quinta-feira, 18 de abril de 2019

O trauma é agora

AVISO DE GATILHO: depressão, ansiedade, suicídio.  
  
   Meu maior trauma. É difícil escolher sobre o que escrever, ou encarar o que eu sei que tenho que escrever. É difícil principalmente porque eu poderia escrever sobre qualquer um dos 86400 segundos que compõe o dia, sobre qualquer momento a partir de quando meus olhos se abrem, até o instante em que meu corpo finalmente se rende ao sono. É difícil viver constantemente seu maior trauma. 

   Depressão. Por que esperar que uma garota de treze anos saiba lidar com isso, quando na verdade quase ninguém sabe? Talvez o problema não fosse esse, talvez  na verdade a grande questão fosse aceitar que a princesinha radiante realmente estivesse passando por algo do tipo. Princesinha radiante. É cômico usar essas palavras como forma de autodescrição, porque princesinha radioativa com certeza é mais coerente. Uma erupção de hormônios graças à puberdade. Um poço de solidão porque a melhor amiga tinha se mudado, porque os primos com quem convivia quase que diariamente agora estavam no ensino médio ou na faculdade -  os dilemas dos treze anos já eram bobos demais pra que se importassem -.  Um ponto fora da curva dentro da família, uma estranha na sala de aula. Radioativa, tóxica, desprezível. Eu me sentia qualquer coisa, menos radiante. 

   Estava mudada. Mais quieta, mais indiferente. O que realmente chamou a atenção deles foi o fato de eu não querer mais ir à escola. Dor de cabeça, dor de dente, enjoo. Todo dia era uma desculpa diferente, e a cada 24 horas a situação se complicava. Meu pai começou a perder a paciência, e o que antes eram olhares tortos, se tornaram broncas, repreensões, gritos. Minha mãe, por sua vez, era mais paciente. Ela tentava mediar a situação. Era  quem contava ao meu pai que mais um dia eu não iria pra escola, quem me abraçava e me consolava depois das minhas crises de choro ouvindo os sermões dele. Talvez esse último trecho tenha-o feito parecer o grande vilão, mas quero dizer que não condeno a atitude dele. 
   Os dois tiveram atitudes extremamente plausíveis para aquela situação, é inegável. O que também não posso negar é que a grande diferença entre as duas reações pode ter piorado tudo. Eu não queria continuar me queixando de dores falsas -  já não aguentava mais ouvir os gritos e o tom zangado do meu pai -,  mas também não queria perder a confiança e o apoio maternal ao dizer que estava mentindo. Além disso, nem de longe eu sabia explicar o que estava acontecendo. Em pouco tempo, as invenções se transformaram em silêncio. 
  - E hoje? Por que você não vai pra escola, hein, Leena? Qual é a desculpinha de hoje?! Eu  cansado dessa palhaçada! - mesmo depois de ouvir tantas versões disso, eu ainda fechava os olhos, protegendo a mim mesma de seu semblante raivoso.  
 - Para de falar assim com ela, ela tá com dor. É dor que você tá sentindo, né, filha? 
   Silêncio. Minha aboca abria, como se eu finalmente fosse responder a pergunta que me era feita todos os dias, mas logo depois se fechava. Não haviam palavras que pudessem expressar o que estava realmente se passando. 

   Possessão. Essa era a única explicação plausível na visão de uma mãe extremamente religiosa. Tudo piorou quando passei a me negar a ir à igreja. Desde criança eu nunca gostei de frequentar a Missa, mas isso com certeza não seria levado em conta naquela ocasião. Fora isso, era complicado demais explicar que o problema não era com a igreja, que eu não queria mesmo era sair da cama para ir a lugar nenhum, que eu não queria estar em lugar nenhum.  
   Água benta. Estranhos entrando e saindo de casa. O barulho do choro da minha mãe, meu pai tentando não chorar enquanto a consolava. O som do telefone tocando. Gritos. Olhos embaçados por lágrimas. Pesadelos.  Eu queria ter uma lembrança mais vívida pra descrever aqui, mas a verdade é que agora tudo não passa de um grande borrão de flashes surgindo em sequências aleatórias. Parte de mim é grata por isso. A outra parte? Essa quer se lembrar de cada mísero segundo. Da vez em que eu já não aguentava mais tanta merda e me tranquei no banheiro assim que a rezadeira entrou no quarto com crucifixo e o livro de orações. De como liguei o chuveiro pra bloquear o barulho, de como eu provavelmente desejava me afogar naquelas simples gotas, de como devo ter gritado com a minha mãe depois do que tudo acabou. De como foi a sensação de ter todos os meus livros - refúgios, os únicos lugares nos quais eu ainda parecia ter sanidade - jogados fora. 
Foram essas merdas que ela tava lendo! Essas coisas sobre vampiro, sobre coisa que não existe! Isso é coisa do demônio! - essas palavras não foram ditas em voz alta, mas não é como se as entrelinhas não fossem explícitas. 
   Depois de lágrimas, instantes eternos e muitos ciclos de rotação da Terra completos, eu acabei - finalmente! - sendo levada ao psiquiatra, e a partir daí as coisas começaram a voltar a se encaixar. Mal sabia eu que outra sessão de filme de terror na vida real me aguardava anos depois. 

