Parte 1
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Hoje é o primeiro dia no primeiro emprego. Normalmente os jovens ficam muito assustados com essa oportunidade inicial, e comigo não é diferente. Chego na loja e vejo o meu novo lar, onde irei passar boa parte do dia, meus novos colegas de trabalho, que compartilharão comigo os momentos vividos nessa lanchonete, e meus novos clientes, dos quais não sei quando verei novamente. É como se um universo novo fosse aberto para mim, e devo aprender o máximo com essa experiência. Troco de roupa o mais rápido possível e boto o uniforme, que fica um pouco largo, mas eu gosto assim. Preciso mostrar serviço para os gerentes, especialmente o de bigode, pois ele me deixa um pouco assustado, já que seu jeito é intimidador. Enquanto ele fica cofiando seu bigode, a treinadora se apresenta e começa a falar sobre o funcionamento da loja, repetindo milhares de vezes o conceito Padrão de um jeito que eu nunca vou esquecer. Ao final do discurso, ela me leva para apresentar os ambientes da cozinha. Ao passar pelo caixa, vejo um funcionário que me chama atenção, mas não pelo seu rosto, e sim pelas suas mãos, que são bem diferentes do comum. Elas aparentam ter sofrido queimaduras muito sérias, das quais eu não quero nem imaginar, pois a dor já começa a me consumir. Tomara que não tenham sido causadas por um acidente de trabalho, pois é a última coisa que desejo para qualquer um. A treinadora puxa assunto depois que me nota um pouco desatento,
Aproveite essa oportunidade que você está recebendo, pois mesmo com muita vontade, não são todos que tem a mesma sorte, porque tem muita gente procurando emprego pra pouca vaga, principalmente aqui. Dê o seu melhor para garantir seu espaço, senão vai acabar sobrando.
Por mais que ela seja uma autoridade pra mim, o jeito de sua fala é atencioso, como se fosse uma tia que se preocupa com a criação do sobrinho. Porém não uma tia chata, mas uma tia boa, daquelas que estão sempre de olho, com carinho.
No break, começo a tentar me entrosar com o pessoal, afinal, eles serão minha “família” por alguns meses. Felizmente, o menino das mãos queimadas é muito receptivo e me apresenta os funcionários, dizendo sempre seus apelidos, e nunca seus nomes,
Esses são o negro, o cristão, o poeta e o de patins, que são meus colegas mais próximos aqui dentro. Havia também a baixinha (o resto ri ao fundo), mas ela foi demitida, dizem por aí que foi porque ela foi pega roubando... Mas não sei. Espero que você goste daqui.
Todos me dão as boas-vindas, o que me deixa bem contente. Ser acolhido por eles faz com que o trabalho fique mais leve, mais tranquilo. O dia vai fluindo bem e tudo vem dando certo, não tem como ser melhor. Acho graça quando vejo o menino das mãos queimadas ficando sem jeito ao ver a entrada de uma menina de óculos na loja. Ela segura um livro na mão, mas não consigo ler o nome dele, pois estou sendo observado de perto pela treinadora, que vai me ensinando como usar o esfregão,
Pensa no símbolo do infinito e vai andando para trás.
Meu turno se encerra e bato meu primeiro ponto para ir embora. Troco de roupa e me despeço dos outros funcionários, que foram bastante receptivos comigo. Volto andando para casa e vou refletindo na rua sobre como foi meu primeiro dia foi agradável. Ao voltar para casa, vejo um menino brincando no portão de casa com a mãe e sendo observado por uma senhora, talvez sua vó. É uma casa bem humilde, mas eles não parecem infelizes com ela, pelo contrário, pois, sabendo que vivemos num período de muita incerteza e inflação, qualquer teto garantido é aceitável. Sigo andando com a cabeça focada em chegar em casa, pois o primeiro dia me deixou exausto, mas ainda tenho que estudar para o vestibular.
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O tempo passou e hoje, faz 8 meses que comecei a trabalhar na loja. A essa altura, já vi muita coisa acontecer na loja e algumas mudanças aconteceram. Depois de uma greve por causa de atraso no pagamento dos funcionários, demitiram o negro, que já estava revoltado com os gerentes da loja há bastante tempo. Mas o mais impressionante aconteceu com o menino das mãos queimadas. Além de começar a namorar com a menina que mexeu tanto com a cabeça dele, ele conseguiu também ser aprovado no vestibular. Entretanto, quanto maior o salto, maior a queda. O padrasto dela apareceu na loja e contou a ele que eles eram irmãos por parte do pai. Sim, isso mesmo, irmãos, é difícil até para eu escrever. Consequentemente, após ter a confirmação de que ela estava grávida do próprio irmão, ela cometeu suicídio. É complicado para falar sobre isso, mas infelizmente é necessário informar, e isso soa irônico, pois o menino está cursando jornalismo. E, quanto a mim, sigo trabalhando duro, tanto que fui premiado por ser o Melhor Funcionário do Mês, trazendo-me uma felicidade gigante. Agora, irei parar de escrever, pois estou no caixa e o próximo da fila é você.
Crescer é realmente difícil. Há tanta mudança em nossas vidas que ficamos desnorteados, como se tivéssemos tomado uma surra. Contudo, a nossa adolescência é uma das fases mais lindas da nossa vida, onde tudo é novo e guarda uma aventura. E uma dessas aventuras foi ler O próximo da fila. Fiz essa crônica como se estivesse imerso na história do menino, que não recebeu nome durante todo o enredo. O menino era um narrador onisciente, o que tornou a história muito interessante, já que acompanhei as tramas da vida dele, mas tudo que estava por trás (que ele não deveria saber) já era bem claro para o leitor. Os personagens do livro estão citados na crônica, isto é, seus colegas de trabalho e sua família, que eram carismáticos em sua maioria. O livro se passar numa lanchonete fugiu totalmente dos clichês e tornou o cenário muito atrativo, já que era descrito com muita precisão, dando corda para a imaginação alheia. A linguagem aproximada do público jovem foi muito bem recebida, pois o contato com a história ficou muito mais intenso. E o enredo, passado predominantemente durante o governo Collor, foi sensacional, pois todos os fatos vividos na narrativa faziam sentido e eram bem resolvidos, atraindo os leitores para continuar lendo. Escrevi essa crônica como homenagem ao autor e para contar um pouco da história do livro, que posso afirmar com firmeza: Foi um dos melhores que já li. E esse parágrafo em itálico tem uma razão: era assim que o Henrique escrevia antes de começar as partes do livro, como se fosse o menino, anos depois, dando um parecer sobre a história, toda escrita em guardanapos. Esse romance de formação ficou marcado na minha história, sou grato por ter sido O próximo da fila.
Por Maria Joana.