sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Pedras

Meu pai se chama Pedro. Costumo falar que tudo na vida dele gira em torno da letra P porque, além do nome, ele é professor, promotor e quase sempre tá puto. Não sei se ele acha muito engraçado, mas eu adoro. Fica puto quando tá passando mal, puto quando faz merda no trânsito, putíssimo com os jogos do Flamengo e, o meu favorito, puto do nada sem motivo nenhum. Falando assim pode parecer que ele não é um cara legal, mas prometo que é. Ele fica puto, mas não é agressivo. Ele tenta guardar as coisas pra ele, sabe? E às vezes explode.


Assim como eu tive que fazer, ele aprendeu que tem que se segurar um pouco quando a ira bate, porque a probabilidade dele se arrepender mais tarde do que fez e disse é grande. Por isso ele toma o maior cuidado quando vai postar algo na internet. De vez em quando ele não se aguenta e solta um comentário irônico, uma piadinha que os alunos dele fingem gostar pra puxar um saco. Mas nem todos os Pedros têm a mesma sorte. Ou talvez meu pai só não tenha escrito a correta frase errada ainda.


Não conheço os outros Pedros. Não sei o que os fazem putos, quais piadas eles aceitam para não cair na pilha de suas filhas. Não sei seus nomes, como estão suas vidas, como veem o mundo. Mas de alguma forma tenho o poder de os cancelar. E eu tenho certeza de que meu pai, se tivesse a notoriedade necessária, seria cancelado. Porque todos temos potencial de cancelamento. Acho que todo mundo sabe disso. Ou não, porque eles ainda existem junto com os linchamentos virtuais. Sei lá de onde veio essa ideia de que a melhor forma de lidar com divergências era abrir ainda mais a fenda que as separa. 



Mas temos a mania como sociedade de manter hábitos prejudiciais, de criar cisões e mais cisões entre o eu e o imaginário outro. É, não acho que essa cultura vá desaparecer. Compartilho esse P de pessimista com meu pai. Mas as chances são que dessa vez estamos certos. Sempre haverá aquele que justificará sua pedra lançada ao ar, pois afinal, Pedro paga pelo próprio pecado.

Souza Queiroz

4 comentários:

  1. Adorei a forma com que você demonstra que todos poderiam estar no lugar do professor atacado virtualmente a partir do paralelo com seu próprio pai, que coincidentemente também se chama Pedro.
    Também amei a imagem das fendas que criamos a partir das divergências, e o jeito que você aborda seu pessimismo em relação a elas. Parabéns!

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  2. Ótimo texto, ficou bem legal e fugiu do comum o texto entorno do "pai Pedro" e a colocação das palavras com P.

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  3. Adorei esse jogo com o uso da letra P e a forma como na ultima oração todas as palavras se iniciam com tal letra. Seu texto é muito bom, continue assim, Souza.

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  4. Gostei bastante. O ponto alto do seu texto foi você ter conseguido demonstrar também por meio de sua LINGUAGEM (como o modo com o qual construiu as frases e o ritmo de seu texto), o quanto essa situação é passível de, e inclusive já ocorre por aí com frequência, não sendo portanto, capaz de DEFINIR ou enquadrar alguém... Além disso, algumas passagens também mereceram destaque, como: "Ou talvez meu pai só não tenha escrito a correta frase errada ainda" e "Sei lá de onde veio essa ideia de que a melhor forma de lidar com divergências era abrir ainda mais a fenda que as separa", as quais sintetizaram, inteligentemente (assim como sua forma de construção antes citada), a mensagem do texto.

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