sexta-feira, 11 de maio de 2018

Eram ficcções

O confessionário é um estande pequeno e fechado, feito de madeira envernizada e com vários detalhes entalhados a mão. Nesse pequeno espaço, de bancos de veludo vermelho, homens e mulheres buscando o perdão divino por seus pecados, e vêm até mim buscando ajuda nessa tarefa. Eu já tinha ouvido de tudo nesses anos como padre. Mesmo assim nada havia me preparado para a confissão daquele escritor.

Quando criança sempre pensei que confessar os pecados era algo que só gente ruim fazia, daquelas que a televisão mostra todos os dias: ladrões, matadores, sequestradores, e muitos outros, em um “looping” que parece eterno. Então passei a observar que quem ia se confessar com o Padre Augusto nas manhãs de domingo, era na verdade, gente que eu sempre considerei boa e incapaz de pecar. Fiquei confuso e ao mesmo tempo muito curioso, talvez essa curiosidade tenha até sido um estímulo para eu me dedicar à Igreja e não a literatura.

Meu maior exemplo era Rodolfo Azevedo. “A moça do coração em chamas”, “Pendurado por um fio” e “A paz me chama” eram alguns de seus livros, mas nenhum deles se equiparava com sua obra prima: “Eu fiz isso por amor”. Não consigo explicar a mistura de sensações que essa leitura me provocava a cada página que eu lia, era algo totalmente surreal. Suas páginas retratavam um amor puro e inocente, entre adolescentes em suas férias de verão. Esse livro para mim, era como retornar a um período da minha vida que nunca existiu, mas se houvesse existido, poderia ter sido tão especial quanto nesse romance. Era a concretização de um de meus vários sonhos em páginas amareladas e protegidas por uma capa dura. Eu queria ter aquilo. Eu queria ser ele.

Enquanto ele confessava seus pecados para mim, um leitor ávido de seus romances e ao mesmo tempo uma autoridade religiosa, eu me encontrava numa situação de conflitos internos intermináveis. Como podia um homem que eu considerava perfeito por ter vivido tudo que escrevia, ser capaz de cometer tantos pecados? Os livros e o autor eram quase opostos. Ele era uma mentira, tudo era uma mentira. Como pude me deixar enganar pelas palavras dele? Como pude querer ser este ser humano? Como pude colocá-lo em uma posição de quase santo para mim?

E enquanto sua voz pecadora ia ficando cada vez mais distante, a única coisa que eu conseguia pensar, era em meu sonho idealizado sendo aos poucos destruído pelo próprio criador.

Por Aurora Munds.


3 comentários:

  1. Gente, esse texto me surpreendeu. É algo que eu nunca esperaria, e eu gosto de coisas não previsíveis. Adorei, e incrivelmente bem escrito.

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  2. Uou, que pesado!
    Mas eu acho que todos são assim... As pessoas tem tantas coisas encobertas, que se todos nós soubéssemos, ficaríamos provavelmente horrorizados!
    Gostei bastante do texto porque fugiu de temas mais óbvios e trouxe a visão de um personagem muito curioso :)

    Mary-Louise P.

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  3. Parabéns pela criatividade, foi o ponto que mais me chamou atenção no seu texto! Adorei o fato de você ter abordado a perfeição que construímos sobre autores, personagens e figuras públicas, em geral. Além de ser um texto muito bem escrito. Parabéns!

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