terça-feira, 22 de maio de 2018

Dor, gordura e os ventos da mudança

“Li e ouvi várias vezes: crescer dói”. O próximo da fila, de Henrique Rodrigues, é um romance de formação, ou seja, retrata a passagem da adolescência para vida adulta: novas responsabilidades, conciliação entre trabalho e estudos, a primeira vez, o primeiro amor... Após a morte do pai, o protagonista se vê no dever de ajudar a família. Jovem e inseguro, mas cheio de energia, ele consegue emprego em uma rede de fast-food. 

Não é explícito em que momento histórico se passa a história, porém alguns detalhes o revelam ao longo do livro – a nota de 50 cruzados novos, a chacina da Candelária e o confisco da poupança – denotam que se está no governo Collor, entre 1990 e 1992.

A história aborda problemáticas do cotidiano de muitos, como o preconceito vivido por filho de pais separados ou de mãe solteira, homofobia, racismo, exploração do trabalho, ética, religiosidade, abuso infantil e violência doméstica. 

O foco principal da trama está na lanchonete, lugar onde centenas, talvez milhares de pessoas passam todas os dias e como seus funcionários são “absorvidos pelo padrão”. Seguir o padrão, essa é a maior lei de lá. Com isso, gerando uma robotização daqueles que lá trabalham: “boa tarde, boa noite, bom lanche, seu troco, volte sempre...”, estão programados.

Já a escolha do espaço no qual se passa a história tem um motivo. São locais íntimos: casa, escola e a lanchonete, dos quais o autor tem conhecimento prévio, descartando, assim, a necessidade de uma pesquisa de campo para observações e experimentações.

Os cenários da trama atuam quase como personagens, trazendo o tom da cena: na casa que deixou após a morte do pai, havia o vazio, simbolizando a tristeza e solidão, já na nova casa, o aperto e falta de espaço remetem a pressão e tensão. Em muitos momentos também, entra em cena a sinestesia: cheiro da gordura, as cores fortes e luzes dos letreiros estão presentes, principalmente no local de trabalho.

Na maioria do tempo, utiliza-se a voz narrativa em 1ª pessoa. Trata-se de um narrador-personagem, isto é, vemos o ponto de vista do protagonista, que é o mesmo que narra os acontecimentos ao leitor. Embora aparente, muitas vezes, ser um narrador onisciente, devido as específicas descrições que são apresentadas.
O tempo verbal é quase sempre o presente, o leitor acompanha a vida do protagonista em “tempo real”, é como se crescessem junto do personagem, vivenciando e reagindo aos fatos, ao mesmo tempo. 

A exceção é o capítulo 6 da primeira parte, no qual é exposto o passado da mãe do protagonista, este é também um momento mais pesado, em contraste com o restante da obra.

É possível notar signos, metáforas presentes no livro, tais como o momento em que o garoto deixa um copo cair no chão, quebrando-o, na presença repressiva de seu pai; e depois, novamente derruba um copo, mas dessa vez, que não se quebrou, pois estava protegido por jornais, assim como o menino estava protegido pelo carinho da tia. Ou quando ele queima a mão na chapa, perdendo as digitais, mas mantendo o “M” na palma, o que simboliza a sua perda de identidade, após se tornar mais uma “peça da engrenagem”.

Além disso, adota-se uma linguagem direta, sem marcação que indiquem suas falas, pendendo quase para o indireto-livre. Essa estratégia de escrita adotada traz mais fluidez à leitura, já que, apesar de, algumas vezes, as divisões não estarem bem definidas, as gírias e o trejeitos da fala de cada personagem estão presentes, evitando que haja confusões em relação a quem são os emissores do momento.

Por sua vez, os personagens da narrativa são anônimos, identificados através de suas características físicas, por exemplo, a baixinha, o gerente de bigode, o negro, a garota de óculos e cabelos encaracolados... Vale notar que apenas fisicamente. A construção de suas personalidades é feita gradativamente, ao longo da narrativa:

A instrutora é calma e madura, pois já tem um tempo considerável no local e evita se intrometer nos assuntos dos outros, porém afetuosa. O negro é um tanto revoltado com as injustiças que presencia, talvez marcado pelo contexto de preconceito e desigualdade social a sua volta A namorada é inteligente sensível, mas um pouco retraída em relação à família. Há também personagens estereotipados, mas baseados em reais, como o cristão, o poeta e o do patins, que trazem um tom a mais de comédia.

Estes foram alguns exemplos.

Finalmente, no clímax do livro, revela-se que seu pai teve outra família, na qual teve outra filha, que supreendentemente, é a sua namorada, grávida! Esta que, abalada pela revelação, comete suicídio. Após dois segundos de êxtase e epifania, vem à tona como a conclusão é clichê: incesto, vida dupla, paixão interrompida pela morte; dignos de novela mexicana das chamadas “Marias” que passam todas as tardes na TV. 

Impressionantemente, o próprio livro te diz isso. Não te dão muito tempo para pensar. Logo chega o segundo plot twist: essa história não é uma biografia, como havia dito. É uma mistura de lembranças e imaginação, realidade e ficção, realizada na cabeça do protagonista e do próprio autor. Algo já esperado por aqueles que leram mais atentamente. Alguns pontos trazem pistas dessa mescla: a descrição minuciosa dos locais e cenários, que exigiria uma memória quase sobre-humana do autor, o encontro com seu “eu do futuro” e, é claro, o fatídico incesto.

Uma reviravolta quase perfeita, se não fosse pelo curto tempo entre as duas revelações, que fazer perder boa parte do impacto emocional que teriam caso houvesse mais tempo para desenvolvê-las. Mais 2 ou 3 páginas, talvez. Além disso sente-se também falta de uma conexão entre o início e o fim da história, já quem ambos se passam no famoso fast food.

O próximo da fila é um livro que não tem muita ambição, conta como um garoto, assolado por uma tragédia familiar, teve que crescer e amadurecer. E, talvez por isso, devesse ter mantido essa simplicidade em sua conclusão. Por outro lado, pode ter trazido uma identificação com vários jovens, que se reconheceram no garoto sem nome. 

No geral, é uma ótima experiência de leitura, que passou e, infelizmente, ainda passará despercebida por muitos, devido a suas capa e sinopse não muito atrativas. Afinal, quem quer saber sobre um garoto com uma espátula ou um esfregão? Agora, eu quero.

Por Homem de Lata.

5 comentários:

  1. Sua resenha ficou muito boa! Abordou exatamente o que tinha que abordar, mas achei que foi objetivo demais, é isso e pronto, a linguagem é assim e pronto, a batata frita acabou e pronto. Mas você encerrou com chave de ouro. Acho que muita gente ficou tão impactada pelo final do livro que não percebeu essa outra visão, você se expressou muito bem (a parte das novelas mexicanas haha)

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  2. EU AMEI O FINAL! a resenha ficou o que tinha que ficar, sabe? hahah você não fez nada de especial ao longo do texto, mas não vi problema nisso. Parabéns!

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  3. Ficou ótimo!! Abordou o que tinha que abordar. Achei muito bom o jeito que você desenvolveu durante a resenha os tópicos que o professor pediu que fossem utilizados.

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  4. Abordar os cenários como personagens foi uma ideia muito boa! eu adorei a resenha toda, a formalidade de análise foi meio quebrada com a diversão dos comentários de crônica, muito bom.

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  5. Perdão pelos erros de digitação. Faltou um pouco mais de atenção... :)

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