   Ansiedade. Era uma noite de sábado, e me lembro de ter acordado tomada pela pior sensação que já senti em toda a vida.  Hiperventilação ataque cardíaco desmaio morte encefálica não quero ir pro hospital eu ainda sou muito jovem eu quero fazer faculdade eu sou a única filha que a minha mãe tem meus amigos eu quero viajar  o mundo não quero preocupar ninguém será que é só um sonho eu acho que vou vomitar talvez eu esteja morrendo. Era um terror violento, um desespero incontrolável, como se todas as células do meu corpo estivessem vibrando e sendo chacoalhadas em todas as direções, como se minha mente estivesse inconsciente do mundo ao redor, mas ao mesmo tempo fosse tão onisciente quanto só Deus pode ser, totalmente ligada e informada sobre tudo que aconteceu no meu passado, e também formulando todas as hipóteses possíveis sobre o futuro. 
   Demorou mais ou menos um mês para que eu descobrisse que aquilo na verdade tinha sido um ataque de pânico, e que sofro de transtorno de ansiedade generalizada. Em um mês, foram tantos médicos, exames e remédios que mal consigo contar. A sensação física de desgaste e apreensão é indescritível, e tenho vergonha de dizer que mesmo me sentindo no pior estado em que já estive na vida, dessa vez fui eu a negar a possibilidade de ser um problema de origem psicológica. 

   A verdade é que até hoje não consigo entender exatamente o que aconteceu, mas acho dentro de mim a razão pela qual fugi da realidade: medo. Eu estava bem, minha mente estava - ou ao menos aparentava estar - bem. Minha vida estava sob controle, tudo parecia caminhar na direção certa, e mesmo me sentindo como se estivesse morrendo, eu tinha medo de tudo se repetir. Medo de desestabilizar o que parecia tão equilibrado, medo de acessar memórias guardadas à sete chaves, medo de cruzar o mesmo inferno de audição seletiva e fanatismo religioso. 
   Provavelmente é relevante falar aqui que sim, eu acabei aceitando e enfrentando o medo, ou pelo menos parte dele. As sessões com a psicóloga não chegaram a razão pela qual a ansiedade se manifestou de forma tão extrema e repentina, bem provavelmente porque eram cheias de omissões, mais uma vez vindas do medo. No final das contas, os remédios receitados pelo psiquiatra foramsuficiente para que eu pudesse retomar a vida, e o resto foi mais uma vez trancado em um cofre com um código, que até agora permanece secreto. 

   Mas, é difícil viver constantemente seu maior trauma. E eu ainda vivo completamente cercada por consequências dos dois piores momentos da minha vida. Por vezes, quando olho pro vidro de remédios, tudo de que consigo me lembrar é do dia em que eu tentei me matar tomando o remédio de pressão do meu pai. Alguns dias, fico minutos encarando os comprimidos extras que joguei na mão, parte de mim quase agindo por impulso e empurrando-os na boca, outra parte me perguntando como chego a sequer cogitar fazer isso. De vez em quando ainda acordo no meio da noite com crises de ansiedade, e conseguir focar na voz racional que me diz que não estou morrendo, que já passei por isso antes, e que vai ficar tudo bem é mais do que árduo. Tarefas simples como atender o telefone, ou pedir ajuda a um vendedor também são constantemente hercúleas, e talvez essa seja a pior parte. Apesar disso tudo, sei que alguns dias são melhores que outros.  

   Às vezes eu também me pergunto quem eu seria se tudo isso não tivesse acontecido.  
   Tudo na vida é bom, ou é aprendizado. Respiro fundo e repito essa frase como se fosse um mantra sagrado do sânscrito. Interiorizo o amor próprio e a aceitação, honrando minha jornada pessoal e cada passo que me trouxe ao aqui e agora, até mesmos os tropeços. Aceitar. É tudo que se pode fazer quando se trata de um trauma. Se não marcasse, não rimaria com alma. 

          Ligue 188. https://www.cvv.org.br/ 
          O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.  
          Saúde mental importa. 
Leena Charpentier 

2 comentários:

  1. Oi, Leena. Me senti muito sensibilizada pelo seu texto. Apesar de nunca poder entender seus sentimentos, eu te compreendo, pois já passei por situações muito parecidas. De coração, espero que hoje você esteja melhor.
    Eu sei a importância de falar sobre saúde mental com pessoas que também já passaram (ou passam) por isso. É importante saber que não estamos sozinhos. Se quiser trocar experiências ou apenas desabafar meu email é jussarasrilanka@gmail.com
    Abraços!

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  2. QUE FOOOFAAAA <3
    Acabei de ler seu texto, e também me sensibilizei e me identifiquei muito. Bem louco pensar que tem gente que tá do nosso lado todo dia passando - ou que já passou - por coisa parecida com o que a gente vive, e nem sabemos.
    Fico feliz em encontrar uma pessoa que compreenda, mesmo que seja escondido por um pseudônimo.
    Um beijo <3

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