sexta-feira, 15 de julho de 2022

 DOMINGO 


Na noite do último domingo um petista foi assassinado por um bolsonarista. Pelo visto a motivação do crime foi mesmo essa: o assassino é bolsonarista e o assassinado era petista. 
Mas eu não fiquei sabendo na mesma noite.  Eu estava num churrasco. Na casa do meu tio.

Cheguei na hora do almoço. Meu tio ia e vinha da churrasqueira, lavando o carro enquanto assava a carne. O almoço atrasou. A casa estava relativamente vazia. Os convidados regulares já sabiam que a comida sempre atrasa. Felizmente eu tinha feito um lanche antes de sair. Não gosto de sair de estômago vazio. 

No correr do tempo os convidados foram chegando. Me esforcei para ser visto apenas como um elemento da paisagem: fiquei na minha, a cara enterrada na tela do celular, evitando contato visual. Um dos convidados era um amigo do tempo da polícia. 
- Aí - meu tio gritou e indicou com o queixo a minha direção - tá fazendo jornalismo 
- É mermo?
- É... Mais um pra falar mal da gente.
Fiz um esforço para interagir com eles. Sorri desconfortável e acenei com a cabeça.
- Ó, - o amigo estava agora se dirigindo a mim - você faz lá suas coisas, suas notícias, escreve o que mandarem escrever, mas é só pro seu chefe vê, viu? Só pro salário cair na conta. Não tem nada daquilo não. 

Enquanto almoçava, Tom sentou do meu lado e ficou me encarando. Tom é um dos cachorros da casa. Não sei a raça, mas tem o tamanho de um shitzu. Se eu desse um pedaço da carne, ele nunca mais me deixaria em paz. Dei um pedaço. Me senti obrigado a dar pra Toby e Sofia também. 
Não sei como a conversa chegou nesse ponto, porque na verdade eu não me importava nem estava prestando atenção, mas ouvi sair da boca do meu pai: "não, não era o ideal mas dentro das opções Bolsonaro é o menos pior". Me levantei da mesa e procurei qualquer cômodo vazio dentro da casa pra me entocar enquanto não começava o jogo. 
O gato siamês sem nome passou três vezes arrastando o pelo cinzento macio nas minhas canelas. Me abaixei para fazer um carinho. O gato me mordeu. 

O resultado do jogo vocês já sabem. A essa altura a conversa ia longe e as vozes iam altas. De alguma forma eles chegam na pauta "drogas".  Levando a "drogas na universidade". Um absurdo sem medidas o que acontece nas dependências de uma universidade federal, onde a polícia nem entra e os universitários agem como se não houvessem leis. Condenavam o uso da maconha enquanto o álcool corria misturado com o sangue e continuavam a entornar garrafas de cerveja. Em seguida começaram a falar de drogados em geral, principalmente esses "fudidos", os pobres, os miseráveis, esses que a elite política deixa a polícia pegar pra fazer o que são pagos pra fazer (falo da prática, não da teoria).

Meu tio falou da propina. Falou da tortura. Das sessões de tortura. Fiquei chocado. De fato chocado. Meu pai se moveu com desconforto. Aquele amigo negou tudo. Talvez não estivesse tão bêbado.
- Não, isso aí não. Eu nunca fiz nada disso - ignorou a interjeição alongada e desdenhosa do meu tio. - Eu, EU, sempre trabalhei direitinho, tudo certo, tudo den..
- Tá bom, Tá bom, eu nunca conheci UM polícia que fosse inocente assim, mas tá bom, se você tá falando que você é, tá bom...
Meu pai me cutucou com o cotovelo e fez uma cara divertida enquanto indicava os dois com o olhar. Ele sentiu meu peso e tentou me deixar mais leve, como se eu pudesse ver aquela pequena discussão entre os dois como algo divertido. 
Eu não achei graça nenhuma. 

Saí daquele núcleo narrativo na intenção de voltar a me isolar. Mas meus ouvidos acabaram alugados pelo primeiro patrão do meu pai. Meu avô o mandava pra oficina dele toda vez que "fazia merda". Por algum motivo ele estava animado a comentar política. Apontou os erros dos governos de Lula e de Dilma. Eram muitos. Apontou os prós do governo Bolsonaro. Apontou contras também, coisas que ele "tinha que reconhecer". Vez ou outra meu pai, que resolveu me acompanhar quando mudei de círculo, movia a cabeça negativamente, em discordância. No entanto não o interrompeu nem corrigiu em momento algum. Provavelmente por resquícios da relação de obediência estabelecida desde o início da adolescência. 

Acordei na manhã seguinte com a tv ligada no "PRIMEIRO IMPACTO". A notícia vocês já conhecem: tesoureiro do PT assassinado por uma divergência política em festa temática. E foi assim que comecei meu dia. Atingida pelo espírito brasileiro do tempo presente.
     - Akil Ubirajara 
Por Akil Ubirajara

Um comentário:

  1. Akil, dos textos dessa última leva o seu foi o que mais me agradou, me senti ambientada em tempo e cenário, você tem uma escrita muito agradável e suave, e eu tendo a pensar que menos é mais. Os textos muito rebuscados e cheios frufru normalmente me deixam entediada, gosto do que é simples e objetivo. Obrigada por ter compartilhado conosco um pedacinho de sua vida, de suas angústias, traumas e alegrias, foi um grande prazer desfrutar da sua companhia por aqui.

    Com carinho,
    Lilith

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