sexta-feira, 8 de novembro de 2019


Vidas Secretas

Tão numerosas quanto as ondas do mar que dividem as duas cidades são elas. Algumas são impossíveis de enxergar, seja porque estão muito distantes, ou porque se misturaram ao cenário. Seja porque não nos interessa reparar ou porque é estranho ficar olhando. O mais curioso é pensar que a história de cada pessoa no planeta se passa através de uma delas.
Estão espalhadas por todos os cantos do mundo. Ninguém poderia viver na sociedade que instauramos sem uma delas na vida. Infelizmente, a tendência é migrar para as versões digitais como se fossem possíveis de serem comparadas as reais, ou sequer, ao acesso que elas permitem. Entusiastas culpam e enaltecem o avanço das comunicações, mas desde o primeiro sistema operacional elas estavam presentes. Não apenas visualmente, mas nominalmente. Passaram a ter um duplo sentido numa outra língua e hoje transitam pelos dois mundos. Ou contemplam a paisagem das duas cidades divididas pela baía e suas numerosas ondas. Tantas quanto elas, como num ciclo, numa repetição.
Elas também se repetem. Pelos andares dos edifícios, pelos aviões que pousam na pista do aeroporto, pelos navios, carros, barcos e praticamente tudo que os olhos conseguem ver e tenha sido construído pela ação humana. Sempre acompanhando as vidas. Refletindo os momentos de glória e desespero. De conquistas e perdas. De tudo. Neste exato instante, do outro lado do oceano, uma delas exibe uma secretária bilíngue caminhando pelo corredor até a sala do chefe que está prestes a oficializar a demissão. Numa outra, um rapaz recebe o telefonema da mãe que vive em outro estado, avisando que já recebeu alta do hospital. No meio da ponte, um sujeito engraçado com terno surrado, canta sua música favorita aos berros dentro do carro, enquanto ensaia seu número de stand-up. Dentro da barca, cruzando o oceano, uma velhinha se prepara para encontrar um amigo na cafeteria do centro, enquanto ajeita seus cabelos grisalhos com um espelhinho de mão. E bem lá ao fundo, na outra ponta da baía, no alto, içados por cabos de aço, os turistas franceses tiram inúmeras fotografias com seus celulares, seguindo para o alto do pão de açúcar. Tudo isso, através delas. Seja possível enxergar, ou não. Dando atenção, ou ignorando completamente.
Ao final da tarde, elas ganham um destaque, mas são subestimadas. O contorno da luz alaranjada, lançada pelo sol que se esconde atrás das colinas é o astro principal. O céu fica multicolorido com nuvens iluminadas e brilhantes. Esse é um dos motivos para o adjetivo “maravilhosa” se misturar ao nome da cidade e servir como propaganda. Mas até a paisagem será vista através delas, com certeza. Principalmente em sua versão digital. Basta um clique e a fotografia está feita. Registrada aos milhares diariamente. Vista por muitas telas e através delas também.
Mas como as grandes histórias sempre têm um ponto de virada, para elas, esse ponto é quando a noite cai. Seu protagonismo fica evidente. Não há como não notar a presença delas. Nem os mais desatentos são capazes de ignorar. Nem os mais indiferentes conseguem se distanciar. Elas continuam por lá, com mais destaque do que nunca, acompanhando as histórias e as vidas. Todas iluminadas com luzes artificiais. Pode ser a vida dos turistas franceses que agora precisavam de uma tradutora e tinham acabado de encontrar uma secretária bilíngue recém demitida. Ou então a do comediante que descobriu sobre a melhora da mãe, através do irmão, e ficou mais confiante para se apresentar. Ou ainda pode ser a história do casal de velhinhos que decidiu assistir na última hora a um show de stand-up. Não importa. Elas estão lá para todas as histórias do mundo e continuarão por muito tempo. Todas iluminadas e brilhantes, refletindo os passos de cada um.
E em cada noite fria ou quente, com chuvas ou ventos, as luzes que as atravessam se refletem pelas ondas do mar. Se estendendo e aumentando o brilho ao longo da costa. Mas se você ainda não percebeu nada disso, olhe agora mesmo através de sua janela.

P. J. Souza


4 comentários:

  1. eu to sem palavras. minha mente apenas acaba de explodir. é brilhante a parte que você conecta todas as histórias em uma só.

    GENIAL, GENIAL, GENIAL!!!

    pj, sou seu maior fã cara. obrigado por isso.

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  2. A sua perspectiva contemplativa das peculiaridades desse cenário é ímpar e a maneira como dá grandiosidade a cada história singular de uma pessoa é fantástica, nenhum defeito novamente!

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  3. Amo a forma como você descreve as cenas, sempre tão detalhista! Parabéns pelo texto maravilhoso, PJ!

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  4. Mais um texto seu incrível!! A forma sútil e detalhista que você usa para descrever as cenas e as histórias dão vida a crônica! Parabéns!

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