A dissonância cognitiva é gêmea
do pecado original, filha do confronto dialético entre Deus e o diabo. De um
lado do ombro de Adão, a voz do narrador do universo, grave e impassiva, prometeu
a liberdade eterna se a criatura lhe prestasse obediência. O mal em pessoa, por
sua vez, sussurrou bem baixinho ao pé do ouvido de Adão, e disse algo que
arrepiaria até o mais iberbe de todos os futuros homens. Não se sabe ao certo como
o coisa-ruim persuadiu aquele ser diminuto à ideia de que poderia ser dono de
si. Mas nada pode ser mais sedutor do que essa ilusão. E, como sabemos, o diabo
mora nos detalhes.
Isaac não é o primeiro, nem será
o último homem. É um cara comum, desses que têm nome bíblico, um Ford Ka
baratinha 2005 tunado na garagem e que vaza nude da ex no grupo de amigos do
WhatsApp. Faria sentido tê-lo conhecido numa rinha de galo, embora eu não
conheça qualquer pessoa que frequente uma. Ainda mais plausível teria sido na
casa de massagem que ele, com o perdão do termo, frequentava religiosamente com
o pai - o tarja preta da mãe fazia ela
dormir cedo. Mas conheci aquele cara, por absurdo que aparente aos olhos
desatentos, ajoelhado nos bancos da igreja. Deboche do acaso, porque eu só
frequentava ali para jogar bola e entrava no templo apenas por um certo
protocolo.
Isaac é um homem de fé. Tem
imagem de santo até no banheiro da casa dele! Casou com a primeira namorada,
embora tenha se dividido com muitas mais. É que, sabe como é, a natureza do
homem é assim mesmo, né? Não conta pra ninguém, eu nunca concordei com isso.
Mas aquele cara, antes apenas meu conhecido de bebedouro, foi virando dos meus
grandes amigos. E a gente releva muita coisa em nome do afeto. Só que o mundo
começou a acelerar e o antes apenas bronco, de repente, começou a defender tantas
maiores atrocidades possíveis que o laço se afrouxou. Defendor do mal em nome
do bem. Quer dizer, não sei se ele que andou pra trás ou eu que fui pra frente.
Eu, pacífico e falador, sem saber se tudo sempre diante dos meus olhos omissos,
não encontrava justa-medida entre o dedo apontado e o silêncio.
A dúvida que resta é saber, como
diz Bringhurst, é se o demônio age de dentro pra fora ou de fora pra dentro. A
bruteza de Isaac, no fundo, escondia a fragilidade de quem não escolheu a
atração inibida que sentia pelos garotos no vestiário. Acontece que também não
escolheu nascer num ambiente tão repressor. Há dois Isaacs dentro de Isaac, e
são igualmente genuínos. Ambos desejam, mas só um pode conhecer o mundo. A
culpa é de quem culpa.
João Cadeado
Cara, eu tento ser mais crítica e não elogiar, mas não consigo! Achei ÓTIMA a referência bíblica, super criativa. O texto com certeza reflete a realidade de muita gente por aí!
ResponderExcluir"sem saber se tudo sempre diante dos meus olhos omissos" Essa frase não fez muito sentido pra mim, não seria "sem saber DE tudo"? Talvez seja eu a trouxa que não entendeu, mas fica aí o questionamento kkk
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAchei muito boa a referência bíblica, principalmente pelo fato de você ter usado diversos adjetivos diferentes (o mal em pessoa, o coisa-ruim, etc.) para não repetir palavras ao longo do texto. Confesso que fiquei meio confusa com o desfecho, foi necessário que eu lesse mais de uma vez para entender kkkkk
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