terça-feira, 22 de maio de 2018

Escrita em guardanapo

Em seu romance de formação, “O próximo da fila”, o autor Henrique Rodrigues já anuncia logo na epígrafe a valorização da experiência vivida ao, não por acaso, apresentar um trecho da obra “Germinal” de Émile Zola, que passou 2 meses vivendo entre os mineiros para os retratar com maior precisão em sua narrativa.

Com contornos autobiográficos, “O próximo da fila” coloca sob-holofote um perfil geralmente invisibilizando, se é dada voz a um indivíduo socialmente mudo. Um sujeito pobre em um subemprego, encontra-se não à margem, e sim no centro do enredo. Tendo como inspiração o poema Elegia da Passarela, do próprio escritor, o livro inicia com um homem visitando a lanchonete onde havia trabalhado em sua juventude. Ao observar certo funcionário, começa então a se lembrar da época em que estava no lugar do jovem. Assim, resolve escrever sua história em guardanapos, na tentativa de verbalizar seu passado problemático.

A trama não linear é construída em quatro partes e em capítulos curtos, justamente para simular a ideia de que cada capítulo fora escrito em um guardanapo. Se é descrita uma vida toda em menos de 200 páginas. Com uma linguagem simples e nada hermética, a auto ficção utiliza do recurso de não nomear personagem algum a fim de simbolizar como as pessoas retratadas são comuns. Esse fator contribui também para a empatia, já que essas figuras podem ser facilmente associadas pelo leitor a alguém de seu convívio.

Tendo como pano de fundo o momento de recessão e inflação enfrentado pelo Brasil no começo dos anos 90, pós-ditadura militar, é abordada a realidade de um jovem que tem sua vida, antes confortável e estável, transformada devo a instabilidade política do país e a morte de seu pai. O garoto é então obrigado pelas circunstâncias a amadurecer e arrumar um emprego a fim de ajudar a sustentar sua família. Deve, pela primeira vez, assumir responsabilidades, já que se encontra sozinho com sua mãe e irmão mais novo.

A narrativa se desenvolve mostrando essa passagem do personagem principal da adolescência para a vida adulta, retratando uma série de “primeiras vezes”, com foco em torno de sua experiência trabalhando em uma grande rede de fast-food. O rapaz de muda para uma casa menor e mais humilde com sua família, é transferido para uma escola pública, deixando sua “outra vida” como é apresentada no texto, para trás. No entanto, é dentro desse cenário de uma lanchonete na periferia do Rio de Janeiro que ele começa a viver de fato, tendo, pela primeira vez, amigos e até mesmo um romance com desfecho trágico.

O amadurecimento do jovem é explícito no decorrer da narrativa já que, evolui de um menino mimado e arrogante para um homem trabalhador e preparado para lidar com as adversidades da vida. Em seu emprego, envolve-se em um acidente enquanto administrava a chapa e termina por perder as impressões digitais, simbolizando que o protagonista deixou para trás uma parte de si mesmo naquela chapa: a sua identidade. Insinua-se a mecanização do ser humano pela indústria.

O autor também faz uma metáfora ao, ironicamente, comparar a forma M da palma das mãos, perdida pelo sujeito no incidente, ao logotipo da franquia, criticando essa exploração do trabalho. A crítica a sociedade é presente em toda a trama, na qual são narrados episódios de desigualdade social, como por exemplo, quando o filho do dono da lanchonete humilha os funcionários, e o preconceito sofrido pelos colegas de trabalho do rapaz, um negro e outro homossexual.

Inclusive a estratégia de não dar nome aos personagens denuncia essa visão que a sociedade tem das pessoas que servem ou que estão em uma posição social abaixo. Atrás do balcão de uma loja é visto o uniforme, mas, não a identidade, por isso na história todos são identificados através de uma característica marcante ou pela posição que ocupam.

Nessa grande rede de fast-food todos são vistos como substituíveis, seguir o “Padrão” da empresa é mais importante do que o bem-estar dos funcionários, que se tornam números e parte de uma engrenagem. A reprovação do sistema capitalista de exploração do trabalho pelas indústrias é clara no enredo, além de partes dramáticas que mostram como é difícil, mas possível, enfrentar os obstáculos da vida. É relatado como é problemático crescer.

A obra de Henrique Rodrigues, por ser de fácil e rápida leitura não é voltada para um público-alvo especifico, já que pode interessar desde adolescentes até idosos, independente de classe social. O autor carioca também de “A musa diluída” já transitou por outras categorias literárias como contos e crônicas, mas é com “O próximo da fila” que surge como romancista, nessa jornada de autoconhecimento.

Por São Valentim.

Um comentário:

  1. Que resenha excelente, uau! Imagino ela bem locada em um jornal, com certeza! Parabéns!

    Mary-Louise P.

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