sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Anjo Caído

Numa rua deserta na noite de uma sexta-feira qualquer, ela me olhou como se eu fosse a pessoa mais linda do universo. Eu conseguia vê-la de longe, com seus sapatos de salto balançando nas mãos e um sorriso no rosto. Seus olhos cintilavam sob a luz pálida do luar quando ela me pegou pela mão e me puxou para perto de si. Naquele vestido carmesim, ela me fazia lembrar do pecado que eu tanto queria cometer.
Ela me conduziu numa dança sob a fraca música que vinha de dentro do salão de festas onde estivemos por grande parte da noite. Ela sorria como se nunca tivesse sorrido antes. Eu sentia como se todos os momentos da minha vida tivessem me levado até ali, até Ela. Era como estar num sonho, imersa num mundo onde tudo é possível, até mesmo as minhas fantasias mais profundas.
Ela me girou, me puxando para mais perto. Meu coração pulsava como se quisesse sair de dentro de mim. Quis de uma vez por todas a minha liberdade. Ela colocou suas mãos no meu rosto. Eu olhei para os dois lados da rua, esperando o pior, mas não tinha ninguém. Só nós duas e as estrelas de testemunha. A proibição naquele momento vinha só de mim.
Confesso que não tive expectativas de pertencer à ela para sempre. Para mim, isso é bobagem. Queria ser dela apenas naquele instante. Queria que a nossa eternidade durasse a noite inteira. E essa era talvez mais uma das minhas prisões, mais uma das coisas que me falavam que era errado eu querer.
Os nós das minhas amarras desataram mais um pouco quando ela encaixou uma mecha de cabelo atrás da minha orelha. Olhei para o crucifixo prateado no decote do seu vestido, e me perguntei como ela poderia não estar intimidada com a presença daquele objeto entre nós duas. Minhas bochechas queimaram como se tivessem sido tocadas pelo fogo do Inferno. Mesmo assim, me lembro de pensar que se o gosto do pecado era tão doce quanto o perfume dela, então eu queria experimentá-lo sempre. E que se o fogo do Inferno era o mesmo fogo que eu sentia quando olhava para ela, que eu queria senti-lo consumir minhas entranhas todos os dias.
Quando nossos narizes se encostaram, decidi me entregar completamente. Era tarde demais para mim, de qualquer forma. Depois de sentir sua pele na minha, eu nunca mais conseguiria retornar à realidade em que eu vivia antes. Eu tinha acabado de atravessar um limite, uma linha imaginária. E não tinha volta.
E então quando os lábios dela finalmente tocaram os meus, eu senti vir à superfície tudo aquilo que havia sido enterrado a sete palmos do chão. Eu sentia que aquilo era certo. Me permiti, pela primeira vez, a satisfação de sentir que eu a queria, e que ela me queria tanto quanto.
E no meio dos nossos beijos, me lembro de pedir à ela que me segurasse com mais força. Porque, pela primeira vez, eu estava acordada. E sabia que nunca mais me permitiria ser trancafiada no sono novamente, onde o único modo que eu poderia tê-la era nos meus sonhos.

Palavras não utilizadas: Impedimento; poder; controle; posse; idealização; imaginação.

Sanglard

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