sábado, 13 de outubro de 2018

Sob o último sol de fevereiro


Está chovendo agora. Uma chuva serena quase doce. Eu invejo cada gota que toca a
copa das árvores e escorre até o chão, penetrando a terra. Posso sentir o cheiro, é mais
do que um processo bioquímico explicado pela revista de domingo. É como uma
lembrança infantil de pular em poças lamacentas no quintal da vó Célia. O som das
águas é capaz de fazer brotar flor no concreto. Abro a janela. O ar fresco entra e aquece.
As cigarras fazem suas preces. Essa atmosfera desperta o desejo de te ligar. Hoje, seria
um daqueles dias para comer pipoca e discutir teorias desconexas com um filme
qualquer de plano de fundo. O tempo divaga.
Na estante, pego aquele livro que encontrei no sebo. Comprei-o apenas pelo título soar
como um pôr-do-sol sereno, decretando o fim de um dia quente e carnavalesco. E
também porque você nasceu em fevereiro e parte de mim – tão humana – esperava um
sinal místico, uma razão maior para validar tanto aquilo que se sabe quanto o que se
finge desconhecer. Antecipo: os astros erraram, a crônica que nomeia o livro nem de
longe foi minha favorita.
A chuva cai. Não do tipo que causa alagamento e horas a mais no trânsito, mas, sim, de
quando você decide não abrir o guarda-chuva mesmo o tendo em mãos. É ritmado e
poético. Sem risco de resfriado. Absorvo as palavras mediado pela inquietação gerada
por um livro novo, ainda que velho. 1975, para ser exato. Perdoe-me a vaidade: acho
“cool” adquirir livros usados, mas não tenho a pretensão de ser um hipster sedento por
reconhecimento intelectual. Meu tesão é humanitário. Há algo sobre esse outro ser que
habitou nessas mesmas páginas. Um mistério. Uma narrativa não contada. A recriação
de um eu que nunca fui.
Minha natureza alérgica questiona a necessidade de tanta poeira e ácaro. Entre coceiras
poéticas ou não. Esbarro nesta nova história que permanece como doença. Desabo.
Como existir em palavras que não são minhas? “É verdade a amargura que sobreveio,
mas é maior verdade o que não foi amargo, o que foi puro e bom.“ Essa é a verdade
que de alguma forma sempre esteve em mim. As enchentes existem. Os trovões
também. As águas do céu encontram as do mar em ressaca. No entanto, está pacificado
numa conversa interior ao cair da noite. Não precisei te ligar. Você dizia que a gente
precisa dessas besteiras literárias porque a vida é meio besta e, por isso, deve ser leve. O
agora é importante, mas não é tudo. Os sóis não se findam em cinzentas tardes de
quartas-feiras.

- Brás Cubas 171

2 comentários:

  1. Acho que estou apaixonada por um texto. Embora estejas anunciando o desejo de estar com alguém ausente, como se fosse um amor não alcançado, talvez rejeitado ou com um fim trágico pra ti, trouxe ao texto uma conectividade muito boa a todo o resto. Tornou-se uma leitura muito leve, se é que podemos afirmar algo. A passagem entre os anos, as metáforas para explicar a poesia, foi algo.... Sensacional! Talvez essa palavra seja pouco, mas foi imenso. "O som das águas é capaz de fazer brotar flor no concreto." Favoritei pra vida toda.

    ResponderExcluir
  2. Ao ler o texto, consegui visualizar cada detalhe na minha cabeça. Você conseguiu trazer fluidez à essa narrativa. Gostei bastante!

    ResponderExcluir