Um tanto hipócrita

Aquele era um dia como outro qualquer. Eu acordei, tomei café, desci com a bicicleta florida, fui para a escola, encontrei meus amigos, assisti a aquela aula de física um tanto quanto insuportável, tive aquele intervalo curto demais para enfrentar a fila de adolescentes que queriam comprar o salgado caro e frio que a cantina oferece... Estava tudo dentro da mesmice rotineira. Até eu voltar para casa.

Subi as escadas rapidamente quando senti o cheiro da comida de mamãe. É o cheiro daquele tempero especial com um pouco de alecrim, salsa, uma pitada de pimenta e muito amor. Quando abri a porta vi o sorriso reconfortante que tanto amo e que me deixa segura o suficiente para me sentir finalmente em casa. E a primeira coisa que ouço sair do mesmo lugar do sorriso é “temos mais uma missão resgate”.

Seguindo minha mãe até o banheiro, encontro a caixa de transporte do meu gato fechada em cima de um banquinho e logo sinto o desespero atingir meu coração. Ao olhar pela porta da mesma, vejo um pequenino amontoado de penas verde no fundo. É, um passarinho. Resumindo a história, ele estava perto da entrada do prédio com penas ainda para cair e nem sequer se moveu com a aproximação de mamãe.  E é óbvio que ela não o deixaria ali. Pegou-o, deu um pouco água e banana e deixou-o em um lugar seguro para que pudesse descansar.

Algumas horas mais tarde, ouvimos o passarinho piar e resolvemos ir vê-lo no banheiro. E foi aí que o vi pela primeira vez. Era tão pequeno, tão frágil, tão assustado, tão puro. Segurei-o com todo o cuidado do mundo para mamãe conseguir dar novamente banana e água. Feito isso, fiquei ali com ele por um tempo acariciando-o, prometendo devolvê-lo para a família assim que as penas caíssem e cantando canções de ninar.

Os dias foram passando, as penas ainda não estavam caindo, compramos comida, descobrimos que era um sanhaço, ouvíamos seu piar a cada manhã... Apegamos-nos cada vez mais àquela criaturinha e até lhe demos o nome de Ariel, como o anjo. Arranjamos um lugar melhor e mais aberto para ele ficar, colocamos uma banheira de boneca para que ele pudesse tomar banho, colocamos uns gravetos para que ele pudesse se apoiar em um lugar mais alto. Mas sempre preso.

E foi aí que começou a vir a dor. Vê-lo ali dentro, enjaulado, preso àquela rotina, enclausurado para que eu possa vê-lo e ouvi-lo todos os dias. Nós humanos somos um tanto hipócritas, sabe? Achamos que temos o direito de tomar o que quisermos para nós e, ao mesmo tempo, pregamos um discurso de liberdade acima de tudo. É hipocrisia demais para que eu possa aceitar continuar agindo dessa forma.

Decidimos soltá-lo. As penas ainda não tinham caído, mas mantê-lo conosco simplesmente não era certo. Subimos e preparamos um local para que o Ariel pudesse voltar sempre que precisasse. Deixamos um pouco de banana (sua comidinha favorita) e qualquer coisa que ele pudesse precisar. Inicialmente ele ficou assustado, olhou tudo à sua volta cautelosamente e, quando menos esperávamos, voou. Voou para a árvore com tantos outros sanhaços e ali observou timidamente o movimento dos outros, logo interagindo.

Hoje olho pela janela e finjo encontrá-lo. Pretendo vê-lo com a família, namorada e, quem sabe, filhotes. Mas a verdade é que a única certeza que tenho de toda essa história é de que Ariel nasceu para ser livre e livre está. E eu espero que você seja como Ariel.

Amelie Poulain