domingo, 18 de setembro de 2016

Roda de dança, roda da vida.

Petrificado - eu, dono de mim, homem de grossos modos, me vi assim quando passei pela moça que dançava.  De repente, aquela rua suja de uma periferia qualquer se tornou um cenário de romance digno de José de Alencar e suas meticulosas descrições.  Era como se os muros descascando compusessem perfeitamente com a saia da dançarina, como se os corpos moribundos vagando ao fundo estivessem, na verdade, em ciranda, só pra vê-la dançar no meio da roda. E ela ria. Ria segurando a saia, olhando pra noite, cumprimentando sua plateia de bêbados, ambulantes, cachorros magros e garrafas vazias. Todas as cores e sombras se complementavam, compunham uma paleta de vida que refletia naquela saia... e rodava. Rodava minha vida, meus sabores, meu eu.

Eu rodava com ela. E olhava aquele rosto, sardento de sol, que ria com a firmeza de quem sabe que é dona de todos aqueles esquecidos. Acendi um cigarro, já não estava mais só. Agora éramos eu e minha fumaça, dividindo confissões de amor por aquela mulher, pela música, pela ciranda que a vida é. Foi então que percebi um detalhe que meus olhos encantados tinham deixado passar: as mãos da moça ao rodar a saia. Não era um movimento leve como sua dança, era um agarrar desesperado de bicho acoado. Era mão de criança, agarrando a perna da mãe ao perceber que não está mais em casa. Minha musa inspiradora havia, entre uma tragada e outra, se transformado em um ser frágil. O  que guardaria dentro de si aquela moça? Por que tanto punho pra segurar aquela saia?

Cheio de perguntas na cabeça, me aproximei de um bêbado que, dentro do seu desequilíbrio, estava completamente em equilíbrio com o ambiente - tanto fazia parte do cenário que podia ser um muro, uma garrafa, um pedaço do calçamento. Perguntei-lhe sobre aquela mulher que dançava e ele, sem muito me notar, respondeu: "É Maria. Moça boa essa... perdeu seu amor, mas não perdeu a vontade de dançar. Vive por aqui".

Senti na boca o gosto amargo de acordar de um sonho. Entendi que ela não dançava pra mim, nem para as ruas, muito menos para a noite. Ela dançava para ele. Era o seu amor quem ela agarrava naquela saia, suplicando para que ele não se fosse. A mão que segurava a saia era a mesma  que um dia tateou o amor e que agora não tem onde se firmar. Aquela mão era a saudade que ela guardou em si e que agora, sem seu consentimento, participava de sua dança.

Olhei mais uma vez e lá estava Maria, dançando seus sorrisos e agarrando sua dor. Sorri. O ser humano é mesmo uma caixa de surpresas.


Juninho da Adelaide

9 comentários:

  1. Texto legal, porém excedeu o limite de linhas proposto.

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    1. Não era permitido escrever entre 20 e 30 linhas?

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    2. 20 a 25 linhas
      E acho que sua crônica poderia ser mais leve, o título dela parece introdução de unidade de uma aula de Sociologia. Você quis mostrar um certo conhecimento culto e ficou algo forçado, faltou um pouco de humor, ironia ou crítica, e um pouco mais de simplicidade traria a leveza que seu texto precisa.

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    3. Me enganei quanto ao limite de linhas então, obrigada. Quanto ao título: não é esse! Isso foi só o título do email, pra Daniela se organizar. Acho que ela se atrapalhou e acabou colocando aí. E leveza... bem, nem todas as crônicas são leves ou cômicas.

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  2. Achei sensacional a utilização da saia em seu sentido metafórico de "válvula de escape" e como a narrativa foi construída. Um texto existencial e simples em sua interpretação. Parabéns.

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  3. Achei incrível como essa crônica foi escrita, com cada detalhe e a leitura foi bem gostosa. Não teve o usual humor mas não perdeu em nada por isso, escrita muito boa.

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  4. no inicio achei que o recalque partia do homem que olhava a moça dançar, mas dps com o desenrolar da historia era a moça que guardava muitas coisas dentro de si. Gostei da reviravolta que o texto trouxe ao leitor

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  5. no inicio achei que o recalque partia do homem que olhava a moça dançar, mas dps com o desenrolar da historia era a moça que guardava muitas coisas dentro de si. Gostei da reviravolta que o texto trouxe ao leitor

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  6. Que texto lindo. O recalque foi trabalhado de uma forma muito boa, como um detalhe em um quadro. Além disso, a escrita foi ótima, o que dá muita força ao texto. Parabéns, ótima crônica.

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