sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Às 22 horas

Verão de 1964, minha rotina era diferente das outras meninas de quatorze anos. Eu ia
para o colégio, fazia comida para os meus dois irmãos, estendia as roupas e limpava a
casa. Cresci numa família rica de amor e de bons sentimentos, porém, nossa situação
financeira não era muito agradável, o que gerava aflição e causava algumas brigas
dentro de casa. Minha mãe trabalhava de diarista na casa da Dona Rose e meu pai era
pedreiro, ambos lutavam muito para nos criar, eram os meus exemplos de vida e de
superação. Eles trabalhavam o dia todo e costumavam chegar em casa às 22 horas,
jantavam, faziam algumas tarefas em casa e iam descansar. As rotinas eram corridas,
mas já estávamos acostumados e vivíamos bem com isso. Lembro como se fosse ontem,
uma sexta-feira que nunca terminou. O relógio bateu meia-noite e ele não chegou.
Procuramos em hospitais, delegacias, IML, em todos os lugares, mas não encontramos
nenhuma informação. Ele se foi, sem dar explicação, sem dizer o porquê e sem se
despedir. As comemorações nunca mais foram as mesmas, os comentários da família
nas datas importantes, o dia dos Pais no colégio e a falta da figura paterna retratando
segurança e acolhimento eram acompanhadas de tristeza e dúvidas. Minha mãe foi forte,
exercia bem esses dois papéis e procurava não pensar no que tinha acontecido no
passado, sempre seguindo em frente e lutando para nos proporcionar o melhor. O tempo
passou. Eu cresci, me formei, casei e tive um lindo menino. Mas não escondo que, até
os dias atuais, quando o relógio marca as 22 horas, lembranças vêm e o turbilhão de
sentimentos é inevitável. O adeus mudo que tanto me fez sofrer habitará para sempre
dentro de mim.

Jerry Uffiano

2 comentários:

  1. Adorei o texto! Fácil de lê-lo, de compreender e teve um final que fez meus olhos marejarem um pouquinho. Tem uma boa escrita, foi bem direto, o que eu preciso treinar um pouquinho em mim. Hahaha.

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  2. Concordo com o Billie, leitura muito fluida! Gostei da temática também e do narrador em primeira pessoa. (Sendo bem crítico) achei que poderia, dentro desse tema, transbordar um pouquinho mais de emoção, talvez como alguém abandonado contaria essa história, cheio de balbucios e brilho nos olhos. Ótimo texto!

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