domingo, 25 de setembro de 2016

Você lembra?

    Não vou enganar que sempre me senti privilegiada por ter crescido em bairro nobre do Rio. Por ter frequentado as melhores escolas, por ter feito ballet, ter estudado francês, por conviver com pessoas influentes. Isso é tudo que os pais sonham em proporcionar para os filhos. Desde que eu nasci, Verinha trabalha lá em casa. Ela uma daquelas pessoas que entram em sua vida se torna da família. Talvez seja porque trazia suas filhas para brincar comigo aos sábados, talvez por me contar as melhores histórias, talvez pelos biscoitos caseiros ao final da tarde. Verinha é como uma mãe pra mim.
    Sou filha única e planejada. Meus pais coincidiram meu nascimento com as férias de mamãe, que ainda com a licença pouco conseguiu acompanhar meu crescimento diário. Não a culpo. O trabalho a impediu que assistisse o meu primeiro passo. Nem mesmo papai, que por cansaço, não estava para vibrar comigo naquela manhã de sábado que pedalei pela primeira vez sem rodinhas na lagoa. O sucesso profissional deles era o meu. Eu tinha que entendê-los.
    Só que lembra quando você aprendeu a comer sozinho? Quando o seu primeiro dente caiu? E quando você deu o primeiro laço sozinho no tênis, que mesmo mal feito, alguém insistiu em dizer que estava perfeito? Então, Verinha estava sentada a minha frente na primeira colherada, estava também tentando desenterrar meu dente da maça que eu mordi. E sim, ela comemorou quando eu dei aquele laço frouxo.
     Verinha não podia morar num cartão-postal, não teve condições de pagar uma boa escola para as suas filhas, um intercâmbio para que elas aprimorassem o francês, nem proporcionar que elas pudessem compor, quem sabe, um grupo de dança clássica como eu. Só que melhor que ninguém, valorizou momentos que transcendiam a convenção social. Eu vivi uma vida querendo estar ali, naquele bairro que o carteiro é amigo do Sr. Zé da padaria, que eu pudesse ser conhecida como "a menina de Verinha". Não me envergonho de confessar que cobiçava aquela vida. Envergonho-me de olhar para o joelho e não ver aquela cicatriz como faziam elas: as meninas de Verinha.  


Sam Castiel

9 comentários:

  1. Muito bom!! Achei bem escrito e legal o fato da inveja ser das coisas simples, diferente do que se esperaria

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  2. Lindo texto! Abordou uma temática bem cotidiana e recorrente por uma perspectiva diferente e surpreendente.

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  3. amei! exerceu cidadania e criou uma proximidade com o leitor.

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  4. amei! exerceu cidadania e criou uma proximidade com o leitor.

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  5. A maneira que cita situações que todos passam cria aproximação com o leitor, além de a narração em primeira pessoa dá um clima de confissão. Achei legal e o tema exerceu cidadania.

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  6. Gostei muito do texto! E acho que aborda, além da inveja, um assunto bem recorrente e até mesmo delicado.

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  7. Gostei muito do texto! E acho que aborda, além da inveja, um assunto bem recorrente e até mesmo delicado.

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  8. Gostei a forma que trabalha o tema proposto e exerce a cidadania.

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  9. Gostei como trabalhou que mesmo tendo tudo do material, não estamos completos sem o essencial que é dividir momentos com quem amamos. Acho um texto perene e bem emotivo. Parabéns!

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