terça-feira, 22 de maio de 2018

O saco de batatas atônito

Ler um romance é como construir um castelo. O próximo da fila não é diferente. De uma terra sem nada, tijolo por tijolo, a trama se ergue, ganha peso, ganha complexidade, nos desperta sentimentos. Ternura, cumplicidade, angústia, raiva, ódio. É impossível permanecer indiferente.

Dos meus dois pontos favoritos do livro, o primeiro compete às relações interpessoais estabelecidas entre os personagens. A descoberta de um novo mundo. A troca de experiências, aprender a lidar, com o próximo, saber a maneira certa de agir, conviver com acertos e erros. A relação entre mãe e filho, colegas de trabalho e até o amor. Todos os tipos de relações são expostas. Entre pessoas diferentes que se tornam comuns entre si. Conforme o castelo se ergue, essas diferenças vão embora.

O outro ponto que eu gostei demais foi o amadurecimento do protagonista ao longo do enredo. Quando jovem imaturo e ingênuo sofre um baque com a morte do seu pai - com quem possuía diferenças, ele se vê numa situação onde suas tias jogam uma enorme responsabilidade pra cima dele, que prefere se omitir. Se omitir talvez por não querer sair da zona de conforto. Ou até além disso; se omitir por não considerar que essa responsabilidade não caiba a ele, afinal ele tinha apenas 15 anos. Tudo muda depois do emprego na lanchonete. As relações citadas anteriormente contribuíram para um amadurecimento que o fez ser capaz de ficar calado ao ouvir os sermões do seu chefe, diferente de suas atitudes anteriores, como mostrar uma nota de 50 cruzados para sua tia em tom de ironia também após ouvir um sermão, que apesar de motivos diferentes, com certeza causavam o mesmo desconforto. Mas também evoluiu ao ponto de se impôr em outros momentos, como articular uma paralisação entre os funcionários em forma de protesto, ou também em defender seu amigo homossexual. Difícil imaginar aquele menino de 15 anos - apesar dos 15 anos - com essa fibra e esse jogo de cintura.

A ambientação noventista dá um charme especial à experiência de leitura, mas além disso, também influi diretamente na trama, como no episódio do congelamento dos preços, que incide num descontentamento geral dos funcionários da lanchonete. Ou seja, mais do que uma simples chuva de referências, o autor se aproveita disso para desenrolar a história.

A Linguagem despojada é convidativa aos mais variados perfis de leitores. O mundo se constrói por meio de uma simplicidade não simplória totalmente cativante. Cativante, pois apesar de não ser difícil entender, o autor a todo momento brinca com leitor. Como um jogador driblando um adversário. Ou uma família correndo atrás do cachorro que fugiu. Vai pra lá e pra cá, no fim nos deixa como um saco de batatas. Mas batatas atônitas.

E o fato do livro ser escrito pelo ponto de vista do narrador se faz valer, como no momento em que o protagonista começa a imaginar "o que a tal 'garota de óculos' estava pensando dele?" ou "porque ela só aparecia em determinadas ocasiões" e começa a criar teorias em cima disso.

É tocante ver o enredo se construindo perante nossos olhos. A cada capítulo, a vida se constrói, o mundo acontece, se modifica, as pessoas se moldam, se adaptam, o leitor além de identificar-se, também aprende. E a forma que o autor utiliza para nos contar essa história é uma delícia. Flashbacks (ou flashfoward, dependendo do ponto de vista) que nos parecem aleatórios, colocações que só vão criar algum sentido no decorrer da leitura. Como um quebra cabeça, ou uma frase escrita ao contrário.

Sem dúvida, os meus pontos favoritos do livro foram as relações que o personagem principal constrói ao longo da narrativa, e sua evolução como pessoa, que de certa forma passa também a partir que ele faz o contato com todos seus novos colegas. Na última parte do livro, o castelo já estava finalizado. Por esse motivo, a reviravolta final, apesar de decidir o destino de uma personagem, e alterar o passado conhecido de outro, acabou se tornando menos relevante do que tudo aquilo que eu já lia anteriormente.

O próximo da fila nos faz construir e desconstruir. Faz nos identificarmos. E ao mesmo tempo de nos mostrar a realidade, ele subverte a lógica. Inverte e joga na nossa cara. Em forma de livro. Em forma de obra.

Por Almirante João Cândido.

Um comentário:

  1. Oi Almirante!
    Gostei muito da ideia desenvolvida, a construção do castelo. Apenas fiquei confusa quanto a parte do saco de batatas hahah! Desculpa minha lerdeza, as vezes meu ascendente em Peixes fala mais alto... Enfim, por mim poderia ter sido melhor desenvolvido esse pensamento. Mas parabéns pela escrita!

    Mary-Louise P.

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