Já se passaram nove anos desde o ocorrido, mas quando aconteceu eu já o conhecia há treze. Ainda consigo lembrar dos seus detalhes: os braços fortes, as pernas compridas, a pele cor de cobre, o assobio que só ele sabia fazer; mas de todos os detalhes, o que eu não consigo tirar de minha memória é o seu bigode. Um bigode farto e bem cuidado; da cor do carvão, mas enfeitado aqui e ali com alguns fios brancos.
Minha mãe dizia que ele cultivava o bigode porque tinha vergonha dos lábios finos, ele dizia que era só por achá-lo bonito mesmo. As irmãs dele zombavam dizendo que ele nunca havia raspado o bigode, desde o momento em que os pelos surgiram em sua adolescência. Mas nós, os netos, não nos importávamos com a origem dos pelos, nós nos preocupávamos mais em achar eles o máximo. Pegar canetinhas e desenhar no rosto as nossas próprias versões, e com seu imitar os seus maneirismos, ele adorava.
Mas o dono do bigode não tinha o mesmo cuidado com a saúde. Atormentado pelas dançarinas do diabo desde muito tempo, mas ao mesmo tempo nutria um amor incontrolável por doces. Lembro quando ele me dava carona ao ballet e comprava doces na padaria do lado, sempre pedindo a minha mãe que compactuasse com a desculpa dele de que “fui eu que pedi”. Foram várias as vezes em que ele foi parar no hospital como resultado dos seus descontroles. Chegou a se tornar normal.
Um dia escutei meus pais falando sobre outra internação, fiquei um pouco preocupada, mas relaxei com um pensamento “Ah, mas o dono do bigode sempre sai dessa”. Dois dias se passaram e descobri que haviam o colado em coma induzido. Mas muita gente sai do coma, né? Mesmo que com algumas sequelas, ele tem uma família enorme que o ama, que ia cuidar bem dele, dele e do bigode.
A semana foi passando e certa vez encontrei minha mãe triste na cozinha. Ela tinha voltado de uma das visitas, e me disse que tiveram que raspar o bigode dele para colocar um acesso. Fiquei desesperada. Ele vai ficar muito triste quando acordar, ele ama tanto o bigode. De repente eu só falava sobre isso.
Um dia uma amiga da minha avó ligou para minha casa, queria notícias. Eu disse que estava tudo bem, só tinha um problema gigante. Ela desesperada perguntou o que era: o bigode! Rasparam o bigode! Ela respondeu com resmungos que isso não importava, que era só um bigode. Ela não entendia. Em outra ocasião uma das irmãs dele ligou, fez a mesma pergunta, eu deia mesma resposta, mas ela me contemplou com: como eles ousam!? Ele ama tanto o bigode. Ela me entendia. Começou a dizer que o bigode logo cresceria e quando ele acordasse não ia nem notar.
O bigode não cresceu. Era um dia normal de escola quando eu recebi a notícia; lembro de atravessar a quadra perguntando a minha mãe se o dono do bigode havia partido. Ela disse que sim enquanto chorava. E eu chorei junto. E chorei por dias. Meses. Choro um pouco até hoje. Penso que dos vários traumas que a gente pode vivenciar, a primeira morte de um grande amor é um dos mais avassaladores.
Ainda mais a morte de alguém com um tão belo bigode. Demora para a gente saber lidar com a ausência, e no final a gente só diz que sabe lidar mesmo. Demora para entender que a pessoa continua existindo de certa forma dentro de você, mas isso também só conforta de vez em quando. A verdade é que eu nunca vou superar a partida do homem do bigode, e nem a audácia que ele teve de levar consigo os braços fortes, as pernas compridas, a pele cor de cobre, o assobio e, é claro, o Bigode.
Com amor, Eclipsa B.
Meu avô tinha um bigode. Meu avô dizia que se tinha leite condensado ficava bom. Meu avô tinha diabetes, e a gente não sabia. Meu avô entrou em coma antes de morrer. Esse ano faz dez anos que aconteceu. Acho que você consegue imaginar o QUÃO EMOCIONADA eu fiquei e o quanto eu quero te abraçar e dizer que eu te entendo e que me identifiquei muito com a história.
ResponderExcluirCara, mesmo fora da parte que me lembra da minha própria história, eu sinceramente amei o texto. Achei que a forma como vocÊ fala do bigode como algo central tira um pouco do peso dele, e em alguns monentos chega a dar um ar cômico. Parabéns, de verdade!
Acho que nos lugares onde você usou ponto e vírgula, seria melhor ter usado só um ponto mesmo.
" desenhar no rosto as nossas próprias versões, e com seu imitar os seus maneirismos, ele adorava. " ---> Acho que essa parte ficou meio sem sentido. Não entendi esse "com seu imitar". Provavelmente "desenhar no rosto as nossas próprias versões e imitar os seus maneirismo, ele adorava." ficaria melhor.
Ótima crônica!
Bjs <3