terça-feira, 22 de maio de 2018

Pegue, observe, abra. E leia além do superficial.

A capa do livro é a primeira coisa que atrai. Os olhos crescem, o estômago se contorce, a boca saliva... “O Próximo da Fila” é o nome dele. “Como eu queria ser o próximo da fila para comer essas batatas” é o que você logo pensa. Mas o interesse não para aí. Quem seria “O Próximo da Fila”? O questionamento alimenta suas ideias, que se clareiam um pouco ao ler a sinopse. O livro narra a história de um rapaz que começa a trabalhar em uma rede de fast food para ajudar sua mãe viúva e a situação financeira da família. Diz o autor da sinopse que ele é um “romance de formação”, o que te faz perguntar como seria esse tipo de narrativa. Mas essa é uma pergunta deixada para o final. Você decide ler, mesmo sem saber o quanto sua visão poderá ser transformada após aquela leitura.

Nosso primeiro encontro com o personagem é narrado em terceira pessoa. Um narrador onisciente, que apesar de sua visão externa, consegue enxergar detalhes do íntimo daquele personagem. O narrador empresta olhos a você e num momento estamos naquela lanchonete, ao lado do próximo da fila. Você não conhece esse homem que pede um hambúrguer qualquer e olha de forma tão nostálgica para aquele lugar. Mas você sabe que aquela lanchonete não é apenas presente, como passado desse homem, e logo você começa a conhece-lo. Iniciando pela parte em que ele começa a escrever a própria história...

No momento seguinte já não é mais uma narração externa. Você está dentro da mente do personagem, lendo cada pensamento em 1ª pessoa. Vemos a infância de um menino com conflitos entre seu pai, que se estendem até mesmo após a morte deste. Toda vida confortável que ele tinha é deixada para trás, e uma nova jornada difícil começa. A narração nos situa bem no Brasil dos anos 90, com as trocas rápidas de dinheiro acontecendo, a inflação subindo. Pela visão do autor, vemos sua segunda tia e sua mãe tentando protegê-lo e mimá-lo, enquanto a primeira tia exige cada vez mais dele, apresentando a chegada de tempos de dureza. 
         
Vemos um menino crescer, se tornar um rapaz que precisa escolher ajudar em casa. E reconhecemos quando voltamos àquela lanchonete, com aquelas filas, o cheiro de gordura, o atendimento sistemático. Pelos olhos do personagem, é possível enxergar o Padrão que rege aquele lugar. O tempo de fritura, tempo de atendimento, modo de limpar o chão, tudo é encaixado de modo perfeito no ritmo de trabalho. Tudo o que mais importa é vender uma imagem. E naquela lanchonete sem nome e padronizada, seus funcionários são sem nomes, encaixados no Padrão. 
         
Não só os funcionários e a própria lanchonete, como todos os personagens que nos são apresentados não possuem nomes. Tudo o que vemos são rótulos. A baixinha, o negro, o dos patins, o cristão, a treinadora. O próprio personagem principal. Se dentro da lanchonete sai um, outro rótulo é colocado no lugar. Quando o personagem se apaixona, é por uma menina de cabelos encaracolados, cuja vida pouco sabemos inicialmente além das aparências. Numa extensão do pensamento da lanchonete, o que fica é apenas a imagem. Entretanto, através da narração, que não se restringe somente ao pensamento do personagem principal, em algumas partes também adentramos na vida de outros personagens. Assim, sabemos que por trás de todos aqueles estereótipos, existem pessoas com múltiplas histórias, múltiplos desejos e frustações. Tudo isso vai se abrindo para nós a cada página lida.
         
A verdade é que encaramos muitas vezes a vida de forma muito simples. Rotulamos a tudo e todos, fazemos previsões de tudo o que pode ocorrer, traçamos as imagens que achamos possíveis, característica que também vemos em diversos personagens do livro. Nós rotulamos até mesmo os próprios livros, assim como fazemos com as pessoas. Lemos primeiro porque a capa é instigante, porque o título nos atrai. Mas apesar de toda estereotipagem que rodeia nosso dia-a-dia, a vida nunca será superficial. 
         
Está é uma lição que aprendemos nessa caminhada junto ao personagem principal. A narrativa linear que se constrói ao longo da maior parte do livro, ao final, nos mostra um personagem transformado, cujos pensamentos jamais serão os mesmos. E é nisso que se constitui enfim, um romance de formação, ou para simplificar, uma história de crescimento – em todos os sentidos. Crescimento, este, que se estende a nós.
         
Caminhamos pela extensão do livro, na linearidade das memórias, nos flashbacks do personagem. De menino, vemos a nova figura de um rapaz, transformado por sua nova bagagem. Com cicatrizes nas mãos e diversas experiências daquele emprego, o começo da faculdade, e um coração partido, é um choque perceber como os rumos da vida podem ser mudados. Nós achamos que sabemos tudo. Achamos que temos a visão que é a correta. Até o final. Através de uma linguagem tão simples, vemos uma narrativa que constrói imensa complexidade. E podemos utilizar essa metáfora para a vida, com toda sua simplicidade e complexidade andando lado a lado. Pois já no final, a visão do personagem se confunde com a nossa, e vemos que a vida real pode ser tudo, menos previsível. 
        
E assim, chegamos ao fim. As páginas se fecham... Mas aquelas memórias narradas permanecem junto a você. Seguimos então para próximas jornadas, esperando novos títulos, novas histórias, novos crescimentos.

Por Mary-Louise Paris.

Um comentário:

  1. Adorei sua resenha, Mary! Foi super tranquila de ler e não achei cansativa. Também gostei muito da sua reflexão sobre os rótulos!

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