sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Alegoria

Ela era música.
Acordes dissonantes, escalas antes nunca ouvidas. Samba, rock. Uma espécie de pop erudita. 
Ele era o violão, largado na areia. Trazido devido ao medo de faltar palavras. Ignorado devido à limitação humana de só possuir duas mãos. 
Ela era um quadro.
Modernismo barroco renascentista. Os seus pelos por pincel. Garota cor de mel. Era um sol lutando pra cair devagar só pra vê-la sorrir um pouco mais. 
Ele era a noite.
Ela o falava as coisas certas, ele a escrevia as coisas boas.

E em meio à falta do que se fazer, à precária lista de lugares aonde ir, o vento os levou a Icaraí. À praia, se é que é permitido chamá-la assim. Nada muito romântico. Totalmente abstrato, na verdade. Poderia ser qualquer lugar do mundo. Pouco importavam os pombos caminhando pela orla, e a iminente ameaça de chuva que nunca caiu. Nem mesmo um outro casal que trazia uma garrafa de vinho, ou o zunido dos carros indo e vindo. Nada era importante: eles estavam ali, e tudo e todos em sua volta, não.

Ele queria conversar. Fascinava-se a cada toque gradativo. Amava reparar no jeito em que as vozes iam perdendo o volume, e os corpos, a distância. 
Mas ela pouco ligava pra futilidades, e o calava a boca com a própria. Sabia que ele era incapaz de resistir. Que eram capazes de qualquer coisa juntos. Que poderia lançar qualquer feitiço que ele simplesmente cairia. 
E ele caia. Pelo pescoço, sem hesitar, sussurrando sonetos inaudíveis. Buscando as horas do dia em sentido anti-horário. Ela levantava a cabeça, piscando forte e devagar, à procura de um ponto para focar seus olhos fechados. A natureza os chamava, pra que resistir? 

E seus corpos se entrelaçavam como um. 
Como se o barulho dos carros fossem gemidos. Como se voassem procurando migalhas e acabassem encontrando o céu. Como se o vinho fosse sangue. Como dois animais.

Ela usava das garras para perfurar suas costas. Ele se contorcia e pressionava o corpo sobre ela, garimpando sua barriga em busca de ouro. Ela empurrava sua cabeça pra baixo como se fosse necessário, como um ponto de exclamação num mandamento bíblico. Mas era pura gravidade. 
Os botões do short abriram-se com certa dificuldade, provocando um pequeno alívio cômico talvez inconveniente pra situação. Mas os dois se fitavam rindo tanto de humor quanto de expectativa. Tanto de caos quanto de paixão. Seu olhar vagabundo de cachorro vadio olhava a pintada e ela estava no cio. 

Ela o agarrava os cabelos, e por uns instantes o prendia pra sempre naquela posição. Ele era a presa, e levantava os braços pedindo socorro, alcançando ferozmente os seios enquanto a beijava a coxa. O predador mostrava os dentes para o mundo, e a fina areia da praia se tornava selva. A música havia deixado de tocar apenas aos ouvidos, e logo os dois corpos dançavam sem comprometimento com o ritmo. Sem comprometimento com nada. Eram dois selvagens vagando pela noite sem qualquer alegoria de racionalidade.

E como em toda canção, a finitude se concretiza e os músicos uma hora têm que parar de tocar. Mas aquela melodia o marcaria pra sempre o subconsciente, assim como foi impossível retirar toda a areia do violão. 
Mas diferentemente dos quadros, momentos não se eternizam, e logo a noite se desfez, fazendo-os finalmente distinguir as coisas certas das coisas boas. 
Adam Sandler

5 comentários:

  1. Leiam escutando Since I've been loving you - Led Zeppelin.

    ResponderExcluir
  2. Embora não tenha sido tão direto, suas metáforas se encaixam perfeitamente e as referências ao universo da música são ótimas. As citações ao mundo de Niterói com certeza situam bem os leitores da Baixada Fluminense. E sua indicação de música no comentário também é ótima!

    ResponderExcluir
  3. Como sempre as metáforas que você emprega em seus textos traz a ele uma melodia e uma fluidez muito boa ao leitor. História muito bem construída e a indicação da música é a cereja que faltava.

    ResponderExcluir
  4. hahahaha a cronica ja é boa, melhora ainda mais depois que voce diz pra ler ouvindo "Since I've been loving you". muito bom!

    ResponderExcluir