Admito: depois de algumas páginas, é difícil manter a imparcialidade e cumprir, com destreza, a tarefa de analisar “O próximo da fila”, obra de Henrique Rodrigues lançada em 2015 pela editora Record. Digo isso não por demagogia, mas por reconhecimento. Afinal, o autor definitivamente consegue, aos poucos, transformar a indiferença em fascínio e os bastidores dos fast foods em universos complexos e instigantes.
O livro é contado a partir das vivências do personagem principal, um garoto de classe média que, após perder o pai e ter sua confortável rotina abalada, precisa se readequar ao novo contexto de sua família. Para auxiliar nas finanças, o jovem, até então acomodado, encontra um emprego com “boné vermelho” e “roupas listradas”, que remetem – mas não se reduzem – a certa rede transnacional. Aliás, esse é um dos destaques da obra: nada e ninguém recebe rótulos. São experiências, sentimentos, contextos e ambientes maiores que o próprio livro e que ampliam sobremaneira as possibilidades do viajante-leitor.
Voltemos. Ao longo de quase duzentas páginas, é possível identificar, no mínimo, três vozes narrativas: a do personagem principal ainda jovem, a do mesmo personagem mais maduro e a de um narrador onisciente não identificado. Enquanto as duas primeiras, em primeira pessoa, são diferenciadas pela forma narrativa – uma integrada ao próprio romance e a outra no formato de uma carta, destacada em itálico –, a terceira é um pouco mais discreta e se apresenta em apenas um momento da obra, onde são revelados acontecimentos passados da mãe do protagonista. Este momento, que se desdobra no capítulo 6 da parte 1, trata-se de um flash forward em terceira pessoa e nos faz pensar sobre o modo como esse distanciamento escolhido pelo autor potencializa ainda mais esse que certamente é um dos trechos mais profundos e dolorosos do livro.
Também nesse trecho do livro, a descrição dos cenários, em uma linguagem simples e acessível, ajuda a construir de forma clara o fato ocorrido. A ausência de energia elétrica, os móveis da casa e a água que esquenta no fogão conferem à cena ainda mais dramaticidade. Essa estratégia torna a ser visível quando o personagem queima suas mãos na chapa ou quando tem sua primeira relação com uma colega do trabalho.
Também compõem a vida do protagonista os personagens que o cercam. Chega a ser um desafio referenciá-los, já que nenhum deles, conforme já apontado, possui nome. A falta de identificação – ou seria de identidade? – atua em favor de Rodrigues. Afinal, o foco não são as pessoas, e sim os tipos: o negro, o cristão, o poeta... O auge desse anonimato se dá no momento em que o protagonista perde as digitais de suas mãos. Aí, apaga-se a sua personalidade. Resta apenas o carimbo do sistema que o envolve e que gere as engrenagens: o M. Padrão.
Escrito de forma linear, com algumas passagens de tempo demarcadas por capítulos e partes, o livro não deixa de conversar com seu leitor. Nos textos dos guardanapos, por exemplo, a estratégia da metalinguagem atua como um excelente operador de intimidade. As inquietudes do autor são trazidas à tona e a função fática nos faz entender o livro não como um produto acabado, mas como um processo, que, ao fim, descobrimos que permanece em curso. “O bolo de guardanapos vai crescendo aqui. Renderiam algum livro? Uma narrativa que interessaria a alguém?” (p. 155).
Depois de consumir freneticamente cada palavra desse enorme guardanapo de autor anônimo e vida publicizada, honestamente, esperava outro final. Ou, ao menos, um desfecho melhor desenvolvido. A sensação é de que as últimas páginas foram escritas com uma pressa que não existiu nos capítulos anteriores, em que era perceptível uma preocupação em envolver o leitor na realidade do personagem. Isso, no entanto, de forma alguma tira o mérito da obra nem diminui o sucesso de sua proposta. Até porque nem sempre no fim da fila da vida há felicidade.
Por Peripatético Peri
Oi Peripatético!
ResponderExcluirSua resenha ficou tão boa que eu esperava até um parágrafo maior hahah! Mas parabéns pela escrita, bem clara e bem desenvolvida!
Mary-Louise P.