sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Quieta, no banco de trás.

Ela desceu no elevador do prédio, como sempre, afrouxando o rabo de cavalo bem
alto e apertado que seu pai fazia lhe repuxando a testa toda. Foi, como de costume, esperar o
carro que vinha buscá-la para ir à escola. Esperou o tempo passar, brincando com o porteiro,
sempre muito paciente, de jogo da velha e adivinhação. O carro chegou e a senhora que
dirigia dessa vez não estava sozinha. Levou seu filho para ajudar com as crianças. Alto,
branco, magro e de nariz grande. Observações da menina, que entrou e sentou no banco de
trás, logo atrás do carona. Sempre era a primeira da rota e o rapaz conduzia o carro desta
vez.
No dia seguinte, o rapaz estava sozinho e, durante a viagem, a menina olhava através
da janela o dia começar a acontecer e a cidade a ficar movimentada novamente. Foi quando
sentiu a mão do rapaz em sua perna. Olhou para ele, acreditando estar sendo chamada, mas o
mesmo não desviou os olhos do trânsito. Aquela mão enorme, se comparada a da menina,
permaneceu ali. Nunca foi de falar, então permaneceu em silêncio, sem entender a natureza
do toque, que avançou para a beira de seu short-saia azul da escola. Um desconforto tomou
conta da menina ao se sentir tão vulnerável, impotente e exposta. Claro, não sabia na época
identificar esses sentimentos, só sabia que algo estava errado. Ele recolhia a mão apenas
quando necessário ao dirigir o veículo. Um toque frio e desconcertante, que fazia a menina
quieta desejar cada vez mais a entrada da próxima criança no carro.
A menina não comentou com ninguém sobre os toques e caricias. Não via motivo
para importunar seus pais com algo que ela nem sabia dizer o que era. Estava sabendo lidar
com a situação, afinal de contas. Era só se desligar durante o caminho e fingir que não era
com ela, mandar a imaginação para outro lugar e observar, quieta, a cidade acordar enquanto
a mão do rapaz deslizava por debaixo de seu uniforme. O episódio se repetiu por alguns
dias, fazendo com que ela já não ficasse pronta na hora, sempre torcendo para o carro seguir
seu caminho sem ela que, com o atraso, seria levada por seus pais, mas não obtinha muito
sucesso em sua estratégia.
Um dia combinou consigo mesma, em frente ao seu espelho cheio de adesivos, que
não iria mais sentar naquele lado do banco. Decidiu que não era bom sentir vulnerabilidade,
impotência e todas aquelas coisas ruins que não sabia nomear. Desceu, esperou e entrou no
carro, logo mudando de lugar. Foi questionada pelo rapaz, que dizia para ela não sentar atrás
dele e, sim, atrás do banco do carona, como sempre. Ele dizia que dali não conseguia vê-la,
quando, na verdade, não conseguiria tocá-la. A criança permaneceu onde estava, quieta. O
rapaz aceitou, percebendo que ela já tomava consciência de seus atos. Os toques daquela
mão grande e fria pararam, quando a menina continuou escolhendo o outro lado.
A criança, sempre quieta, permaneceu quieta. Aconteceu, mas não lhe feriu o físico.
Na verdade, não entendia o que aconteceu. Não teve pesadelos e o rosto do rapaz não
assombrou sua vida, como acontece nos filmes. Então está tudo bem. Ela foi só mais uma
quieta no banco de trás.

Edmundo Pevensie

4 comentários:

  1. se fosse pra dar uma sugestão, seria trabalhar os sentimentos e ações mais no subtexto. algumas informações parecem sublinhadas demais, como "não sabia identificar esses sentimentos, só sabia que algo estava errado". acho que as pessoas dizem mais através de uma fala aparentemente desconexa ou uma linguagem corporal, do que um comentário de narrador jamais poderia falar.
    não sei se fui claro, mas acho que em suma seria isso: deixar o personagem falar mais por ele do que o narrador.

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  2. A narrativa ficou muito boa, a construção dos ambientes ainda que sucinta ficou boa, é possível construir uma rotina escolar matinal. Concordo com a Alcione, acho que faltou um pouquinho de emoçao

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  3. Acho que a narrativa poderia ser feita mais através do olhar da criança, passando o que ela estava sentindo no momento.

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