domingo, 9 de outubro de 2016


Vida desfeita

Era estranho me ver ali. Ou melhor, ver meu corpo ali. Dizem que antes da gente morrer passa um filme de nossa própria vida bem diante de nossos olhos. Comigo não ocorreu isso. Fui atingida por uma bala perdida enquanto descia minha rua que fica em uma favela no Rio de Janeiro. Tinha acabado de sair de casa e estava indo para a escola. Era dia de prova final de matemática. Eu era péssima em matemática, mas havia estudado muito pra esse dia.
Em questão de milésimos de segundos me desliguei desse mundo. Da minha vida, das minhas condições e preocupações. Por causa de um buraco do lado esquerdo do meu peito eu tive que deixar de lado meus pais e dois irmãos, além do carinha do colégio de quem eu estava afim.
Sou uma adolescente de 16 anos que não vai mais ter que decidir qual será a roupa que vai usar no rolê com a galera na sexta e nem contar pra melhor amiga que o ficante dela é um babaca porque deu em cima de mim. Muito menos reclamar do barulho da obra interminável do vizinho que me impedia de estudar matemática. Me tiraram as brigas com meus irmãos, as aulas do cursinho de inglês e também os capítulos da minha novela favorita. Agora não tenho mais nada disso.
Não sei de onde veio essa bala. Pra mim isso não importa agora. O que importa é que sou um fantasma. Um espírito. Uma alma. Seja lá no que você acredite, sou qualquer coisa que não tem mais um vínculo com nenhuma das coisas que fazia parte da minha vida. Eu deveria estar vendo tudo passar como um filme, como eu disse. Mas não vejo. Só vejo muito choro e desespero daqueles que me amavam. Aqueles que não vou mais poder abraçar e dizer que os amo também.
Você deve estar pensando o quão estranho é esta situação em que me encontro. Não tenho mais vida em carne, não sei pra onde vou e nem mesmo o que sou agora. Esse lance de separar alma do corpo, vida e morte, é realmente muito louco. Mas por mais que isso seja muito assustador, tudo que eu consigo sentir é tristeza. Tenho certeza que se isso não tivesse acontecido comigo, eu teria feito aquela prova de matemática e teria sido aprovada. Uma pena.


Ba2007

11 comentários:

  1. Adorei a criatividade e a forma como a personagem tratou o caso da bala perdida como banal, se preocupando mais com a prova. É um texto perene, rompe as barreiras do lead, por ter um quê subjetivo

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  2. A não especificação de muitos detalhes e a bala perdida dão ao texto permanência no tempo. A retomada da prova no final deu um certo humor ao que estava triste e reflexivo. Gostei de como a separação é tratada no sentido do "corpo"

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  3. Muito bom esse texto, bem original e a preocupação com a prova de certa forma causa uma quebra de expectativa. Embora tenha um tom melancólico, o final é até bem humorado

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  4. Maravilhosoooooooooo! Bom demais! Diferente dos clichês vistos abordou a separação de forma diferente com presença de tons jornalísticos (lead). Amei

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  5. Maravilhosoooooooooo! Bom demais! Diferente dos clichês vistos abordou a separação de forma diferente com presença de tons jornalísticos (lead). Amei

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  6. sensacional! não tem nem o que dizer sobre esse texto!!!!!!! ultrapassa os limites da realidade, é perene, exerce cidadania, nos faz refletir sobre a vida... enfim!!!!!!!

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  7. sensacional! não tem nem o que dizer sobre esse texto!!!!!!! ultrapassa os limites da realidade, é perene, exerce cidadania, nos faz refletir sobre a vida... enfim!!!!!!!

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  8. Gostei muito do tema escolhido, parabéns! Tenta prestar um pouco de atenção com as vírgulas e pontos, pra dar mais ritmo e sonoridade ao texto.

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  9. Muito bom o texto. O tema da separação é tratado de forma muito diferente, e o pov de alguém que morreu foi muito bem feito. Além disso, ficou muito legal a retomada à prova de matemática.

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  10. Em uma palavra? Divino. Texto super original e bem abordado. Parabéns!

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  11. O texto foi maravilhoso! E até agora foi que mais me causou empatia. Me emocionei e seu eu pudesse, correria agora para dizer o quão importante são as pessoas para mim. Parabéns, o POV foi trabalhado muito bem!

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