quinta-feira, 22 de março de 2018

Velho para ser jovem

Heraldo decidiu escrever um livro sobre sua vida. Aos 50 e poucos anos. Cansou de contar suas histórias para os seus filhos, pois eles já não tinham mais tempo para ouví-las. Novas histórias ainda podiam ser criadas entre pai e filhos, é claro. Mas todos estavam cansados demais pra tomar uma inciativa.

Entre a correria do trabalho e dos compromissos, gostava de escrever suas lembranças. Descreveu primeiro sua infância, sua convivência com os quatro irmãos, a vida humilde dos pais. Depois passou pela vida adulta, com momentos de riso, tragicomédia, perda, saudade...Nos espaços de tempo, esta se tornou sua maior distração. É claro, além dos programas de TV. Viu que seu tempo livre era melhor gasto com distrações superficiais, já que a maior parte de sua rotina era ocupada pelo estresse. Gostava de ficar em frente a TV, pensando em - quase - nada. E então às vezes voltava a refletir sobre o passado, os momentos de glória, as vivências que nunca voltarão.

Já não vivia como antes. Escrevia sobre o pôr do sol na praia, mas nunca mais voltara a apreciá-lo. Contava aventuras sobre quatro rodas, mas há muito tempo não sabia o que era dirigir. Se contentou com as lembranças, porque, afinal, já era um homem velho. Pelo menos se sentia. Com tanto tempo gasto em frente a TV, seus joelhos doíam cada vez mais ao menor esforço. Mas antes velho de corpo, era velho de mente. Dos que já se cansaram da vida. Se cansaram do esforço. Esforço pra se manter jovem.

Mas quem é verdadeiramente jovem? Talvez seja aquele que simplesmente viva. Com menos passado e mais presente. Sem o ‘sobre’, apenas ‘vivência’.


Por Mary-Louise P.

6 comentários:

  1. Acho que eu me identifico um pouco com o Heraldo, gosto de viver nas minhas lembranças mas ao mesmo tempo não faço nada para criar novas. Adorei a crônica! :)

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    1. Eu às vezes sou pior. Cultivo tanto uma lembrança que ela acaba se tornando enorme, e que eu nunca vivi. E me contento com isso.

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  2. Você tocou em algo que eu nunca tinha parado pra pensar, e de fato faz todo sentido. Incrível. Gostei demais.

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  3. Gostei muito da crônica! Senti o impacto.

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  4. adorei o final: "Talvez seja aquele que simplesmente viva. Com menos passado e mais presente. Sem o ‘sobre’, apenas ‘vivência’". Vou ter que repetir as palavras do Rodrigo M S e dizer que senti o impacto.

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  5. Gostei muito da sua crônica! Introdução, desenvolvimento e final bem desenhados com um desfecho que nos faz refletir bastante. Amei! Parabéns, Mary!

    Mis Understood.

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