Vidas Secretas
Tão
numerosas quanto as ondas do mar que dividem as duas cidades são elas. Algumas são impossíveis de
enxergar, seja porque estão muito distantes, ou porque se misturaram ao
cenário. Seja porque não nos interessa reparar ou porque é estranho ficar
olhando. O mais curioso é pensar que a história de cada pessoa no planeta se passa
através de uma delas.
Estão
espalhadas por todos os cantos do mundo. Ninguém poderia viver na sociedade que
instauramos sem uma delas na vida. Infelizmente, a tendência é migrar para as
versões digitais como se fossem possíveis de serem comparadas as reais, ou
sequer, ao acesso que elas permitem. Entusiastas culpam e enaltecem o avanço
das comunicações, mas desde o primeiro sistema operacional elas estavam
presentes. Não apenas visualmente, mas nominalmente. Passaram a ter um duplo
sentido numa outra língua e hoje transitam pelos dois mundos. Ou contemplam a
paisagem das duas cidades divididas pela baía e suas numerosas ondas. Tantas
quanto elas, como num ciclo, numa
repetição.
Elas também se repetem. Pelos andares dos
edifícios, pelos aviões que pousam na pista do aeroporto, pelos navios, carros,
barcos e praticamente tudo que os olhos conseguem ver e tenha sido construído
pela ação humana. Sempre acompanhando as vidas. Refletindo os momentos de
glória e desespero. De conquistas e perdas. De tudo. Neste exato instante, do
outro lado do oceano, uma delas exibe uma secretária bilíngue caminhando pelo
corredor até a sala do chefe que está prestes a oficializar a demissão. Numa
outra, um rapaz recebe o telefonema da mãe que vive em outro estado, avisando
que já recebeu alta do hospital. No meio da ponte, um sujeito engraçado com
terno surrado, canta sua música favorita aos berros dentro do carro, enquanto
ensaia seu número de stand-up. Dentro da barca, cruzando o oceano, uma velhinha
se prepara para encontrar um amigo na cafeteria do centro, enquanto ajeita seus
cabelos grisalhos com um espelhinho de mão. E bem lá ao fundo, na outra ponta
da baía, no alto, içados por cabos de aço, os turistas franceses tiram inúmeras
fotografias com seus celulares, seguindo para o alto do pão de açúcar. Tudo
isso, através delas. Seja possível enxergar, ou não. Dando atenção, ou
ignorando completamente.
Ao
final da tarde, elas ganham um
destaque, mas são subestimadas. O contorno da luz alaranjada, lançada pelo sol
que se esconde atrás das colinas é o astro principal. O céu fica multicolorido
com nuvens iluminadas e brilhantes. Esse é um dos motivos para o adjetivo
“maravilhosa” se misturar ao nome da cidade e servir como propaganda. Mas até a
paisagem será vista através delas, com certeza. Principalmente em sua versão
digital. Basta um clique e a fotografia está feita. Registrada aos milhares
diariamente. Vista por muitas telas e através delas também.
Mas
como as grandes histórias sempre têm um ponto de virada, para elas, esse ponto é quando a noite cai.
Seu protagonismo fica evidente. Não há como não notar a presença delas. Nem os
mais desatentos são capazes de ignorar. Nem os mais indiferentes conseguem se
distanciar. Elas continuam por lá,
com mais destaque do que nunca, acompanhando as histórias e as vidas. Todas
iluminadas com luzes artificiais. Pode ser a vida dos turistas franceses que
agora precisavam de uma tradutora e tinham acabado de encontrar uma secretária
bilíngue recém demitida. Ou então a do comediante que descobriu sobre a melhora
da mãe, através do irmão, e ficou mais confiante para se apresentar. Ou ainda
pode ser a história do casal de velhinhos que decidiu assistir na última hora a
um show de stand-up. Não importa. Elas
estão lá para todas as histórias do mundo e continuarão por muito tempo. Todas
iluminadas e brilhantes, refletindo os passos de cada um.
E em
cada noite fria ou quente, com chuvas ou ventos, as luzes que as atravessam se
refletem pelas ondas do mar. Se estendendo e aumentando o brilho ao longo da
costa. Mas se você ainda não percebeu nada disso, olhe agora mesmo através de
sua janela.
P. J. Souza
eu to sem palavras. minha mente apenas acaba de explodir. é brilhante a parte que você conecta todas as histórias em uma só.
ResponderExcluirGENIAL, GENIAL, GENIAL!!!
pj, sou seu maior fã cara. obrigado por isso.
A sua perspectiva contemplativa das peculiaridades desse cenário é ímpar e a maneira como dá grandiosidade a cada história singular de uma pessoa é fantástica, nenhum defeito novamente!
ResponderExcluirAmo a forma como você descreve as cenas, sempre tão detalhista! Parabéns pelo texto maravilhoso, PJ!
ResponderExcluirMais um texto seu incrível!! A forma sútil e detalhista que você usa para descrever as cenas e as histórias dão vida a crônica! Parabéns!
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