sexta-feira, 10 de junho de 2022

 No tears in heaven 


Querida mãe,

 

Alguns anos se passaram desde que nos vimos pela última vez, ainda me lembro do brilho do seu olhar se apagando após o sopro da vida abandonar o seu corpo e não gosto de lembrar disso. Me recordo da chuva nesse dia e de como eu me perguntava se os céus choravam comigo. Fico feliz por não ter visto a minha queda, como tentei deixar este mundo para ir em sua busca, foi assustador, nunca achei que teria coragem para isso, entretanto, eu fiz e não foi só uma vez. Me perdoe por tentar quebrar a minha promessa, eu não sabia como experimentar esse negócio de viver sem você e ainda é muito estranho.

Me lembro sempre do seu cheiro, um perfume amadeirado, misturado a essência de jasmim, tentei simular esse perfume com algumas essências, dessas, vendidas em casas naturais que você adorava visitar enquanto andávamos pela rua, mas para a minha decepção nunca mais encontrei. Ele se foi. Como você e tudo o que lembro de você. Eu sei que você nunca me deixou realmente e que vive em mim, guardada para sempre no meu baú de lembranças, mas fico frustrada as vezes, principalmente quando alguém pega o telefone para avisar que chegou em casa e eu não tenho para quem fazer isso, e sim, eu sei que o meu pai continua aqui e eu valorizo isso, mas ele não é você. Nunca te contei isso, mas você me lembrava um corcel, sempre admirei a vivacidade, braveza e independência dos corcéis, você nunca foi independente ou brava, mas sempre foi viva.

Então, as vezes eu finjo que esqueço de você para que não fiquem me lembrando toda hora sobre o quanto você era incrível. Queria poder reclamar sobre como estou irritada com o transporte público ou de como meu pai sempre queima o arroz, ou te contar sobre a vergonha que passei na semana passada, eu quase caí na rua, no entanto, eu não posso. Você devia saber também que não sou mais aquela garota insegura, assustada com a vida e cheia de antidepressivos para tomar. Eu me livrei do Rivotril, sabia? Aliás, me livrei de tudo, até do medo que me aprisionava enquanto só existia, hoje vivo, saio para dançar, aprendi a tomar as rédeas da situação. Fiquei cansada de querer agradar todo mundo só para que gostassem de mim e fui viver, sendo maravilhosa pra mim. Aquela história do Mário Quintana, sabe, mãe? Estou cuidando do meu jardim, colorindo aos pouquinhos, dançando o vai e vem da vida. Curtindo a jornada.

Eu espero que você esteja bem, no céu que eu acredito que você vive, torço e imagino que as minhas avós estejam por aí, sentadas embaixo de uma grande árvore, conversando enquanto o sol se despede. Ah, e o Bob, o gato que nós tivemos, posso vê-lo deitado no jardim, envolto de flores como aquelas que existiam na nossa antiga casa. E vejo através de uma janela azul, você dançando, ouvindo o som de sua vitrola, Roupa nova cantarolando, como você bem sabe, eu estou sorrindo enquanto escrevo isso, as suas danças eram muito estranhas, mãe. Imagino o melhor lugar, para a melhor pessoa. Puta merda, eu estou com saudade, saiba que estimo o nosso reencontro, vou sempre ver o mar pois sinto você por lá. Bem, está na hora de dizer até logo, o dever me chama, te vejo nos meus sonhos e não quero te ver chorando como sempre aparece, me encontre perto da arrebentação, tenho um segredo que queria te contar, mas não posso fazer por aqui. Saiba também que o meu amor por você ultrapassa o tempo, o universo ou qualquer coisa que possa se medir, não tem medida, a gente ainda vai se ver em outras vidas.

 

Amo você, borboleta


Com amor e muita saudade, sua filha Lilith

Por Lilith Lili

3 comentários:

  1. Lilith, eu me emocionei muito com as suas palavras. O amor que você sente pela sua mãe e que transparece no seu texto me faz lembrar da minha mãe e do quanto ela é a pessoa que mais amo no mundo. Incrível a sensação de entrega que eu consigo sentir toda semana quando procuro por algo que foi você quem escreveu. Eu sei que onde a sua mãe estiver, ela está orgulhosa da mulher que se tornou. Que está trilhando um caminho lindo e que não baixa a cabeça para nada e nem para ninguém. Você é incrível, Lili. Eu te admiro muito.

    Com carinho,
    Liev.

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  2. Não me lembro de ter comentado em qualquer texto seu, Lilith. No entanto, muitas vezes já me peguei lendo-os e tentando entender e desvendar quem seria essa pessoa de palavras tão certeiras e profundas. Hoje, descobri que você é uma pessoa forte e digna de muito apreço.

    Seu texto está lindo e emocionante. Certamente, sua mãe tem muito orgulho de você.

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  3. Querida Lilith, a sua carta é uma das mais lindas e emocionantes! Pude sentir o quanto a ausência da sua mãe ainda te abala, mesmo que menos do que antes. Quando você introduziu a sinestesia no texto, imediatamente mergulhei no tempo em busca do cheiro descrito. Acredito que a sua mãe esteja olhando por você, muito orgulhosa das suas conquistas e superações ao longo desse tempo sem ela. Você é uma excelente escritora, adorei como você destacou algumas palavras no texto. Essa ênfase fez toda a diferença na leitura! Carinhos, Elizabeth.

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