domingo, 28 de outubro de 2018

Se meus pais e minha vó gostam de um texto meu, significa que consegui fazer ele ser bom do jeito que queria.
-Por que essas pessoas especificamente?
-Eles não tem hábito de ler. São pessoas simples mas transformadoras. Quero que minha escrita seja transformadora pra aqueles leitores que nunca perceberam seu potencial de ser a transformação.
-Você acha que sua escrita transforma alguém?
-É o que eu queria.
-E isso te deprime?
-O quê?
-Sua escrita. Te deixa deprimida achar que ela não transforma ninguém?
-Sei lá. Às vezes acho que tô me enganando.
-Como assim?
-Te falei da aula que faço, né? Lá todo mundo costuma curtir minhas crônicas. Fico toda boba. Chega a emocionar. Mas será que não tô falando mais do mesmo pro mesmo grupo fechado?
O terapeuta a observa. Cruza as pernas e franze a sobrancelha.
-Me fala sobre seus textos.
Ela se ajeita na cadeira e desanda a falar. Rápida e interruptamente.
-Olha, é o seguinte: o que eu quero mesmo é que minha escrita chegue em quem Clarice Lispector não chega. Não nasci pra ser Drummond nem Fernando Pessoa. Meus textos são pra quem tá puto no busão conseguir dar uma risadinha. Não vou fazer texto triste pra quem tá amassado no trem sem ar e com uma fome da porra porque o ambulante não tinha pele com bacon.
O terapeuta ouve tudo impassível. A observa com cuidado.
-Já pensou que talvez as pessoas queiram ler Clarice Lispector num ônibus cheio?
Ela não responde.
-Já pensou que o gosto popular às vezes não se limita à comédia?
Ela puxa o celular do bolso e vê as horas. O terapeuta muda de assunto.
-Qual dos seus textos as pessoas menos gostaram?
-Fiz um sobre medo de baratas. Era uma metáfora meio crítica social foda.
-Crítica social foda?
-É. A expressão é meio que um deboche. Sabe quando você se esforça muito pra fazer uma crítica social mas acaba parecendo um Gregório Duvivier?
-Como assim?
-Meio homens brancos que se julgam mais intelectuais do que são e que tentam desconstruir tudo.
O terapeuta arquea as sobrancelhas e dá um riso leve.
-Ué, seus textos não são exatamente assim? Você desconstruiu uma barata.
Mais uma vez, ela se cala.
Depois de segundos em silêncio, prende o cabelo num rabo de cavalo e cruza as pernas em chinês.
-Costumam dizer que nossas críticas são um espelho de nós mesmos, né?
O terapeuta sorri com cumplicidade. A observa com interesse e cuidado.
-Não sabia que você era psicóloga.
-Essa sessão tá me fazendo descobrir mais coisas sobre mim do que eu gostaria.
Pela janela, apenas o som dos carros passando na rua. O terapeuta quebra o silêncio.
-Me diz uma coisa. Qual foi seu melhor texto?
Ela pensa olhando pra vista do lado de fora. Faz menção de começar a falar, mas desiste.
-Difícil escolher?
Ela se ajeita na cadeira e inicia uma fala pausada e lenta.
-Eu sempre quis escrever comédia e fazer as pessoas rirem, mas depois de três textos me desafiaram a escrever algo novo. A experimentar literatura dramática. Fiz um sobre Bolsonaro e meus pais.
Ela faz uma pausa.
O terapeuta faz um gesto pra que siga em frente.
-Nada mais dramático que a relação com nossos pais, né?
-Por quê?
-Acho que eles não dariam muito valor pros meus textos.

Crônicas escritas: 6 (7, contando com essa)
Comentários feitos: 29

Alcione 77

Um comentário:

  1. Você impressiona a cada texto!!! De verdade, atribui diferentes formas e estruturas, foge totalmente do esperado. E sempre continua bom. É fantástica!

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