Famosas últimas palavras
Querida Inez,
Se eu fosse enviar essa carta pelo correio, ela chegaria até mim. Afinal, não me mudei nos últimos anos, e sigo enxergando as mesmas paredes todos os dias quando acordo. A carta física não chegaria à destinatária correta porque ela já não está aqui — me refiro à Inez de quatorze anos.
Você não gosta da ideia do rio de Heráclito. Eu sei como você se encolhe e se diminui na primeira perspectiva de mudança, mesmo que partindo de você. Eu sei exatamente como esse medo começa: é um nó na base da garganta, um “Mas, mãe…”, uma respiração descompassada e o reconhecimento de que sua saliva tem cor de iodo. Os dedos tremem. Você odeia mudar.
Você gosta de desgostar por desgostar, mas o seu odiar é diferente. Todos os seus ódios têm motivos fundamentados, com direito a longas explicações que ninguém quer saber, mas que você usa para justificar a epiderme coçando quando se vê vis-a-vis com esses ódios. Você não desgosta de mudanças. Você as odeia, mas ainda não sabe porquê. Eu posso te dizer porque você odeia:
Você não quer viver.
É fácil e simples; uma resposta curta e grossa para um problema que te assombra diariamente. Você tem medo de morrer e nós duas sabemos disso desde os seis anos de idade, quando você sentiu pânico pela primeira vez, mas, mais ainda, você tem medo de viver porque quer ficar estagnada. E é um senhor paradoxo, não? A aluna de ouro, prometida alçar voos que nem Ícaro ousou tentar, tem medo de chegar nestes destinos. Talvez ela ache que, assim como as dele, suas asas também queimarão. Eu te garanto que elas não irão.
Se medos, ódios e desgostos fossem fáceis de se resolver, não teríamos tantos problemas. Não cabe a mim tentar mudar sua cabeça; não fazemos mais lobotomias, ainda bem, e ainda não inventaram uma máquina do tempo — sendo bem sincera, eu teria medo de usar uma. Eu e você melhoramos nessa questão do medo de mudanças, mas o efeito borboleta é muito real. É óbvio que eu gostaria que seus neurotransmissores se acostumassem à euforia de saber que tudo vai ser diferente daqui a alguns dias, meses ou anos, mas eu também sei que você ama superações. Você vai viver uma.
Não tenha medo de viver. Eu já não tenho. Você gosta de coisas boas; na vida, temos muitas. A nossa cabeça às vezes parece um poço sem fundo e precisamos de ajuda para sairmos dele. Fique acordada e sem medo. Não perca os bons momentos — eu sei que eles existem mesmo quando tudo está escuro — por medo. Não deixe os monstros debaixo da sua cama ficarem grandes o suficiente para te mastigarem por completo.
Se eu precisasse escolher as últimas palavras para lhe dizer, seriam essas. São muitas, mas nós duas sabemos da nossa tendência a sermos prolixas.
Você ainda vai se orgulhar muito de você. Seja destemida.
Com amor,
Inez
Por Inez Quadros
Parabéns pelo seu texto, Inez! Muito bem estruturado e construído. Gostei muito da sua forma de abordar e desenvolver o assunto da carta ao seu eu passado. Quero dizer que a impossibilidade da Inez de 14 anos recebê-la não chega a ser uma pena pois, se você chegou até aqui e redigiu essas palavras sem a ajuda de uma Inez futura, é porque você aprendeu a ser destemida. E aprenderá em todas as suas versões.
ResponderExcluirInez, você me fez sentir vontade de perdoar minha versão do passado. Obrigada por isso.
ResponderExcluirGostaria de ver a surpresa alegre no olhar da sua versão de 14 anos ao ler esta carta, e tenho certeza que a Inez do futuro também se orgulhará da coragem que você mostra hoje — e dos textos tão belos e sensíveis, claro!