sexta-feira, 10 de junho de 2022

Carta para uma entidade

Olá, querido. Querida? Queride, talvez?


Envio esta carta para perguntar algo que não tenho o direito de saber. Acredito que você tenha conhecimento das acusações que fazem em seu nome aqui em cima: a inveja, o ódio, a fofoca, o aborto legal e até mesmo a pobre cannabis sativa, todos vêm com o seu nome carimbado pelas pessoas de bem. 


Mas eu não tenho medo de você, e sabe por quê? Porque a história contada é sempre a dos vencedores, e não deve ter sido diferente com a guerra no céu. Teria sido uma rebelião dos anjos contra as péssimas condições de trabalho, como também acontece aqui na Terra? Não deve ser fácil louvar o criador vinte e quatro horas por dia, sem descanso. Esse culto à personalidade beira o narcisismo. Com sorte, você poderia ascender na rígida hierarquia angelical e alcançar o posto de… anjo da guarda. Sejamos sinceros, quem deseja trabalhar como guarda-costas deste bando de seres humanos desmiolados?


E qual é o peso das consequências? Adquirir rabo e chifres? Isso todos nós temos, diga-se de passagem. Morar em um lugar extremamente quente, correndo o perigo de ser violentado a cada minuto? Nesse caso, seja bem-vindo ao Rio de Janeiro. O inferno também é aqui.


Agora que você sabe que venho em missão de paz, já me sinto confortável para fazer a verdadeira pergunta: o que você faria com este mundo se não tivesse sido expulso do céu? Se você tivesse vencido, eu poderia beijar minha amada livremente pelas ruas da cidade? Não precisaria me envergonhar das indulgências e pequenos momentos que me fazem realmente feliz? 


Nos púlpitos, talvez sua glória não fosse a minha desgraça. 


Peço que me responda esta carta assim que eu chegar aí embaixo, daqui a alguns anos. Não tenho a menor pretensão de ir para o outro lado, o dos corruptos, beatos e hipócritas. Além do mais, anda difícil passar por aquela porta: ouvi dizer que só estão aceitando débito, pix e bitcoin.


Um abraço,

Karmen

Por Karmen Chameleon

3 comentários:

  1. Parabéns pelo texto, Karmen! Adorei o tom irônico e provocativo. Questionar os valores nos quais a sociedade insiste em se agarrar ainda se faz necessário e você fez isso muito bem.

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  2. O título, que por alguma razão não saiu junto com o resto da carta, é "Ao diabo, ele mesmo". Estou comentando isso aqui porque acredito que seja importante para a compreensão do texto. Bom fim de semana a todes :)

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  3. Querida Karmen, adoro subversões do usual. Mesmo sem o título, "Ao diabo, ele mesmo" o seu texto é completamente entendível e extremamente divertido. Personificações e o uso fora do comum de figuras como o diabo e a morte sempre me cativam porque são acima de tudo personagens. Criações humanas para expressar nossas dores, erros, preocupações, entre outras coisas. De verdade, adorei a maneira com que você construiu o texto e a ideia! Um dos meus favoritos do semestre!
    "Você não sabe como é legal viver
    Com sete bilhões de dedos apontados na tua cara
    E todo mundo te odiar em nome do amor
    E todo bem que existe nesse mundo" (Rogério - Supercombo)
    Com carinho, Ford.

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