Código Morse
— Ei. Precisamos conversar.
Nós dois somos um pouco ruins em conversar com palavras. Você tende a se enrolar na própria língua, e eu vomito sem-sentidos toda vez que abro a boca devido à uma vontade inexplicável de preencher o silêncio com o meu próprio ego. A meia-luz em nada ajuda nossa situação, despejando uma sombra amarelada sobre você, desenhando uma auréola na sua cabeça. Eu queria arrancá-la daí.
Nós dois somos um pouco ruins em conversar com palavras, então as pontas dos seus dedos me contam uma mensagem em código Morse sob a mesa. Você sabe que eu ainda não sou fluente. Todos os dias, eu abro um novo livro e encaro as páginas com a transcrição do alfabeto que eu aprendi a chamar de seu. Pouco a pouco, eu entendo as mensagens que você desenha nas minhas mãos, pulsos, coxas, panturrilhas, pés, pescoço:
Linda. Eu adoro o seu cheiro. Chega mais perto. Me conta um segredo.
(Eu acho que já te contei todos.)
Essas são palavras que eu já ouvi. O que realmente precisamos conversar sobre paira entre nós como se fosse parte da decoração do restaurante; candelabros, cortinas, O que nós somos?, garçons, cartas de vinho, E a nossa data de validade?, talheres, taças de cristal. Eu e você ignoramos isso.
— Eu sei que precisamos. Como foi seu dia?
Sua voz me deixa com vontade de vomitar. Ela me lembra dos sussurros trocados sob uma luz de rua, de mensagens de áudio oitentistas, de viagens de carro que duram cinco minutos e canções trocadas entre risadas. Ela é tudo que eu quero ouvir agora e a última coisa que eu desejo no momento ao mesmo tempo. Por cima da mesa, você coloca sua mão sobre a minha. Por baixo da mesa, nossos pés se tocam; meu salto vermelho e seu tênis preto, uma ode à teoria das cores.
Não gosto de falar o que sinto, então tal qual Patrícia, não digo. Meus sentimentos ficam presos na garganta, amarrados a correntes que nem mesmo seu beijo conseguiria arrancar. Na filosofia simplista do hedonismo, só preciso fazer o que me dá prazer. Você entra no requisito. Falar sobre mim, não. Gostaria que fosse um não poder, mas é um não querer. Você acha que eu sou egoísta?
— Não é disso que eu tô falando. Precisamos conversar de verdade.
Nós dois somos um pouco ruins em conversar com palavras, então eu deixo as minhas unhas desenharem círculos nas suas palmas. Você engole em seco. Nós já temos nossa própria língua. Eu jogo meu cabelo para o lado direito e você sabe que isso quer dizer Eu sei que você está mentindo. Você coça a ponta do seu nariz e eu sei que isso quer dizer Não gosto quando você age assim. Até o momento, nenhum de nós fez esses movimentos. Acredito que estejamos bem, mesmo com as palavras nos incomodando.
Penso no que quero fazer quando sairmos daqui. Uma colher de sorvete de canela para abrir o apetite, tropeços nas pedrinhas da calçada para ouvir sua risada, enrubescer quando você falar que eu estava linda essa noite. Temos a nossa rotina a esse ponto. Você vai me ajudar a tirar os sapatos e eu vou rir de como seu cabelo fica quando você tira a camisa.
Click, clack, click. Meus saltos batem contra o chão do restaurante e o barulho se confunde com os ponteiros do seu relógio. Estamos com o mesmo objetivo em mente e, mesmo nos conhecendo, mesmo entendendo que o peso das palavras malditas não ditas causam uma pressão na boca do estômago, mesmo querendo solucionar os mistérios que nos assombram como se nós dois fôssemos detetives, não daremos o braço a torcer. A nossa teimosia, como quase todo o restante, combina. Às vezes, penso que tudo seria mais fácil se nosso encaixe não fosse tão agradável.
Nós dois somos um pouco ruins em conversar com palavras, e é por isso que eu me ocupo com a conta e deixo você fazer o pedido. Nós nos entendemos sem elas e, na maioria das vezes, não precisamos delas. Quando quiser falar comigo, é só batucar na minha pele em um ritmo constante e pelo menos umas três vezes — ainda não peguei o código inteiro, mas eu aprendo. Você é o único que pode me ensinar.
— Já estamos conversando.
No final da noite, sou eu quem descobre o que você esconde, mas é você quem me faz sentir confortável mesmo exposta até a última camada da derme. E sobre as palavras, quem precisa delas? Se não gosto de dizer, não digo. Mas…
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Por Inez Quadros
Meu deus, Inez. Eu nunca vou me cansar de te ler e admito que, por isso, vai ser triste o fim dessa disciplina. Gosto da forma como você brinca com as palavras. É quase como uma dança: você nos pega pela mão e guia nossos passos por um ritmo confuso, cheio de desníveis e que faz muito sentido no final.
ResponderExcluirGostei de como você abordou suas questões pessoais sem deixar de fazer alusões ao poema, mesmo que escondidinhas. Eu entendi muito bem porque você escreveu isso da maneira como escreveu. Palavras são totalmente dispensáveis quando podemos ouvir de outra forma as mesmas coisas que elas querem dizer.
Querida Inez, confesso que seu texto foi o meu favorita dessa semana. Simplesmente genial. Os pensamentos suspensos, o diálogo cortante, as claras imagens presentes no texto; tudo carregado de muito sentimento. Confesso que também sou um pouco ruim com palavras mas me encontro no chão após ler seu texto. Não sou capaz de expressar com clareza o que sinto, e talvez seja melhor nem dizer. Quem sabe eu não tento de outra forma...
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Inez, notei que normalmente não comento os seus textos, não por algo pessoal, mas porque você tem uma escrita muito característica, capaz de nublar os meus pensamentos e até me deixar sem palavras. Não poderia deixar de tecer um elogio sincero: você é uma das escritoras que mais gosto de ler por aqui, sempre me passa um sentimento muito bom durante a leitura, como um afago quentinho em dias frios. A sua escrita nos abraça e nos leva em uma viagem gostosa, parabéns pelo texto, foi lindo ler cada palavra milimetricamente bem posicionada.
ResponderExcluirInez, estou totalmente apaixonada pelo seu texto! Bem escrito e com uma linguagem envolvente, me senti imersa na narrativa e atenta aos sinais "escondidos" durante a leitura. Você conseguiu usar o poema e transformá-lo na mensagem a ser passada com maestria. Parabéns mil vezes!
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