Carta em resposta a Alcione

Alcione,

antes de tudo, quero te explicar: não ouço mais pagode. Entrei pra igreja. É, eu sei. Quem diria, né? Pra começar, deixa eu te contar uma história. Minha esposa começou um trabalho com ex-presidiários. Ela já era da igreja. Me convidou pra participar e eu fui. O que fazíamos com aqueles homens me lembrava de você. Pra mim, aquilo era uma maneira de compensar o que te fiz.

Encontrei na igreja um refúgio. Até fui em algumas organizações de direitos humanos na tentativa de te dar liberdade. Me deram livros e aulas sobre o sistema carcerário. Achei bacana, mas nada disso te tirava de lá, nem fazia eu me sentir útil. 

Acho que a Bíblia é muito mais fácil de ler do que Marx.

E foi assim que a igreja conquistou o respeito da galera que saía do presídio. Foi assim que me senti útil. 

Sobre o candidato que você abomina: não era voto, era trabalho. Os de vermelho queriam que eu distribuísse de graça, por "militância". Já os caras do 17 me ofereceram 300 conto pelo dia todo.

Você sabe que distribuir santinho por militância não põe comida na minha mesa.

Aliás, você já teve ter visto na internet um cara que vende camisas de tudo quanto é tipo, né? Tem camisa com a cara do barbudo, do alucinado, tem com dizer de "ele não" e com dizer de "Brasil acima de tudo". Cobro 20 conto por cada uma. Em Copacabana cobro 50. E é assim, com os 1200 que tiro por manifestação, que pago a faculdade da minha filha e tiro os 10% da igreja.

Sim, 10%. Mas na minha igreja, os dez não vão pro pastor. Pelo menos eu não dou. Guardo pra pagar cesta básica pros presidiários e quem tá em situação de rua. É meu compromisso com você e com meu povo.

Entendeu por que eu distribuí panfleto pro 17?

É dinheiro deles pros nossos. Por mais que pareça contraditório, filosóficamente incoerente... Filosofia pra perifeira é chão limpo sem sangue.

Enfim, me alonguei demais. Eu disse que não ouço mais pagode, mas confesso que naquele dia tive uma recaída. Também tenho saudades daquela época em São Cristóvão, mas os tempos são outros. Menos prazer e mais labuta, por um dia melhor pra gente.

Qual o meu propósito com essa carta? Bom, primeiro te dizer que também não voto nele. Mas sobretudo, te lembrar que o ser humano é, sim, incoerente. As condições da vida nos levam a tomar decisões que jamais tomaríamos. Se tem um conselho que posso te dar, é o seguinte: não desiste de mim, não desiste deles e não desiste da gente. As pessoas não são más, elas só estão perdidas. Se eles vierem com faca, faz o possível pra mostrar que a gente não vai revidar da mesma forma.

Pra cada pessoa que os de vermelho taxam de ignorantes, existem duas no culto pra abraçá-las. Pra cada pessoa que quer forçar o cara a ouvir sua ideologia revolucionária, há duas que se forçam a ouvir o que esse cara tem a dizer.

Não adianta querer o bem dos mais humildes se não tivermos humildade.

Com carinho,

seu irmão.

Alcione 77