionando, vou seguir meus instintos. Esteja ao meu lado, e você vai viver o felizes para sempre dos contos de fada. Ouse se posicionar contra mim e meus sonhos, e eu vou me transformar numa criatura nascida no pesadelo mais ancestral. Uma fábula com um lado sombrio ou um filme de terror no qual todos os protagonistas são devorados vivos. Quem eu sou depende de você, mas lembre-se de uma coisa: esse zumbi aqui tem um coração bem pulsante.

Por Argus Stoneheart

2 comentários:

  1. Querido Argus, o seu texto sobre o anjo que voou alto demais até aqui era o meu favorito dentre todos que você tinha feito, mas esse aqui, meu amigo, está de matar (com o perdão do trocadilho)! Todas as figuras, simbolismos, e representações do horror dos mortos vivos foram usadas com maestria por você nesse texto incrível. Me faz lembrar porque eu amo tanto o horror e sua capacidade de traduzir aspectos humanos e sociais tão violentamente bem.
    "Um pedaço de nada, preenchido de nada, movido por nada, que não sentia nada e que nada sonhava" que porrada meu amigo. A apatia da falta de sentido, da falta de propósito, de não se sentir pertencente à lugar algum, não se sentir querido ou no mínimo relevante são sentimentos mais assustadores do que qualquer slasher, filme de possessão ou monstro absurdo presente nas grandes películas cinematográficas. E você representou isso com excelência.
    Sinto muito pelo momento mais do que difícil relatado no texto, deixo meu coração aberto e todo o meu apoio aqui porque, sim, você importa, você é amado e fará falta à todos aqueles que te rodeiam. Não se deixe levar por esses pensamentos e siga na sua missão de se reconectar com a sua humanidade, essa transformação tão bonita que você nos trouxe nesse relato bem pessoal e profundo.
    A vida pode até ser um filme de terror, mas nós não precisamos ser os monstros que fazem mal somente à nós mesmos, comem nossos próprios cérebros e nos fazem sentir sem saída. Há saída. Há esperança. Depois de todas as noites, há luz.
    Com carinho, Ford.

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  2. Querido Argus, é sempre um prazer ler os seus textos! Sua escrita é muito singular, gosto de como você utiliza as referências, os simbolismos e o horror. Lamento que você tenha passado pela situação delicada descrita no texto, espero que você reconheça o quanto a sua presença no mundo é importante e revolucionária! Assim como o Ford disse, desejo que você siga na sua missão de se reconectar com a sua humanidade e consiga desfrutar das melhores coisas da vida! Se cuide, se olhe com mais carinho e tenho certeza que os amigos da faculdade te ajudarão nessa caminhada!

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