terça-feira, 16 de outubro de 2018

O céu da boca do inferno

Senti a chuva tocar a minha pele. Leve. Fina. Escorria pelo meu rosto e me entorpecia.
Foi difícil sentir de novo, numa semana em que tentei passar cada dia mais anestesiado.
Dormindo pra não ter que respirar acordado num mundo cheio de ódio. Nessa semana,
de vênus retrógrado - me disseram-, antigos amores ressurgiram pra me lembrar porque
são antigos. Na mesma rotina, tudo já se anuncia diferente. A rua continua alagada e
Niterói continua engarrafada como em qualquer véspera de feriado. Eu continuo
comendo as mesmas porcarias de sempre e bebendo do mesmo cálice. A chuva continua
caindo, a primavera continua correndo, outubro mais uma vez se anuncia, mas por
dentro, me sinto morto. Ela me sorri, me cobra esperança. Em cada esquina, um abraço
amigo me conforta.“Ainda há tempo”, o coração exclama. Ela me beija a boca, mas eu
não sinto nada. Ela me leva à cama, mas eu não sinto nada. Eu gozo, mas ainda assim
não sinto nada. Hoje, senti a chuva. “Estou vivo” disse ao porteiro que me encarava
subir encharcado no elevador. Toda Icaraí agora me parecia diferente. “Ainda há
tempo” eu pensava enquanto secava meu corpo e começava tudo de novo. “Ainda há
tempo” eu pensava enquanto tentava fazer tudo diferente.
Dessa vez o dia amanheceu ensolarado. Como um hábito recém adquirido, eu também
senti o sol sobre a minha pele. Dessa vez, eu sorri pro porteiro. Dei bom dia pro dono do
bar, mas pedi um café e nada mais. Ela me chamou logo pela manhã e eu atendi. Dessa
vez disse a verdade “hoje não dá, nem amanhã, nem nunca mais. Você merece alguém
que te sinta” e ela desligou. Sentei na costumeira praça, peguei o velho caderno
rabiscado, encardido e caótico e me atrevi a escrever uns versos. Escrevi sobre os
cachorros na rua, sobre a política mundial, sobre a moça bonita que almoça ao meu lado
no bandejão. Voltar a sentir o mundo ao meu redor trouxe uma sensação quase líquida.
Leve. Fina. Escorrendo sob a minha pele a certeza de que não sou melhor nem pior, mas
definitivamente sou Algo. Que sente e que deve sentir. Meus olhos então me lançaram
um sinal: choveu em mim. Peguei o telefone, e chamei por Ela. Ao atender, lhe
perguntei “Ainda há tempo?”, ela me respondeu “Hoje não dá
Nem amanhã
Nem nunca mais.”

Ricardo Reis

12 comentários:

  1. Texto bem construído. Gostei bastante das sequências temporais e das descrições detalhadas.

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  2. Texto bem construído. Gostei bastante das sequências temporais e das descrições detalhadas.

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  3. Texto muito bem construído, um dos meus preferidos.

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  4. Querido Ricardo,
    queria dizer que esse texto me soou muito mais do que deveria... Senti todas as emoções na pele e garanto que se eu estivesse em um dia ruim ou de TPM, teria chorado ao ponto de alagar meu quarto. Além de intenso, o texto foi de um lado a outro em meio as emoções. Todas as minhas expectativas em relação a esta sua crônica foram atingidas de maneira em que me faltariam palavras para descrever o quanto. "[...] Dessa vez, eu sorri pro porteiro. Dei bom dia pro dono do bar [...]" Me lembrou muito uma música do Zeca Baleiro (Telegrama), uma das estrofes diz o seguinte: "hoje eu acordei com uma vontade danada de mandar flores ao delegado, de bater na porta do vizinho e desejar "bom dia", de beijar o português da padaria". Não me questione o porquê. Enfim, o texto foi muito bem escrito e teve uma sonoridade fantástica.

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  5. meu texto favorito seu, a forma como você criou as imagens e sensações foi fantástica, parabéns

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  6. Ótima construção, narração envolvente, muito bem escrito.

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  7. oi ricardo quis te da um soco lendo esse texto pq chorei muitokkkkk

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  8. Quando esse texto foi lido na aula, eu chorei. Chorei porque essa narrativa me emocionou de verdade. Parabéns!

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  9. Ricardo, você já assumiu o lugar de poeta em prosa da turma. Mandou muito!

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