quinta-feira, 4 de abril de 2019

A culpa é de quem?


A dissonância cognitiva é gêmea do pecado original, filha do confronto dialético entre Deus e o diabo. De um lado do ombro de Adão, a voz do narrador do universo, grave e impassiva, prometeu a liberdade eterna se a criatura lhe prestasse obediência. O mal em pessoa, por sua vez, sussurrou bem baixinho ao pé do ouvido de Adão, e disse algo que arrepiaria até o mais iberbe de todos os futuros homens. Não se sabe ao certo como o coisa-ruim persuadiu aquele ser diminuto à ideia de que poderia ser dono de si. Mas nada pode ser mais sedutor do que essa ilusão. E, como sabemos, o diabo mora nos detalhes.
Isaac não é o primeiro, nem será o último homem. É um cara comum, desses que têm nome bíblico, um Ford Ka baratinha 2005 tunado na garagem e que vaza nude da ex no grupo de amigos do WhatsApp. Faria sentido tê-lo conhecido numa rinha de galo, embora eu não conheça qualquer pessoa que frequente uma. Ainda mais plausível teria sido na casa de massagem que ele, com o perdão do termo, frequentava religiosamente com o pai -  o tarja preta da mãe fazia ela dormir cedo. Mas conheci aquele cara, por absurdo que aparente aos olhos desatentos, ajoelhado nos bancos da igreja. Deboche do acaso, porque eu só frequentava ali para jogar bola e entrava no templo apenas por um certo protocolo.
Isaac é um homem de fé. Tem imagem de santo até no banheiro da casa dele! Casou com a primeira namorada, embora tenha se dividido com muitas mais. É que, sabe como é, a natureza do homem é assim mesmo, né? Não conta pra ninguém, eu nunca concordei com isso. Mas aquele cara, antes apenas meu conhecido de bebedouro, foi virando dos meus grandes amigos. E a gente releva muita coisa em nome do afeto. Só que o mundo começou a acelerar e o antes apenas bronco, de repente, começou a defender tantas maiores atrocidades possíveis que o laço se afrouxou. Defendor do mal em nome do bem. Quer dizer, não sei se ele que andou pra trás ou eu que fui pra frente. Eu, pacífico e falador, sem saber se tudo sempre diante dos meus olhos omissos, não encontrava justa-medida entre o dedo apontado e o silêncio.
A dúvida que resta é saber, como diz Bringhurst, é se o demônio age de dentro pra fora ou de fora pra dentro. A bruteza de Isaac, no fundo, escondia a fragilidade de quem não escolheu a atração inibida que sentia pelos garotos no vestiário. Acontece que também não escolheu nascer num ambiente tão repressor. Há dois Isaacs dentro de Isaac, e são igualmente genuínos. Ambos desejam, mas só um pode conhecer o mundo. A culpa é de quem culpa.  
João Cadeado

3 comentários:

  1. Cara, eu tento ser mais crítica e não elogiar, mas não consigo! Achei ÓTIMA a referência bíblica, super criativa. O texto com certeza reflete a realidade de muita gente por aí!
    "sem saber se tudo sempre diante dos meus olhos omissos" Essa frase não fez muito sentido pra mim, não seria "sem saber DE tudo"? Talvez seja eu a trouxa que não entendeu, mas fica aí o questionamento kkk

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Achei muito boa a referência bíblica, principalmente pelo fato de você ter usado diversos adjetivos diferentes (o mal em pessoa, o coisa-ruim, etc.) para não repetir palavras ao longo do texto. Confesso que fiquei meio confusa com o desfecho, foi necessário que eu lesse mais de uma vez para entender kkkkk

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