Sobre uma lembrança esmaecida

 Queria sentir saudade. Queria poder lembrar. Sempre achei o tempo veloz demais. Os momentos, como areia escorrendo pelas mãos. Sempre quis que os bons momentos durassem mais. Talvez seja porque entendi desde o princípio que nada é para sempre. A vida termina, mas quem viveu mantém-se vivo no mundo das memórias de quem fica. Mas como faz, se eu não lembro?

Nesse trote ritmado da vida, as boas lembranças são como os grãos de areia que conseguimos segurar, antes do momento escapar entre os dedos, com a brisa leve do instante. Guardamo-los então em recipientes e ajeitamos em prateleiras num canto precioso do coração. Você deve estar lá, num lugarzinho de difícil acesso, talvez numa prateleira alta demais. Não consigo lembrar. Mas com certeza estão lá as minhas gargalhadas quando você corria comigo pelo quintal, e eu dentro do carrinho de mão, como um piloto de corrida. Dizem que eu adorava.

Você teve que ir. E foi antes de gravar seu sorriso na minha memória. Antes de me deixar sentir o calor do teu abraço. Quando criança, sempre assistia aquela gravação, a única que tenho sua. Esses dias, vi de novo, depois de muito tempo. Fiquei me procurando na sua imagem. Coisas minhas que vieram de ti. Disseram-me, certa vez, que meu olhar parece o seu.

Com o passar dos anos, tentei montar um perfil no pensamento com tudo que ouvi de quem te teve por perto e por mais tempo. É como unir retalhos ou montar um mosaico. Mas acho mesmo que o mais próximo de te conhecer que cheguei foi quando li o que escreveu enquanto por aqui caminhava. Assim que aprendi a ler, pude conhecer os seus versos. Você foi antes de poder me dar conselhos, antes de me ver crescer e me ajudar com os dilemas da vida. Mas sem saber, deu um jeito de eternizar um pouco de ti naquelas palavras. De me deixar algo seu pra guardar no coração. Muito obrigado, pai!

O Náufrago