Era uma tarde boa. Daquelas que eu saía da escola e chegava à casa em cinco minutos. Entrava no meu quarto, tirava a calça jeans apertada e deitava na minha cama apenas de sutiã e calcinha. Meu irmão e o amigo jogavam videogame no quarto e papai cozinhava para o jantar.
Era uma noite boa. Mamãe já tinha chegado à casa e contava as novidades do trabalho. Mas, de repente, o ar começou a faltar, o coração pulsar mais forte e o sorriso desaparecer. Meu irmão. Aquele que cismava que era o homem aranha- e tinha tudo desse super herói-, pulava em cima de mim para me acordar, me buscava em qualquer festa caso precisasse e comprava presente para todos os meus aniversários com sua mísera economia. Era realmente a pessoa que eu mais podia confiar. A implicância, a troca de desaforos, o carinho nos gestos e a simplicidade na personalidade. O nosso amor foi além. Além do que se pode imaginar. Além do sentimentalismo da palavra amor.
Ele me escutava, me orientava, me transformava. Embora mamãe dissesse que não existia filho preferido, se tivesse que escolher, ele seria o ideal. Sempre foi mais evoluído do que eu: mais responsável, mais cuidadoso nas palavras, mais maduro, mais capaz de executar uma prova na escola, mais mais mais. Ele era o que era, e, por isso, nada mais importava.
Importou, precisamos levá-lo correndo para o hospital e o médico logo pediu um raio-x. Quando saiu o resultado, a expressão do doutor foi de desespero. As enfermeiras começaram a cortar a roupa, o cordão, a pulseira, tudo, tudo que ele tinha. A sala de cirurgia era o único caminho possível, demorou 10 horas, ninguém sabia a noção daquilo, só quando disseram que a cirurgia não teve efeito, não adiantou, não bastou, não resolveu, não fez nada, apenas deixou cicatrizes no corpo dele e nos nossos corações. Era pneumotórax espontâneo. Ficou semanas no CTI sem melhoras. Eu não conseguia ir visitá-lo porque não conseguia segurar o choro quando o via tão fraco. Eu rezava todos os dias, mesmo não acreditando que Deus existisse. Só queria me apoiar em alguma coisa que tivesse sentido para alguém.
A “sorriso”, como me chamavam no condomínio, era tristeza. Meus olhos transbordavam o que eu não conseguia mais segurar no coração. Eu não sabia o que fazer porque nem minha mãe sabia. Ela só entrava em casa para tomar banho e a gente não conseguia ser apoio para a outra, estávamos destruídas demais. Queria desaparecer, mas tinha que continuar indo à escola, ao curso de inglês e ao de desenho. A minha vida seguia, enquanto que a do meu irmão morria.
Após quatro semanas, uma esperança surgiu. O pulmão começou a responder: dos três drenos que estavam enfiados nele, um não precisava mais. A minha alegria foi imensa, eu acreditei que as coisas começariam a melhorar e falhei. O problema aumentou, teve uma intoxicação na área do sistema respiratório e o que eu podia fazer? Eu queria ter feito tanto, mas eu fui fraca. Eu fui covarde por não conseguir ter entrado naquele CTI mais vezes, por não ter dado apoio, por não olhar para ele e mostrar que ele conseguia sair daquela situação, nem que pela força do ódio.
O ruim da vida- e desculpa se você acha isso bom- é que ela age sem a nossa interferência. E agiu tão bruscamente que tirou meu irmão de mim. Acho que nunca vou perdoá-la por ter feito isso. Eu sou metade hoje. Metade solidão, metade alegria, metade companheira, metade da metade da metade do que ele foi. Eu tento catar meus pedaços t o d o santo d i a.
Sobra-me amor, pois sei que ele foi bom para mim. Embora ainda me pego pensando que ele ia ser o titio rico que daria conhecimentos poderosos para os meus filhos e o pai mais fã de super herói possível, me reinvento. Sei que entrar na suposta mansão dele e dormir vários dias lá só para matar saudade de quando ele vinha dormir na minha cama também não será possível. Ser a titia pagodeira que bebe todas as cervejas nas festas de família, fala besteira e não para de perturbar o irmão, também não vai rolar. Mas, pelo menos, sei quem fui. E fui muito para ele.
Passei a acreditar que você é o homem aranha depois que morreu. Então, deixe rastros da sua teia, irmão. Eu ainda preciso de um sinal seu para seguir.
Era um dia bom.
Era um dia.
Era um.
Era.
Para sempre na imensidão do meu coração.
Gato de Botas
Não tenho palavras pra dizer o quanto esse texto me impactou, principalmente porque tenho uma amiga que passou por uma situação MUITO parecida com a sua. Parabéns por conseguir dividir isso aqui, e parabéns por fazer isso de forma tão bonita, mesmo que com certeza tenha sido difícil PRA CARALHO.
ResponderExcluirQuero dizer que você não foi fraca, que compreendo o provável porquê de você não ter ido visitá-lo mais vezes no hospital. Ao mesmo tempo sei como isso deve doer, como você deve se sentir por não ter feito isso. Deixo aqui meu abraço virtual bem apertado.
Tenho algumas críticas pra fazer, mesmo que me doa MUITO ter que ir além da sensibilidade e fazer o trabalho que nos foi designado.
" Importou, precisamos levá-lo correndo" ---> Nessa parte, o "precisamos" ficou meio estranho, embora tenha dado pra entender o que você quis dizer. Acho que ficaria mais legal dessa forma: Importou. Tivemos que levá-lo correndo...
"Embora ainda me pego pensando..." ---> Tive que ler duas vezes pra entender essa passagem, e foi aí que percenbi o erro e a razão da minha dificuldade. O certo seria: "embora ainda me PEGUE pensando".
A estratégia da repetição do "Era um dia bom" foi maravilhosa, deu uma emoção incrível ao texto.
Um beijo <3