segunda-feira, 4 de julho de 2016

Mais um dia normal


O almoço estava na mesa, mamãe colocou os pratos e chamou eu e o papai para almoçar. Eles comeram, conversaram, contaram sobre seus dias e eu fiquei mexendo o garfo no prato, para frente e para trás, para frente e para trás... acho que isso irritou o papai. Eu não prestei muita atenção no que ele disse, mas ele estava gritando com a mamãe. Disse algo também sobre eu não aprender nunca. Demorei um pouco para conseguir falar mas perguntei à mamãe se eu podia sair da mesa e ela disse que sim. Levantei e fui em direção ao meu quarto. A janela do corredor estava aberta e assim que cheguei lá tomei um susto. A luz que vinha lá de fora era tão forte que parecia piscar e juro que até fez um barulho. Levou alguns minutos para me recuperar mas continuei andando. Passei pelo quarto da minha irmãzinha – não sei quantos meses ela tem, mas ela é bem pequena. E ela tinha feito cocô. Muito cocô. A porta do quarto estava fechada, mas ainda assim eu podia sentir o cheiro e era muito forte. Comecei a subir as escadas para o meu quarto e alguém tinha acabado de limpar ali. Não sei o que usaram, mas o cheiro fez o meu nariz arder e minha cabeça doer. Era sempre assim. Cheguei no meu quarto e ele estava do jeito que eu gostava: sem luz e sem cheiro de cocô – e daquela outra coisa que eu não sei o que é. Mas alguém tinha deixado o ventilador ligado e ele fazia um barulho muito alto e isso fez a minha cabeça e o quarto girarem muito. Demorei para conseguir desligar e perceber realmente onde eu estava. Pisquei várias vezes para ter certeza do que eu via. E sim, eu estava naquele lugar de novo. Era um campo cheio de árvores e com muitos bichinhos. E tinha flores também. Muitas flores na verdade. Tinha um cheiro muito bom e o sol não estava forte. O dia estava lindo e eu fiquei muito animado por estar ali de novo. Eu passei o dia inteiro brincando ali e foi tão legal. Pena que acabou rápido... estava na hora de voltar para casa. Começou a escurecer, os bichinhos se escondiam devagar e eu fiquei ali sozinho no escuro quando alguma coisa me chamou atenção. Era um choro. Isso mesmo, tinha alguém chorando perto de mim, mas eu não conseguia perceber de onde ele vinha.

– Ele tá sentado ai desde que horas?
– Desde a hora do almoço.
– E ele tá assim o tempo todo? Para de chorar, mulher, por favor.
– Sim, o tempo todo. Passei por aqui umas 10 vezes e ele continuava sentado perto do ventilador balançando para frente e para trás encarando o nada.

O choro parou e eu não consegui saber de onde vinha.
Cheguei na porta do quarto e papai e mamãe estavam conversando sobre um lugar chamado autismo. Será que esse é o nome daquele lugar legal que eu fui?


Peter Parker

Um comentário:

  1. Ai :( Quando percebi do que se tratava chegou a dar um aperto no coração. Que escolha interessante de tema. Antes de perceber que se tratava de uma criança autista, ia elogiar como você conseguiu representar a linguagem infantil e atmosfera de sonho, entretanto seu texto é muito mais que isso. E podemos tirar várias interpretações psicológicas e até filosóficas. Por exemplo, o que a criança vive e vê não deixa de ser verdade, só porque seus pais não compartilham essa visão. E podemos pensar em como a família se sente por viver com um filho assim. Seu texto potencializa os recursos do jornalismo, é profundo e perene.

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